A dialética da Big Tech
Na posse de Donald Trump perfilaram-se os multibilionários Mark Zuckerberg (Meta, Facebook, WhatsApp), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple) e Elon Musk (Xuiter, Tesla). Antes tarde do que nunca, Bill Gates (Microsoft) se associou à aventura; “pode gerar coisas boas”. A cerimônia com pompa e circunstância colocou a pá de cal na promessa de emancipação, remanescente dos primórdios da cibercultura. A dúvida era sobre quem, para além do teatro e todas as encenações, de fato, assumia o poder: o chefe do Executivo ou os monopólios tecnocráticos?
Eleito, o presidente anistiou invasores do Capitólio e retirou do Acordo de Paris o principal emissor de gases de efeito estufa, os Estados Unidos. Não bastasse, o negacionista que descrê em pandemias rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A nuvem de investidores na campanha do republicano também compactuou com a ausência de apreço pela democracia, a natureza e os órgãos multilaterais em função do modelo predatório de negócios. A saudação fascista não surpreendeu.
A isso, somou-se a decisão das plataformas de liberar as fake news, que esgaçam o tecido social sob o signo da “pós-verdade”. O paradigma da veracidade para a mediação dos conflitos desmancha no ar. Pouco importa se as mensagens são verdadeiras ou falsas. O fundamental é que viralizem, gerem cliques, curtidas e inflem as bolhas com afetos de ódio e ressentimento para garantir os dividendos estratosféricos. No capitalismo dadocêntrico, o critério de validade cognitiva é o lucro empresarial com aspectos prosaicos da existência cotidiana, os quais encarnam ativos rentáveis. Financeirizar é preciso; canibalizar é uma consequência. No caso, os fins justificam os métodos. Fecha-se o ciclo.
Se o Vale do Silício é causa ou produto da dissolução da sociabilidade, não se sabe. Sabe-se que o movimento original para salvaguardar a privacidade (Chaos Computer Club, na Alemanha) cedeu aos techies, adaptados à ordem acumulativa. Para dissimular, o Uber acaricia os consumidores por baixar as tarifas de locomoção urbana; e o Airbnb apresenta-se como um utilitário aos proprietários na recessão. Assim, a precarização do trabalho e a monetização dos imóveis sociais são maquiadas.
“Acabamos no domínio feudal, partilhado entre empresas de tecnologia e serviços de inteligência”, denuncia Evgeny Morozov, no livro Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. Da contracultura norte-americana restou apenas o individualismo e o consumismo; da “aldeia global” dos anos sessenta, a nostalgia; e da acusação contra as instituições estabelecidas, o laissez-faire.
Fim da privacidade
Na propaganda, o trabalho do professor é cambiável na prestação de serviço por um robot e um smartphone. As câmeras de vigilância e os traçados do Waze das rotas na cidade, a cada hora, são mais eficazes do que a guarda municipal ou a secretaria de transportes. Os algoritmos ignoram as ideologias ao criar a economia compartilhada, com o fascínio fetichista da digitalização. Favorecem não usuários abstratos; sim, a extrema direita e o neoliberalismo no cenário de crise do Estado de bem-estar social e do princípio-esperança. O bullshitter, falador de merda, não cansa de fabular.
Há que desconfiar do que reluz no marketing. Contrário senso, aqueles empreendedores do Vale se consideram uma vanguarda solidária e colaborativa, com uma empatia que os partidos e ONGs não possuem. O Silicon Valley se imagina alternativa a Wall Street; quando são gêmeos siameses. O que aciona suas engrenagens não é a inclusão informacional, senão o dinheiro de hábitos contabilizados sem uma autorização. A distopia orwelliana ganha contornos próximos de uma tragédia iminente.
