Reforma agrária às avessas é marcada por ocupação do capital estrangeiro
Publicado originalmente na Agência PT de Notícias
Do ponto de vista dos indígenas, originários detentores do conjunto de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados da extensão territorial que forma o país, o quinto maior do mundo, o Brasil ingressou em sua sexta reforma na propriedade de suas terras. Ou seja, a apropriação em grandes dimensões de terras pelo capital internacional (land grabbing) que faz com que o país ocupe atualmente a terceira na posição no mundo, após a República do Congo e Rússia, em transações negociadas por empresas estrangeiras, segundo relatório Land Matrix para o ano de 2018.
Esse processo de estrangeirização revela parte da dinâmica da financeirização da riqueza que acompanha a globalização capitalista na acumulação de ativos através dos negócios de compra das terras, compreendendo, inclusive, a captura dos recursos naturais, biodiversidade e demais componentes do uso agrário. Isso tem ocorrido por arrendamento, contratos de parcerias e/ou de gaveta, compra direta de imóveis rurais por intermédio de investimento direto do exterior, fundos de pensões em participações nas companhias proprietárias de imóveis rurais, ações de empresas terceirizadas (nacional ou estrangeira, com joint venture), intercâmbio de debêntures conversíveis, entre outras.
Assim, no primeiro quarto do século 21, o Brasil aprofunda a perda da soberania nacional, esvaziando setores econômicos que ainda resistiam à presença dominante do capital estrangeiro. Segundo informações oficiais, o capital externo já se encontra instalado em terras da nação pertencentes à quase dois terços dos municípios brasileiros.
Além disso, a participação estrangeira tem sido relativamente superior atualmente nas regiões mais capitalizadas, como Sudeste, Sul e Centro-Oeste, enquanto nos estados do Norte e Nordeste detêm presença do capital externo abaixo de 15% da área total. Mas para o governo Bolsonaro e sua base parlamentar ruralista, o país encontra-se atrasado, precisando rapidamente alterar a legislação existente, conforme aponta o projeto de lei no Senado Federal (PL 2.963/2019) que revoga a proteção na aquisição de imóvel rural por estrangeiros.
Diante disso, a abertura para a entrada em massa dos capitais internacionais consistiria na sexta reforma da estrutura agrária nacional, uma vez que da perspectiva histórica, os indígenas tiveram contato com uma primeira alteração fundiária do território existente a partir da chegada lusitana, no século 16. Pela partilha da terra em 15 lotes denominados por capitanias hereditárias, o sentido da colonização se conformou através de grandes propriedades territoriais voltadas à produção de monoculturas para exportação e uso generalizado do trabalho escravo.
A expansão territorial, com a ampliação das fronteiras na condição de colônia e de país independente, constituiu uma segunda forma de mudança fundiária no Brasil. Desde o Tratado de Tordesilhas, de 1494, passando por um conjunto diverso de tratados diplomáticos (Utrecht, em 1713, Madrid, em 1750, Santo Idelfonso, 1777, Badajós, em 1801, Limites Brasil/Uruguai, em 1851, Ayacucho em 1867, Paz com Paraguai em 1872, Tratado de 1897, Limites de navegação de 1907, Rio de Janeiro, em 1909, entre outros), a área territorial foi ampliada até o início do século 20.
A terceira reforma agrária teria acontecido a partir da segunda metade do século 19, quando a disponibilização de terras foi concedida para atrair mão de obra branca imigrante. O que se mostrou estratégico pelo projeto de branqueamento da elite brasileira de implantar o modo de produção capitalista que excluísse negros e miscigenados do acesso a terra com a abolição da escravatura.
Na quarta reforma da estrutura agrária nacional, o objetivo foi o de responder à pressão por acesso a terra no centro sul do país, o que levou ao avanço da fronteira agropecuária para as regiões do oeste e norte nacional. Diversos projetos de exploração serviram para esse processo de deslocamento humano na direção ao Centro-Oeste e à Amazônia legal.
Por fim, a quinta reforma agrária levou estabelecida pela formação das periferias urbanas segregadas em grande parte das principais cidades do país. Para a formação do proletariado industrial desde a década de 1930, o projeto de sociedade urbana implicou o deslocamento de gigantesca massa humana do campo para as cidades, que sem planejamento urbano, constituíram periferias em áreas estendidas ocupadas por favelas e moradias precárias.
Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas, e presidente da Fundação Perseu Abramo