Minha participação na campanha pela anistia aos presos políticos foi principalmente como jornalista, militante da imprensa alternativa, especialmente no jornal Em Tempo, que mais se dedicou ao assunto. Todas edições, em certo período, tinham matérias sobre presos políticos e chegamos a publicar três listas de torturadores, fornecidas pelos próprios presos, que causaram grande reação nos órgãos de repressão – e essa reação não ficou só em ameaças: chegaram a colocar bombas e incendiar sucursais do jornal.

Meu ganha-pão não era a imprensa. Trabalhar nos jornais alternativos era uma forma de militância, além de não ganhar nada, a gente gastava com viagens. Passei mais ou menos um ano e meio visitando os presos num final de semana no Rio e os de São Paulo no outro. Ou seja, passava todos os finais de semana na cadeia, e gostava, não era nenhum sacrifício. Nessas visitas, além da solidariedade que a gente levava (tinha muita gente que fazia isso), discutíamos política, fazíamos projetos, arrumávamos estratégias para tirar material escrito pelos presos (a revista era rigorosa na entrada e na saída do presídio) e eu fazia matérias com eles e sobre eles, para o Em Tempo, sempre assinando com pseudônimos, porque se usasse meu nome seria proibido de visitar os presos novamente.

Solidariedade
Em cada visita a gente pegava um monte de pôsteres feitos pelos presos (Che Guevara, Ho Chi Min, Carlitos, Marilyn Monroe, John Lennon etc.) para vender. E era fácil: amigos, parentes e a classe média mais crítica compravam tudo que viesse dos presos, e para alguns "proletas", que gostavam dos pôsteres mas não tinham dinheiro, a gente dava. Até hoje vejo nas casas de alguns amigos trabalhos produzidos por aqueles presos, e tenho saudade da solidariedade e da esperança que as pessoas tinham na época.

Muita gente, inclusive o pessoal que morava comigo numa república da Vila Madalena, oferecia sua casa para presos que saiam da cadeia e para exilados que voltavam, até que eles se arranjassem (foi quando comecei a perceber que nem todos os exilados eram tão bons assim: tinha gente que voltava do exílio de nariz empinado, cheia de exigências, com comportamento bem "direitoso", já com ares "tucanos", mas felizmente era uma minoria).

Como eu passava um fim de semana num presídio e o seguinte em outro, às vezes levava notícias e propostas de um para o outro. Lembro-me bem de quando surgiu a proposta, pelos presos do Rio, de uma greve de fome pela anistia. Sérios, eles me perguntaram primeiro se eu apoiava a greve. Lembro-me que respondi que seria muito cinismo meu dizer que sim, pois seriam eles que passariam fome, mas se fizessem, a gente daria todo apoio possível. Depois, levei a proposta de greve para os presos de São Paulo. Aqui, ela não foi aceita (o que não representa nenhuma fraqueza, eles discutiram e acharam que não seria uma boa estratégia). A greve durou mais de um mês, foi uma barra, mas terminou vitoriosa.

Momentos marcantes
Os momentos de emoção foram muitos. Cada leva de exilados que voltavam era uma festa, cada saída de preso causava euforia na gente. Ver, de dentro da cadeia, o ritual de saída dos presos, era mais emocionante ainda. Principalmente quando restavam poucos presos. Em São Paulo lembro-me bem da saída de Altino Dantas. Quando chegou o papel que permitia sua saída da cadeia, todos os presos se enfileiraram e cantaram a Internacional, ele abraçou um a um e saiu. Saí (como visita) junto com ele e havia um monte de gente na porta do presídio, uma festa, naquele ermo que era o Barro Branco.

Mas a cena mais emocionante, para mim, foi a chegada de Flávia Schilling. Depois que todos os presos daqui tinham saído, ela continuava presa no Uruguai, como militante do Movimento Tupamaro. Continuamos a campanha aqui, até a grande imprensa se envolveu, parecia que o Brasil inteiro estava apaixonado por Flávia Schilling e o próprio governo brasileiro acabou pressionando o Uruguai pela sua soltura. O pai, Paulo Schilling, foi buscá-la. Seu desembarque em Congonhas, parecia a chegada de uma seleção de futebol campeã do mundo. O aeroporto inteiro lotado, uma vibração imensa.

Saldo positivo
A campanha da anistia serviu para fortalecer laços de solidariedade e amizade e trouxe de volta para a vida política um monte de gente importante para a redemocratização do país. Eram políticos experientes que estavam fora do país e jovens idealistas que estavam nos presídios, e que se engajaram na luta política imediatamente, e formam – até hoje – a maior parte do que resta de decente na política brasileira. Muitos ficaram fora da política, mas mantiveram a dignidade da mesma forma. Claro que entre os anistiados – eu acho sinceramente isso, apesar de parecer de mau gosto – há pessoas que teriam feito melhor se tivessem morrido sem recuperar seus direitos. Certos sujeitos que jogaram seu passado no lixo e estão fazendo safadezas por aí seriam lembrados como heróis, em vez de entrarem para a História como vendilhões da pátria e neoliberais insensíveis, que acabaram com os diretos sociais no Brasil. Mas elas não desmerecem os outros, nem a grande ação de solidariedade e fraternidade que foi a campanha pela anistia.

 *Mouzar Benedito é jornalista. Participou da Campanha pela Anistia em São Paulo e Rio de Janeiro.

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