Presídios superlotados, com condições de higiene questionáveis. Como entender a pandemia numa realidade em que presos têm que dividir colchões e se amontoam em celas insalubres, sem luz solar e ventilação suficiente e, na maior parte das vezes, sem acesso a itens básicos de higiene ou mesmo ao fornecimento ininterrupto de água?

No país, há 460,7 mil vagas nas prisões, mas 752,2 mil custodiados, um déficit de 40% de vagas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Além de condições insalubres de existência, os presídios também padecem de atendimento médico. Segundo dados do departamento, há um profissional para cada mil presos, ao passo que a média para a população é de 1,86. São 7.344 profissionais de saúde atuando diretamente nas 1.412 unidades prisionais brasileiras. Estima-se que 31% das unidades não tenham acesso a atendimento médico. E quando afirma-se que 70% das unidades têm assistência médica significa, muitas vezes, que um médico aparece duas vezes por semana para atendimento. Não é um pequeno hospital, ou uma enfermaria.

Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, uma pessoa presa tem seis vezes mais chances de morrer do que alguém fora do cárcere e 34 vezes mais chance de contrair tuberculose. No país, 10% dos casos de tuberculose ocorrem em pessoa presa – 1403 casos a cada cem mil presos, enquanto a sociedade, em geral, registra quarenta a cada cem mil pessoas.

A incidência de HIV e Aids nas cadeias é o dobro daquela registrada na população. São 7.742 registros de infectados.

Sobre o contágio da Covid-19, o que pode-se dizer até 8 de abril é que, pelos dados oficiais, no painel de monitoramento no site do Ministério da Justiça, existiam 114 casos suspeitos, zero confirmados e zero mortes pela Covid-19. O Depen, no entanto, não sabe dizer quantos testes foram feitos. Como se sabe, os exames são considerados importantes para pegar também casos assintomáticos.

Entidades da área denunciam a carência de testes em unidades de saúde, fato que, certamente, se reproduz dentro dos presídios, provavelmente até em maior intensidade. Os dados podem estar muito aquém da realidade nacional, num sistema de subnotificação que gera preocupação e medo por parte de presos, familiares e agentes de saúde.

Recomendações do CNJ

Diante do cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu ainda em 17 de março a Recomendação de número 62. O texto, dirigido aos tribunais e magistrados, recomenda adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

Assinado pelo presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, as propostas nele contidas caminham no sentido de flexibilizar as medidas de restrição de liberdade. Entre outras medidas, o conselho recomendou a magistrados a reavaliação de prisões provisórias de grupos vulneráveis (como mães, pessoas com deficiência e indígenas), ou quando o “estabelecimento estiver superlotado ou sem atendimento médico”. Sugeriu ainda a revisão de prisões preventivas de mais de noventa dias ou que resultem de crimes menos graves. Quanto aos custodiados que já cumprem pena, pede-se que os juízes avaliem, por exemplo, a concessão de saída antecipada. Outra recomendação é mandar para o regime domiciliar quem está no aberto ou no semiaberto ou tiver sintomas da doença.

A iniciativa foi elogiada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com recomendação aos demais países da região para que adotem medida semelhante.

Não há um levantamento consolidado sobre a adesão dos Tribunais de Justiça, mas essas diretrizes já são adotadas em ao menos quinze estados (até primeira semana de abril de 2020). Importante este monitoramento, já que das 1.412 unidades prisionais brasileiras, a imensa maioria delas são estaduais. Cabe ao governo federal orientar, repassar recursos às estaduais, além da gestão propriamente dita de apenas cinco unidades federais que admitem presos, condenados ou provisórios, de alta periculosidade.

Outras iniciativas na área

A Recomendação 62 do CNJ vem sendo usada como base por órgãos do Judiciário e entidades da sociedade civil especialistas na área criminal e/ou de direitos humanos.

Levantam-se aqui as iniciativas que ganharam mais repercussão no país desde a chegada da pandemia no Brasil:

16 de março: mesmo antes da Recomendação 62, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa – Márcio Thomaz Bastos (IDDD) entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com pedido de liminar que, diante da “situação precária e desumana dos presídios e penitenciárias” que expõe a população carcerária e os servidores ao risco de contágio, requere medidas alternativas ao cárcere.

