A humanidade está passando por uma era de profundas mudanças, que encerra um ciclo histórico. Este momento ainda é pouco compreendido. Abrem-se ao menos duas possibilidades de se posicionar sobre essa nova era. Uma, causada pelo temor de mudanças, é aferrar-se ao velho, em busca de segurança. Outra, reconhecer as fissuras que se abrem nas estruturas e elaborar o novo.

Em busca de respostas para esse quadro foi realizada na manhã de 18 de novembro, quinta-feira, a oitava mesa de debates dos Seminários Cultura e Democracia. Intitulada “Cultura, Economia e Democracia na Periferia do Capitalismo”, o encontro reuniu um grupo de economistas, Ana Luiza Matos de Oliveira, Marcio Pochmann, Luiz Gonzaga Belluzo e o argentino Claudio Katz, com mediação da também economista Luiza Dulci, conselheira da Fundação Perseu Abramo.

Para Pochmann, professor da Unicamp, o que vivemos pode ser comparado ao final da Idade Média, conforme citação do pensador estadunidense Immanuel Wallerstein, que elaborou o conceito de geocultura. “Geocultura seria para ele o modo contraditório pelo qual cada sistema social, historicamente determinado, adquire consciência a respeito de si próprio. Nesse sentido, o exemplo que ele nos traz, para fortalecer o conceito de geocultura, é o esgotamento da Idade Média, ao final do século 15 e início do século 17, quando, apesar do esgotamento daquela fase histórica, parcela importante da população e das instituições seguiam defendendo idealizações do passado”, disse Pochmann. “Não conseguiam perceber que estavam diante de uma fase histórica”.

“O tempo se acelera quando o espaço de experiência do cotidiano fica cada vez mais distante do horizonte de expectativas. Quando nosso horizonte de expectativas passa a estar presente, o futuro do presente se realiza, ficando cada vez mais distante o futuro do passado”, continuou o professor, citando o historiador alemão Reinhart Koselleck. Essa aceleração do tempo coloca três grandes desafios, especialmente para a América do Sul e o Brasil.

Para Pochmann, o primeiro desses grandes desafios é a mudança climática, que põe por terra a falsa ideia de desenvolvimento calcada na exploração sem limites da natureza. Outra mudança é o que ele chama de deslocamento do eixo hegemônico político e econômico do Ocidente para o Oriente. Essa mudança já está em curso e exige repensar as relações com a Ásia.

O deslocamento do eixo se assemelha à queda de Constantinopla, na segunda metade do século 15, que marcou o fim do império bizantino e da própria Idade Média, comparou Pochmann. Aquele acontecimento alterou as rotas comerciais, levando os povos europeus a buscar alternativas de navegação que resultariam, entre outras mudanças, na chegada às Américas. Atualmente, as novas rotas da seda, projeto que simboliza o avanço técnico, econômico, político e cultural da China, seriam o sucedâneo daquela mudança de era.

O terceiro desafio, também colado a mudanças incontornáveis, é a transformação do trabalho. Se a Revolução Industrial transformou os humanos em extensão das máquinas, a revolução digital está simplesmente substituindo os humanos pelas máquinas.

“O Brasil está sendo desafiado a encarar a realidade não mais com uma perspectiva de passado”, disse. Quanto às mudanças climáticas, “a diversidade de nossos biomas é uma espécie de passaporte para um desenvolvimento de outro tipo. Só a Amazônia representa 20% das florestas tropicais do mundo. É um ativo sobre o qual deveríamos ter mais inteligência”.

Já o deslocamento para o Oriente pede “uma integração sul-americana de novo tipo, em que o Oceano Pacífico tenha igual ou maior importância que o Atlântico”. O fim gradual do trabalho assalariado e regulado, como imaginado anteriormente, pode ser enfrentado com a criação de um fundo público permanente para compor renda para as pessoas, sugeriu Pochmann.

A manutenção e aceitação das coisas como estão, aí incluída a economia, são baseadas em grande parte no medo das maiorias diante do que não conseguem entender. E o desejo de sentir-se seguras faz as pessoas acreditarem e apoiarem conceitos e práticas como a emenda constitucional 95, que estabeleceu o teto de gastos no Brasil. A análise é de Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp. “O teto passa a ideia de que o dinheiro estaria contido, guardado num pote. As pessoas precisam acreditar que estão seguras”, comentou.

