Leia abaixo o artigo de Yeva Nersisyan e L. Randall Wray publicado originalmente no The Guardiam (clique aqui para acessar o original, em inglês), traduzido por Wilson Jr, da equipe do Observatório da Crise do Coronavírus.

Coronavírus destruiu o mito do déficit

Apenas um mês atrás, uma conta de estímulo de US$ 2 trilhões seria impensável. Quem se indigna com déficits (chamado fiscalista) teria perguntado como se planejava pagar por isso, se queixaria de sobrecarregar nossos netos com dívidas e falir nosso país. Bernie Sanders teve que se desdobrar para explicar como ele pagaria por um Green New Deal ou pelo Medicare for All. Hoje esses programas não parecem mais tão caros. De repente o governo está planejando “jogar dinheiro de helicóptero”. Larry Kudlow, que atacou incansavelmente o estímulo de Obama durante a crise financeira global, está divulgando o estímulo atual como “o maior programa de assistência à Wall Street da história dos Estados Unidos”.

Ninguém está perguntando seriamente como vamos pagar por esse estímulo – e eles não deveriam. Foi necessária uma pandemia global para explodir o mito de que os gastos do governo federal devem ser “pagos”.

A crise do Covid-19 demonstrou claramente o que já deveria ser óbvio: abastecer a sociedade – seja com alimentos, desinfetantes, papel higiênico ou suprimentos médicos – não é uma questão financeira. Se não conseguirmos produzir máscaras, ventiladores ou alimentos suficientes, as finanças não ajudarão. A capacidade da sociedade de produzir produto real é o que de fato limita sua capacidade de abastecimento. E é exatamente isso que o vírus ameaça, à medida que os trabalhadores ficam em casa, as cadeias de suprimentos quebram e as empresas fecham suas portas.

No lado financeiro, um governo soberano sempre pode comprar o que está à venda em sua moeda, como os teóricos da teoria monetária moderna explicam há muito tempo. Ele não pode ficar sem dinheiro, porque simplesmente credita contas bancárias quando gasta. Isso não é uma prescrição, mas sim uma descrição do que realmente acontece. Nos Estados Unidos, o Congresso aprova o orçamento, enquanto o Tesouro, em cooperação com seu agente fiscal, o Federal Reserve (Banco Central), faz os pagamentos necessários. Isso acontece ao longo do ciclo de negócios, com ou sem crise. Se o governo dos EUA quiser comprar mais ventiladores ou máscaras, o financiamento não será um impedimento.

Mas o que acontece quando ventiladores e máscaras não estão disponíveis para venda, mesmo quando as empresas estão operando 24/7? Mais dinheiro pode não resolver o problema, mas o governo ainda tem um papel crucial a desempenhar. Durante a segunda guerra mundial, os EUA rapidamente se tornaram “o arsenal da democracia”, redirecionando sua capacidade produtiva para atender às necessidades da guerra. Por meio de um planejamento diligente, “as caixas de batom tornaram-se caixas de bombas, latas de cerveja foram para granadas de mão, calculadoras para a pistolas automáticas e aspiradores de pó para peças das máscaras de gás ”. Conseguimos reduzir o tempo de produção dos navios da Classe Liberty de 365 dias para 92, 62 e, finalmente, para um dia. Podemos mobilizar nossos recursos mais uma vez para construir hospitais temporários e garantir um suprimento suficiente de equipamentos médicos e tudo o mais necessário para superar a crise.

Aderindo ao mito do déficit, temos vivido abaixo de nossas condições por décadas – paralisados pela crença de que o financiamento é a restrição. Períodos prolongados de recuperação lenta e alto desemprego desincentivaram o investimento e prejudicaram nossa capacidade produtiva e a produtividade do trabalho. Mesmo nos bons tempos, nossa economia deixa milhões de desempregados ou subempregados e uma quantidade significativa de nossa capacidade ociosa (antes da epidemia, nossas fábricas estavam operando apenas com três quartos da capacidade). Investimos pouco em saúde pública, educação e infraestrutura e impusemos limitações extremas aos programas de assistência social. Até o momento em que este artigo foi escrito, o governo ainda planeja expulsar 700.000 americanos do programa de cupons de alimentos, para economizar apenas US$ 4,2 bilhões em cinco anos. Vivemos na “pobreza no meio da abundância”, como John Maynard Keynes observou apropriadamente na Grande Depressão.

Depois que essa crise passar, fiscalistas voltarão à tona, tentando colocar obstáculos para políticas progressistas. Seremos informados de que não podemos pagar pelo Medicare for All, Jobs for All, College for All ou interromper a mudança climática. Os centristas tentarão voltar ao normal – isto é, uma economia que deixa muitos para trás.

É imperativo que resistamos. O que os progressistas precisam pressionar é a criação de um tipo diferente de economia por meio de um Green New Deal. Para fazer isso, precisamos distinguir entre os mitos e as restrições reais, entendendo “que o que é tecnicamente viável é financeiramente possível” para um governo soberano. Oferecer o Green New Deal é sobre recursos e tecnologia reais, não sobre finanças.

O New Deal original também foi prejudicado por preocupações com gastos excessivos do governo. A segunda guerra mundial eliminou esse obstáculo, desencadeando uma mobilização econômica extraordinária e décadas de prosperidade. Esperamos que a crise do coronavírus não seja tão destrutiva quanto a Grande Depressão, mas se há uma coisa que ela deve destruir, é o mito do déficit.

Yeva Nersisyan é professora associada de economia no Franklin and Marshall College

L Randall Wray é pesquisador do Levy Institute e professor de economia do Bard College

 

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