A questão social e o “Plano de Transformação Nacional”
Por Eduardo Fagnani
Nos últimos 12 anos, o Brasil logrou importantes progressos sociais. O fato determinante foi o crescimento da economia, que, após 25 anos, voltou a ter espaço na agenda governamental, e foram adotadas políticas fiscais e monetárias menos restritivas. Essa postura foi reforçada em 2007, ano do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Com a crise financeira internacional de 2008, adotaram-se medidas anticíclicas e os bancos públicos lançaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito, que mais que dobrou, praticamente, entre 2003 e 2013.
O crescimento abriu espaço para a geração de empregos. Entre 2003 e 2013, mais de 22 milhões de empregos formais foram criados, e a taxa de desemprego caiu pela metade (de 12,3%, para 5,5%). O valor do salário mínimo aumentou mais de 70% acima da inflação.
O impulso da atividade econômica possibilitou a expansão do gasto social: em valores reais, o Gasto Social Federal per capita passou de R$ 2.100 para R$ 3.325, entre 2004 e 2010. O principal item de ampliação desse gasto consistiu nas transferências de renda da Seguridade Social (previdência rural e urbana, assistência social e seguro-desemprego), sobretudo devido aos impactos da valorização do salário mínimo sobre o piso dos benefícios.
Em 2012, foram concedidos mais de 37 milhões de benefícios (70% equivalem ao piso do salário mínimo). As transferências de renda via Bolsa Família também cresceram, atingindo 0,45% do PIB.
Além da transferência de renda para as famílias, também houve expansão dos gastos sociais na oferta dos serviços. Os gastos federais com educação, por exemplo, dobraram (valores constantes) entre 2000 e 2010 (passando, de R$ 21,2, para 45,5 bilhões).
Esses fatores foram determinantes para a melhoria dos indicadores sociais como, por exemplo: redução das desigualdades sociais e da miséria extrema, mobilidade social ascendente e ampliação da renda e do consumo das famílias.
Em suma, na década passada foram engendradas alternativas ao modelo econômico que vinha sendo implantado desde 1990 e que resultaram na melhoria dos padrões de vida da população. A economia cresceu e simultaneamente distribuiu renda, fato inédito nos últimos 50 anos.
O crescimento teve consequências na impulsão do mercado de trabalho e do gasto social, potencializando os efeitos redistributivos da Seguridade Social instituída pela Constituição de 1988. O programa Bolsa Família teve papel destacado na mitigação da fome e das vulnerabilidades associadas à miséria extrema. Caminhou-se no sentido da construção de um modelo econômico menos perverso que o padrão histórico.
Embora positivos, os progressos sociais recentes não apagaram as marcas profundas da crônica desigualdade social brasileira que têm raízes históricas herdadas do passado escravocrata, do caráter específico do capitalismo tardio, da curta experiência democrática do século 20 e do acelerado processo de urbanização, na ausência da reforma agrária e de políticas urbanas e sociais.
O Brasil ainda permanece entre as 20 nações com maior concentração de renda do mundo. A secular concentração da propriedade agrária continua intocada. As desigualdades também se refletem na apropriação física do espaço urbano, bem como nas injustiças do sistema tributário.
A estrutura do mercado de trabalho ainda guarda traços e características de economias subdesenvolvidas ou periféricas. As iniquidades também estão presentes no acesso aos serviços sociais básicos. As políticas sociais universais foram mercantilizadas e apresentam lacunas de oferta entre classes sociais e regiões do País.
Em suma, ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza que implicam miséria, pobreza, baixos salários e acesso precário aos bens e serviços sociais básicos. São traços marcantes do subdesenvolvimento que precisam ser superados, se queremos um país justo e civilizado.
Esse enfrentamento repõe o conflito redistributivo no centro do debate nacional. A superação desse embate em favor da sociedade e da cidadania depende da capacidade dos cidadãos para se apropriarem dos recursos que têm sido capturados pelo poder econômico nos ganhos especulativos sobre a dívida pública, e por inúmeros mecanismos de transferências tributárias.
Será preciso desbravar caminhos, para construir uma agenda de transformação que priorize a equidade e a justiça social. Essa tarefa requer que se façam complexas mudanças estruturais: reforma tributária, revisão do pacto federativo, enfrentamento dos processos de mercantilização e o fortalecimento da gestão estatal.
A tarefa também pressupõe o reforço do papel do Estado, a revisão dos pressupostos que dão substrato ao chamado “tripé” macroeconômico (câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de inflação) e a reforma política que resgate a democracia e a esfera pública plural e inclusiva.
É verdade que essa perspectiva é limitada pela correlação de forças amplamente favorável ao poder econômico. Da mesma forma, a democracia brasileira é um processo em construção e ainda prevalece na sociedade um caldo de cultura antidemocrático e favorável ao golpismo. É certo que enfrentar as velhas e as novas desigualdades exige que o conflito redistributivo favoreça a sociedade e a cidadania em detrimento do poder econômico, o que coloca limites à manutenção da tradicional política de conciliação entre interesses políticos opostos.
O desafio do campo progressista é ampliar os diálogos na perspectiva de construir consensos para formular um projeto nacional nucleado no combate às diversas faces das desigualdades sociais, o que demanda construir um campo de alianças e debates públicos cada vez mais ampliados.
Essa tarefa é complexa também em função da fragmentação da luta política do campo progressista e da crise do sistema político e partidário. “Os partidos estão desengonçados; os movimentos sociais, fracionados; os sindicatos, aquém do espaço que lhes cabe”, alerta a professora Maria da Conceição Tavares (entrevista a Saul Leblon em Carta Capital, 11/06/2014: “Resistir para avançar. O resto é arrocho”).
Dentre as forças progressistas, o Partido dos Trabalhadores é quem reúne as melhores condições de liderar este processo e de retomar o seu papel de instituição articuladora das demandas da sociedade na perspectiva da transformação social.
Neste cenário, é oportuno o fato de a presidenta Dilma Rousseff ter anunciado que o “Plano de Transformação Nacional” será o principal eixo do seu programa de governo. Segundo ela, a iniciativa engloba um conjunto de medidas que levarão o País a “um novo ciclo histórico de desenvolvimento”.
A envergadura das propostas concretas que serão definidas dirá se o Partido dos Trabalhadores aproveitará a oportunidade histórica de liderar o debate sobre os grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesenvolvimento político, econômico e social do País – pano de fundo do mal-estar contemporâneo exposto pelas manifestações populares.
No campo conservador, nada de novo no front. As viúvas nostálgicas do Plano Real pregam a volta ao passado: focalização das políticas sociais como estratégia única para enfrentar a questão social e demais “medidas impopulares” reivindicadas pelo capital financeiro: redução da meta de inflação, ampliação do superávit fiscal e fim da regra de reajuste do salário mínimo são algumas das propostas que estão sendo elaboradas nos bastidores das campanhas eleitorais.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) e coordenador da rede Plataforma Política Social.
Artigo publicado originalmente no site Brasil Debate