17 de março: o ministro Marco Aurélio Mello levou ao plenário uma liminar que considera o pedido do IDDD, com base na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, ajuizada pelo Psol, e determina uma série de medidas emergenciais de saúde e humanitárias direcionadas ao sistema prisional.

18 de março: o plenário do STF derrubou a liminar.

27 de março: três ex-ministros da Justiça (José Eduardo Cardozo, Eugênio Aragão e José Carlos Dias), mais 113 organizações da sociedade civil, entre outras figuras públicas, encaminharam uma carta aberta ao STF em que pedem “providências concretas no sentido de determinar o desencarceramento dos grupos mais vulneráveis à pandemia da Covid-19, no que chamaram de  “o prenúncio de uma tragédia”.

28 de março: foi protocolada uma nova cautelar pelo Psol, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), defensorias públicas do Estado de São Paulo e do Rio de Janeiro e Associação Direitos Humanos em Rede (Conectas Direitos Humanos) .

As movimentações diante do STF seguiram no âmbito da ADPF 347, ajuizada em junho de 2015, e tinham todas o mesmo sentido: demandar da Suprema Corte a imposição de providências ao poder público para solucionar a crise prisional diante da pandemia e que fossem observadas todas as alternativas previstas na legislação para proteger presos incluídos do grupo de risco, além de  gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por pessoa menor de 12 anos ou com deficiência.

As ações pedem também que a Corte determine que União e estados cumpram a Constituição Federal garantindo nas unidades prisionais do território nacional: abastecimento de água, assistência material integral; entrega de suficientes itens de higiene e limpeza das celas e roupas para presos; fornecimento de equipamentos de proteção individual para os agentes públicos da administração penitenciária e socioeducativa, como máscaras, luvas e produtos de higiene para mãos, manutenção de equipes mínimas de saúde nas unidades prisionais, seguindo padrões de portarias interministeriais.

Governos estaduais e tribunas de justiça ao redor do Brasil tomaram medidas divergentes: enquanto alguns caminham no sentido de desencarceramento, outros apostam em medidas com restrição dos direitos de pessoas presas como a suspensão das visitas por familiares e da saída temporária, como no estado de São Paulo, onde como resposta às medidas restritivas, presos organizaram rebeliões e fugas.

No Brasil, segundo o Depen, já foram soltos, temporariamente, 32 mil pessoas desde o começo da crise – quase 5% da população total.

Importante também destacar que várias associações e entidade de direitos humanos têm feito um trabalho de arrecadação, compra e distribuição de material de higiene para tentar suprir as necessidades básicas dos presos que não são atendidas pelo Estado. Destaque para o trabalho da Igreja Universal do Reino de Deus, que anunciou a distribuição de quinhentos mil kits de higiene para presidiários de todo o Brasil. Eles estão sendo transportados em 54 caminhões, via campanha da Universal dos Presídios, que arrecadou, em fevereiro, 7,5 milhões de reais para a aquisição dos produtos.

Governo federal

Na contramão do que recomendam as entidades especialistas no Brasil e no mundo, o governo federal toma medidas e recomenda como linha geral para os estados a restrição de direitos. O debate gira em torno do punitivismo penal, que se opõe ao garantismo — visto como leniência com o crime.

O ministro Sergio Moro parece não estar disposto a se convencer da ideia de que o Estado é o responsável pela integridade física dos seus presos e que os riscos da pandemia são maiores lá dentro. Ajoelha-se às imposições do populismo penal e fecha os olhos para riscos de sua omissão.

Em artigo no Estadão no dia 30 de março, Moro e o diretor-geral do Depen Fabiano Bordignon, usaram a expressão “solturavirus” para  tecer críticas à Recomendação nº 62 do CNJ. Disseram ainda, contrariando a todos especialistas, que há um ambiente de relativa segurança para o sistema prisional em relação ao coronavírus pela própria condição do preso de estar isolado da sociedade. Terminam dizendo que o “fique em casa” defendido como medida universal, para os presos deriva em ficar nas prisões, domicílio dessa população.

