Assim é se lhe parece
Jornalismo não é ciência exata. Jornais erram. Jornalistas erram. Erros admitidos e reparados, tocamos em frente. Às vezes, o erro tem consequências gravíssimas, como no caso paradigmático da Escola Base. O famoso “espírito de manada” muitas vezes contribui para que pecados originais de pequena dimensão se agravem. O espírito de manada funciona assim: por decisão superior ou por interesse próprio, um jornalista decide “repercutir” uma notícia que dá como fato, sem fazer a confirmação independente daquela informação. Corre o risco de repercutir o erro. De ampliar o erro. De reproduzir a premissa falsa. Já vivi essa situação, “repercutindo” reportagens da revista Veja, na TV Globo: é como se você validasse um bilhete premiado sem ter tido a oportunidade de confirmar antes a premiação.
Assim se deram algumas das grandes “crises” que o Brasil enfrentou desde que o governo Lula se instalou no poder, como o “caos aéreo”, a “epidemia de febre amarela” e a “gripe suína”. Má fé, incapacidade técnica, preguiça, preconceito ideológico e a crença de que a mídia deve ser “de oposição” a qualquer custo, mesmo que ao fazer isso atropele a verdade, levaram a mídia corporativa a exagerar, distorcer ou repercutir acriticamente informações que, mais tarde, se demonstrou serem exageradas ou simplesmente fictícias.
No episódio da febre amarela, por exemplo, o texto-símbolo em minha opinião foi o “Alerta Amarelo”, de Eliane Cantanhêde, da Folha de S. Paulo, em que a jornalista incentivou todos os brasileiros a correr para o posto de saúde e tomar a vacina, independentemente das contra-indicações existentes.
Ela escreveu:
Bem, o Orçamento, os impostos e os cortes de gastos estão a mil por hora em Brasília neste pós-CPMF, com ministros do Executivo, todo o Legislativo e o Judiciário em pânico diante da tesoura da área econômica do governo. O fantasma da febre amarela, portanto, paira sobre o país como um alerta num momento crucial, para que a saúde e a educação sejam preservadas antes de tudo o mais. Senão, Lula, o aedes aegypti vem, pica e mata sabe-se lá quantos neste ano – e nos seguintes.
O alerta da colunista foi apenas um texto irresponsável no conjunto da obra do mau jornalismo. A vacinação disparou. Gente que não precisava ou não podia ter tomado a vacina, tomou. Houve pelo menos um caso de morte que poderia ter sido evitado. E a febre amarela? O número de casos foi inferior ao registrado em anos anteriores, quando não houve o mesmo alarde.
No “caos aéreo”, um conjunto de acontecimentos distintos e vagamente relacionados foi utilizado para provocar a demissão do ministro da Defesa, Waldir Pires, substituído por Nelson Jobim. Problemas reais de infraestrutura e de mau gerenciamento foram reunidos sob a tarja do “caos aéreo” à greve de controladores de vôo e ao acidente com o avião da TAM em Congonhas. O acidente, uma fatalidade causada por erro humano, foi atribuído ao presidente da República por um colunista da Folha de S. Paulo. Lula foi acusado, na primeira página, pelo homicídio de 200 passageiros.
O psicanalista Francisco Daudt escreveu:
Gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. O assassino não é só aquele que enfia a faca, mas o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime.
No caso da gripe suína, uma epidemia real foi de tal forma “espetacularizada” que colocou autoridades públicas sob pressão para tomar medidas que, em retrospectiva, sabemos agora terem sido exageradas – especialmente o adiamento do início das aulas em vários estados brasileiros.
Na Folha de S. Paulo, o filósofo Hélio Schwartsman escreveu:
A pandemia de gripe provocada pela nova variante do vírus A H1N1 poderá atingir entre 35 milhões e 67 milhões de brasileiros ao longo das próximas cinco a oito semanas. De 3 milhões a 16 milhões desenvolverão algum tipo de complicação a exigir tratamento médico e entre 205 mil e 4,4 milhões precisarão ser hospitalizados.
A repórter Conceição Lemes desmontou de forma primorosa o texto doidivanas da Folha.
Só posso especular sobre os motivos que levaram ao surgimento desse novo jornalismo, à brasileira: decadência da importância relativa dos jornais como formadores de opinião; denuncismo manchetista, como forma de enfrentar a competição com o infotainment; briga por um público mobilizado por outras formas e meios de entretenimento e informação (TV a cabo, DVDs, internet, celulares); demissão dos jornalistas mais experientes das redações e a centralização do poder nos aquários dos chefes; estridência de quem luta para evitar ou mascarar sua própria irrelevância; compromisso ideológico dos donos da mídia com o projeto político e econômico do PSDB/DEM.
Mas o que mais me preocupa é um fenômeno paralelo a esse, que diz respeito exclusivamente ao campo da informação, já que qualquer um é livre para dizer as besteiras que quiser nas colunas de opinião: uma certa “flexibilização” das regras do que deve ou não ser publicado, uma tentativa de legitimar novos critérios que afastam ainda mais o jornalismo da verdade factual.