A Inteligência Artificial (IA) é a essência do processo para o qual a privacidade é um estorvo. O resguardo dos cidadãos, frente a intrusão corporativa excessiva, está em franca contradição com a mentalidade de apropriação generalizada característica da contemporaneidade. Na interpretação do executivo da Global Commission on Internet Governance (Comissão Global sobre Governança da Internet), “as barreiras contra a livre circulação de dados são, a rigor, barreiras contra o comércio”. Em breve, proteger a própria intimidade será uma ofensa à dinâmica mercadista. O totalitarismo abre asas sobre a vida privada. A mineração da realidade não tem limites, na selva capitalista.
Elon Musk no Departamento de Eficiência Governamental, da administração trumpista, aprofunda o poderio da Big Tech ao se instalar no centro neuronal do Leviatã imperialista estrategicamente. Que negócios podem ser feitos com seus sigilosos dados. O entrismo empodera os setores hegemônicos no fluxo de capitais, com receitas superiores a mais de uma centena de países. Está em pleno curso a revolução passiva da IA. O processamento da massa de indicadores funda a racionalidade digital e, a regulação algorítmica, a utopia tecnocrática na política apolítica para os temas analógicos.
Os dispositivos de controle elevam a eficácia. A rastreabilidade permite projetar melhor, aperfeiçoar melhor, governar melhor. Mas Evgeny Morozov questiona: “Melhor que o quê?” Se no Facebook são realizados milhares de experimentos secretos por dia, para otimizar resultados específicos ou deliberações de longo prazo: “o melhor é se preocupar com os experimentos que não comentamos”.
Disrupção, eficiência
Problemas reais não são equacionados só com infraestrutura para fornecer informações; exigem cuidar dos carecimentos humanos. É difícil manter valores como a solidariedade em um ambiente tecnológico que prospera na base da personalização e das experiências únicas. “Onde estão os aplicativos para combater a pobreza ou a discriminação racial?”, ecoa ainda o crítico bielorusso.
Na ótica da Big Tech somente há lugar para as empresas. Com uma maior densidade informática na Europa, o faturamento cresceria 500 bilhões de euros anuais. Quiçá deveríamos baixar a guarda para o Google e a IBM evoluírem sem empecilhos. Cabe ao assessor da White House inteligentificar e quantificar as atribuições e atividades estatais, empurrando leis para a caixa de spam, junto com o desgastado regime de direito democrático e o sonho de outro mundo, acalentado no Fórum Social.
A exaltação da disrupção e da eficiência, no encalço de rendimento, é a senha para a burocracia do funcionalismo público corrigir as distorções sistêmicas, com a panaceia dos startups. Planejamento e condicionamento, protocolos e estatísticas reforçam as muitas ações administrativas antipopulares, enquanto os ajustes fiscais inibem mecanismos constitucionais e relançam o povo na minoridade. As agências de classificação de crédito e mercados de títulos – não eleitores – dão as cartas e jogam de mão na atualidade. “É tempo de cortinas pardas / De céu neutro”, pondera o poeta de Itabira.
Na ciberesfera, tudo se resolve no aplicativo em vias de ser inventado. Saúde, educação e segurança vão se beneficiar do cruzamento de dados e sensores portáteis. Byung-Chul Han identifica, essa, com “a era da infocracia”. Porém o imperialismo não morreu; apesar de o DeepSeek chinês, baixado na App Store da Apple, haver ultrapassado concorrentes tipo o ChatGPT. Com chips suspensos pelo bloqueio dos EUA, menor custo de produção e código aberto (gratuito), o fenômeno provoca pânico nas Bolsas de Valores. A multipolaridade geopolítica agradece o tiro de misericórdia na arrogância.
A superpotência sofre da soberba que a impede de admitir, alto e bom som: “Meu nome é Estados Unidos e sou viciado em dados”. Donald Trump oculta o óbvio e dobra a aposta paranoica; cancela o momento da antítese na dialética da Big Tech e tergiversa a America First. A ameaça à liberdade individual e coletiva torna mais tóxicas as redes digitais. Nada a ver com tecnofobia. Trata-se da luta por soberania numa democracia com predicados políticos do liberalismo clássico (tolerância, pluralismo) e a ênfase do socialismo participativo nas questões sociais (igualdade, bens comuns).
* Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul
Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.