Além disso, Moro discursou sobre o risco da soltura usando um caso que nada tinha a ver com ela, de uma pessoa presa com armas e drogas no Rio Grande do Sul que não havia sido libertada. No dia seguinte, desculpou-se pelo erro, mas a determinação no Depen para adensar a narrativa do perigo à sociedade foi distribuída internamente. Importante ressaltar que a recomendação do CNJ é explícita ao vetar benefício a autores de crimes graves ou que representem ameaça à sociedade.

O governo federal como resposta à crise:

– Recomendou salas individuais para os doentes e suspeitos, o que é inexequível, dada a realidade dos presídios, marcada pela superlotação. Na falta de celas individuais para o isolamento, o ministério sugere também que detentos doentes sejam separados por cortinas ou marcas no chão.

– Reforçou a comunicação de que a medida de flexibilização das penas é maléfica já que, segundo a pasta, “número de presos liberados é elevado e que alguns saíram sem tornozeleira eletrônica (..) e muitos dos beneficiados seriam integrantes de organizações criminosas”. Além disso, veiculam nomes como do ex-deputado Eduardo Cunha como um dos beneficiados na tentativa de desacreditar o processo de julgamento dos TJ’s.

– Enfatizou, em orientações aos estados, medidas como a restrição de visitas e de saídas temporárias como forma de evitar o contato dos presos com o público externo – suspendendo uma porta de entrada importante para insumos básicos de higiene, alimentação, vestimentas e medicamentos, que nem o Estado consegue oferecer e que são levados pelas famílias nas visitas.

– Pediu a autoridades do país que lhe fossem enviados relatos de crimes graves e violentos cometidos por quem saiu da cadeia na crise.

– Abriu processo de compra de insumos para distribuir nas prisões, como álcool, sabonete, luvas e máscaras de proteção, ao custo de 49 milhões de reais, mas tem tido dificuldades para localizar fornecedores.

– Prometeu vacinação dos presos para gripe a partir de 9 de maio. A imunização não impede a a Covid-19, mas servirá para aliviar a incidência de doenças respiratórias.

Vale dizer que dos Estados Unidos (por estados) ao Irã, passando pela Europa e América Latina, vários países tomaram decisões de flexibilizar as penas. Mais uma vez, o governo federal apresenta medidas que parecem insuficientes e tem como expectativa o agravamento da crise.

Agravamento do quadro

As medidas de restrição recomendadas pelo Ministério da Justiça trazem consequências imediatas que devem estar no radar: primeiro, a exposição ao risco de vida de milhares de presos; segundo, a potencialização da crise na saúde pública mesmo fora dos presídios, já que os presos terão que ser atendidos em hospitais; e, por último, a possibilidade de uma resposta violenta do crime organizado, como ocorrido no estado de São Paulo.

No final de março, 834 presos fugiram em rebeliões no estado. As fugas e rebeliões se deram após decisão do Tribunal de Justiça de SP de suspender saída de presos em regime semi-aberto com a justificativa de impedir alastramento nas unidades penitenciárias. Especialistas chamam atenção para um crescente aumento da tensão entre presos e o crime organizado em meio à pandemia.

Tendo esses fatores em mente, conclui-se que, ao contrário do que quer fazer parecer o governo federal, não se trata de uma “recomendação de concessão de regime domiciliar de forma generalizada para presos” para impor o caos à sociedade.

A tomada de medidas de desencarceramento racional, a partir de critérios pensados de forma fundamentada pelo CNJ é uma forma de proteger toda a população. O avanço da contaminação no sistema carcerário afeta, também, quem está do lado de fora, afinal 83.604 servidores prisionais entram e saem das prisões, todos os dias e podem levar a contaminação para as ruas.

Como medidas imediatas para evitar o agravamento da crise, deve-se imediatamente: levantar relatório com condição de lotação, saúde e higiene das unidades; seguir as recomendações do CNJ de maneira coletiva, ou seja, sem perder tempo com avaliações individuais de juízes que trabalham reativamente. Além de, por óbvio, garantir o cumprimento da Constituição de 1988 no que diz respeito às garantias de direitos básicos das quase oitocentas mil pessoas que cumprem pena no sistema carcerário no Brasil.

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