Um exemplo disso foi o texto publicado na revista Veja, de autoria do repórter Márcio Aith, na famosa denúncia das contas (falsas, soubemos depois) de autoridades do governo Lula no Exterior. Na ocasião, Aith escreveu:
Por todos os meios legais, VEJA tentou confirmar a veracidade do material. Submetido a uma perícia contratada pela revista, o material apresentou inúmeras inconsistências, mas nenhuma suficientemente forte para eliminar completamente a possibilidade de os papéis conterem dados verídicos.
Leia aqui o texto que escrevi a respeito
Aqui, o texto completo publicado na revista
Antes, um repórter se esforçava para provar o conteúdo de um documento, antes de publicá-lo. Caso contrário, a reportagem ia para a gaveta ou o lixo.
Agora, pelo critério enunciado por Aith, você publica se não conseguir provar que aquele conteúdo é falso. Não parece, mas isso representa uma enormidade, já que abre as portas para publicar qualquer coisa.
É como se, no Direito, o ônus da prova fosse transferido para o acusado. Preso, teria de desprovar as acusações que o levaram à cadeia.
Isso abre espaço para, por exemplo, na véspera de uma eleição importante, você publicar qualquer denúncia, de qualquer origem, desde que não tenha conseguido desprovar a autenticidade de um documento. Falsificadores, mãos à obra: seu trabalho pode sair na capa de um jornal ou numa revista de circulação nacional. Quem sabe no Jornal Nacional.
Sim, porque mais adiante, depois dos episódios relativos ao chamado “caos aéreo”, o diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, chegou a enunciar uma teoria geral desse jornalismo frouxo, no famoso “testando hipóteses”.
Em artigo publicado no jornal O Globo, em defesa da cobertura que os jornais fizeram do acidente da TAM, Kamel argumentou:
Na cobertura da tragédia da TAM, a grande imprensa se portou como devia. Não é pitonisa, como não é adivinha, desde o primeiro instante foi, honestamente, testando hipóteses, montando um quebra-cabeça que está longe do fim.
O teste de hipóteses de Kamel é uma espécie de carta branca para a especulação em busca da verdade factual. Como bom mistificador, Kamel inclui um “honestamente” ali na frase: nós, leitores, devemos acreditar piamente na honestidade dos jornais, tanto quanto acreditamos em Deus ou no ataque do Corinthians. É um convite à especulação, desde que precedido pela confissão de que, sim, estamos procurando a verdade factual.
Aith e Kamel, na prática, pregam o afrouxamento dos critérios tradicionais do jornalismo e abrem espaço ainda maior para os assassinatos de caráter, o jornalismo de dossiê e outras práticas que afastam nossa profissão do ideal de serviço público e a tornam ainda mais sujeita a ser usada como ferramenta em disputas políticas e sobretudo econômicas (como o notório comprometimento de setores da mídia com os interesses do banqueiro Daniel Dantas didaticamente expôs).
Mais recentemente, no episódio da publicação de uma ficha policial falsa da ministra Dilma Rousseff, a Folha de S. Paulo parece ter endossado esses novos critérios.
Fez isso, curiosamente, em uma reportagem em que admitia ter errado.
No texto, intitulado Autenticidade de ficha de Dilma não é provada, escreveu o jornal:
O primeiro erro foi afirmar na Primeira Página que a origem da ficha era o “arquivo [do] DOPS”. Na verdade, o jornal recebeu a imagem por e-mail. O segundo erro foi tratar como autêntica uma ficha cuja autenticidade, pelas informações hoje disponíveis, não pode ser assegurada – bem como não pode ser descartada.
Nesse caso, a Folha criou uma nova categoria para a notícia. Temos as notícias autênticas. As fraudes. E as notícias que frequentam uma espécie de limbo, que merecem ou não credibilidade, de acordo com o gosto do freguês. A essa categoria de notícias pertence a ficha policial da ministra Dilma, cuja autenticidade “não pode ser assegurada – bem como não pode ser descartada”.
No mesmo texto, a Folha cuidou de suscitar dúvidas no leitor sobre sua própria admissão de erro, no parágrafo final:
Pesquisadores acadêmicos, opositores da ditadura e ex-agentes de segurança se dividem. Há quem identifique indícios de fraude e quem aponte sinais de autenticidade da ficha. Apenas parte dos acervos dos velhos DOPS está nos arquivos públicos. Muitos documentos foram desviados por funcionários e hoje constituem arquivos privados.
Ou seja, a ficha falsa da Dilma que a Folha não encontrou nos arquivos oficiais pode estar por aí, em algum “arquivo privado”, talvez o mesmo “arquivo privado” que “produziu” a ficha e a remeteu por e-mail ao jornal.
Nesse conjunto de critérios que relacionei acima cabe a publicação de qualquer coisa: dossiês até que sejam autenticados, dossiês cujo conteúdo a gente não consegue provar, nem desprovar; dossiês que a gente acredite, honestamente, serem verdadeiros. O novo jornalismo nos pede licença para mentir, distorcer, omitir, descontextualizar, exagerar, especular, espalhar boatos, lendas e fantasias.
É a vitória da verossimilhança sobre a verdade factual. Assim é se lhe parece.
Publicado no blog Vi o Mundo em 25/02/2010.