Quando os filósofos iluministas abjuram o ancien régime para alçar os servos ao inédito patamar de cidadãos, o absolutismo monárquico, obscurantista e medievalista é defenestrado. Nasce a Idade Moderna – a dúvida, o progresso. Questiona-se o habitus das cidades, a memória das nações, as superstições e os preconceitos aos quais, anteriormente, se atribuía importante papel na coesão da sociedade para perdurar o senso comum nas relações sociais e inibir a ênfase nos fins individuais.

Teórico político e membro do parlamento londrino pelo Whig Party, Edmund Burke (1729-1797) é o mestre assumido da teoria conservadora. Nas Reflexões sobre a Revolução Francesa, enumera os argumentos contrários ao acontecimento sob três eixos: (a) a negação dos valores do modernismo (liberté, égalité, fraternité) por serem mistificadores, abstratos e também descolados da realidade; (b) a defesa do estado de natureza, não como ponto de partida, mas chegada do processo histórico que culmina nas iniquidades e hierarquias sociais e; (c) o fato de a moral, os costumes e as tradições não pertencerem à geração presente, e sim a todas as épocas torna-as perenes. O conservadorismo leva a sério Paul Valéry: “O problema de nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser”.

Dos séculos 16 ao 18, os conservadores acolhem a mundanização da vida sem se afastar da dimensão transcendente. A agulha do equilíbrio espiritual dos indivíduos, então, desloca-se de modo paulatino para o lugar das atividades criativas de mudanças – o mundo exterior. Os nostálgicos da interioridade acreditam na communitas orgânica fechada, onde os atos de rebeldia têm por única função ilustrar os comportamentos inaceitáveis pela divindade. A crença de que a coletividade não é uma reunião de átomos isolados, mas peças de uma engrenagem, empresta um sentido à existência.

Por definição, as pessoas realizam-se na esfera sociofamiliar que tem normas próprias, desestimula intervenções para alterar o status quo e recomenda ir devagar com o andor. O sonho de consumo é a suspensão da passagem do tempo, na esperança de cancelar os conflitos. Com sabedoria ancestral, em Grande sertão: Veredas, Riobaldo alerta: “Viver é negócio muito perigoso”. Com certeza, é.

Nos séculos 19 e 20, a coleção de dogmas no labirinto do conservadorismo mantém ainda sua essência, com o desafio de preencher alguns hiatos com concessões à marcha do individualismo. Balanceava-se a entrada em cena das massas; o pesadelo das noites do aristocrático José Ortega y Gasset. É errado imaginar que a razão seja a medida do real e a sociedade, o barro para modelar as utopias. Intentos emancipadores por via insurrecional provocam a desagregação. O Homo sapiens não é uma criatura exclusivamente histórica e tampouco é capaz de ser modificado e melhorado pelos esforços reeducativos. Sem chance. Está condicionado pela vontade divina, sobre-humana.

O olhar dos que veem o futuro no retrovisor reage com violenta emoção à diversidade. A evocação do “direito a ter direitos”, que promove o empoderamento do feminismo, do antirracismo e da anti-homofobia, suscita as reações intempestivas. As cruas estatísticas policiais registram os resultados. Vide os feminicídios e o assassinato de pretos e de trans. O antimodernismo inspira os intelectuais da extrema direita, como o estadunidense Steve Bannon e o brasileiro Olavo de Carvalho. O último não matriculou a filha na escola. Afinal, menina não precisa saber ler. Coube à tia inscrever a pré-adolescente, tardiamente, numa turma frequentada por menores em idade normal de alfabetização.

O excesso emocional explica por que o empenho para proteger os emblemas da ordem idealizada, descamba para as agressões, simbólicas e práticas. “Sentimentos foi tudo o que o ‘conservadorismo’ reuniu ao longo da história”, consta no verbete do Dicionário do pensamento social do século 21. Inclusive as religiões atuais são alvo de restrições por guardar apenas os resíduos da matriz indo-europeia. Não por nada, a influencer cristã do Rio Grande do Sul atribuiu a responsabilidade pelas enchentes à profusão dos “terreiros de macumba” na região, mais do que o rastreado na Bahia. A deformação do rito ariano dos colonizadores teria despertado “a ira de Deus” – e o dilúvio gaúcho.