Utilizando-se e alimentando-se de tal medo e necessidade de segurança, ainda que falsa, o capitalismo vende a ideia de que a economia é uma ciência exata e obscurece os processos sociais que, no plano da realidade, determinam os fenômenos econômicos. Belluzzo tomou o exemplo da globalização para ilustrar o fenômeno. Apresentada pelos meios de comunicação e por especialistas como algo quase natural, a globalização apresenta resultados diferentes para cada país, dependendo do grau de desobediência adotado frente aos ditames neoliberais.

“Esse fenômeno cultural pressupõe um pensamento quase religioso. É o que Walter Benjamin chamava de capitalismo como religião. Você precisa entregar às pessoas um breviário religioso. A economia fica enclausurada num espartilho, o que sufoca o legado do Iluminismo, que reafirmava a importância da dúvida”, completou Belluzzo.

Não por acaso os teóricos e as lideranças políticas neoliberais avaliam os efeitos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19 como “um infortúnio da natureza, agravados por políticas populistas”, conforme destacou o professor da Universidade de Buenos Aires Claudio Katz. “Mas, para mim, são consequências do capitalismo dependente que caracteriza nossa região”, contrapôs. Dependência, lembrou ele, especialmente do império estadunidense.

Katz apontou cinco problemas estruturais que marcam o capitalismo de dependência: o modelo exportador baseado em matérias-primas; a deterioração da indústria, que na América Latina ficou restrita aos produtos básicos; agravamento da exploração e da informalidade da força de trabalho, o que achata a classe média; a questão da dívida; a magnitude das crises na região, muito mais intensas por causa da baixa renda média das populações.

Ele acredita que a mudança desse quadro passa necessariamente pela disputa política em curso no continente. “Temos de enfrentar um golpismo institucional de uma casta judicial instalada na mídia e o militarismo”, expressões, na opinião de Katz, de “uma direita que já não se sente tão segura quanto nos tempos do auge do neoliberalismo. Direita que precisa de expressões de falsa rebeldia para se manter”. O bolsonarismo é uma dessas expressões, disse o professor.

Katz lembrou que “ninguém venceu a partida na América Latina. Está em aberto”. Na Argentina, disse, o maior problema é que o governo atual não consegue dar resposta ao “terrível empobrecimento popular”. Segundo o professor, o problema subjacente na América Latina reside na “contradição da busca por um capitalismo próspero sem a participação da classe que deveria comandar esse processo. Nossa burguesia quer um projeto capitalista sem a presença dos capitalistas dispostos a um projeto de transformação”. Nessa brecha, sugere Katz, uma oportunidade e um desafio: “É preciso a renovação dos projetos socialistas”.

A economista Ana Luiza Matos de Oliveira, professora da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO), recordou como a política de austeridade fiscal e monetária, dominante no Brasil, produz efeitos perversos mais intensos sobre os pobres, mulheres e negros. O principal pilar dessa austeridade é o desfinanciamento de políticas públicas, como a política cultural. Para enfrentar tal quadro, propõe Ana Luiza: “O Brasil deve adotar a distribuição de renda como motor de um novo modelo de desenvolvimento, o que já deu muito certo no passado. E a expansão da infraestrutura social, focada nas áreas onde a gente tem mais vulnerabilidade: urbana, transportes, saneamento, e a própria questão da cultura, como chaves para um novo projeto de desenvolvimento”.

Ana Luiza recorreu ao bem-sucedido exemplo sul-coreano de construção de uma indústria cultural. “Na crise dos anos 1990, o governo da Coreia do Sul percebeu que precisava melhorar sua imagem internacional. Uma das ações foi o maciço investimento na cultura. Hoje a cultura sul-coreana invade o mundo. O que seria do Brasil se a gente fizesse o mesmo? A gente tem tudo para conquistar o mundo”, disse. Na opinião dela, essa opção, além de alternativa econômica, serviria para reposicionar a imagem do país no mundo.

Os Seminários

Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir os debates desta quinta-feira, clique aqui.

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