A estrela da manhã

O conservadorismo articula-se com o liberalismo econômico, no discurso. “Sou conservador nos costumes e liberal na economia”. De uso corriqueiro, a expressão traz embutida a contradição que consiste em, de um lado, apoiar uma organização imutável para os seres humanos com posições congeladas na pirâmide social; e de outro, avalizar o sistema onde tudo que é sólido se desmancha no ar – fora da estrutura social e moral. A assertiva não teme ser essa metamorfose ambulante.

No ínterim, a casta evangélica toma gosto nas fartas emendas orçamentárias do Congresso Nacional e ensaia a disputa para voos superiores. A aliança com a extrema direita catapulta a distopia satânica dos profetas do atraso. A cruzada contra o aborto, per se, mas não em prol das crianças, fixa a linha entre “eles” e “nós” no nicho de mercado do subproletariado. Sem os devidos cuidados pelo Estado democrático, a ralé perde a condição de credora de direitos; vira carente da generosidade alheia e é aliciada por moedeiros falsos. No novo exército da salvação, os templos forjam os rebeldes a favor.

Existem 109,5 mil centros evangélicos, no país. Somando os terreiros, as igrejas e as sinagogas são 579,7 mil auditórios religiosos; 286 por lote de 100 mil habitantes. A legislação permitiu a abertura das comportas de que se aproveita a linha (neo) pentecostal. Tais aparelhos ideológicos privados militam para a alienação. Conforme o Censo do IBGE, somente seis unidades da federação possuem mais postos de saúde e escolas do que locais para a fé: São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Piauí. A laicidade está em flagrante desvantagem entre os crentes.

Para o relator do PL 1904/2024, a acintosa perversidade contra a infância negra de 8 a 12 anos – que conforma a maioria das vítimas de estupro – visa “testar” o mandatário do Palácio do Planalto. O cinismo e as fake news são o refúgio estratégico dos idólatras do passado mítico. Como nos versos do poeta Ferreira Gullar: “Inútil pedir / perdão / dizer / que o traz no coração”. Teologicamente o Segundo Testamento bíblico (o Deus do amor) está em baixa. Volta à moda o Primeiro Testamento (o Deus do castigo). A bondade cede à chantagem de pulhas na tribuna, à descomedida ambição, à premeditada vingança. Prevalece a lei de talião – lex de talionis, a exigência idêntica da mesma laia.

A frase que traduz o pensamento conservador é sintetizada por Giuseppe Tomasi de Lampedusa, no romance popular Il gattopardo, que Luchino Visconti eterniza no cinema com um grande elenco: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. As classes dominantes repetem a saga, nas transições pelo alto. As classes trabalhadoras devem desnudar a pantomima com a arma da crítica.

O conservadorismo e o neoliberalismo formam um triângulo com o neofascismo para combater: (a) a decisão dos indivíduos sobre seu corpo ou sua mente; (b) o exercício da cidadania num ambiente laico de equidade republicana e; (c) a emancipação da dialética de dominação e subordinação. Daí a opção pelo regime de exceção com um aventureiro de perfil miliciano, sem nenhuma competência administrativa e nem empatia com o sofrimento do povo. Um escroque de aluguel para desmontar a democracia e os órgãos estatais de regulação; submisso aos interesses acumulativos da plutocracia.

O Estado participativo de bem-estar social e ambiental é o antídoto à propagação do ódio irracional, que retorna no século em curso com mais periculosidade e letalidade. Com o desenvolvimento das tecnologias bélicas e os drones militares de vários portes, matar se assemelha a jogar videogame por diversão. Hoje o terror se afigura pior do que o original propagado na década de trinta, na Europa. O potencial de destruição é maior. No Brasil, a vitória do presidente Lula 3.0 bloqueia o espectro da barbárie, o que convoca uma insistente reafirmação com as bandeiras nas ruas. A participação social concentra os valores fundadores da modernidade. A estrela da manhã prenuncia um tempo de lutas.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

 Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.

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