A releitura da obra de maior irradiação política do historiador marxista brasileiro mais criativo expõe os dilemas entre reforma e revolução que está no centro da experiência petista de governar o Brasil.

Tradicionalizar o passado é referi-lo às perspectivas do presente, afirmou o mestre Mário de Andrade. Sem tradicionalizar o passado, não é possível adquirir o sentido da “modernidade”, isto é, saber como nos situarmos como sujeitos plenos no vir a ser do mundo.

Há mais de uma razão para reler criticamente A revolução brasileira quarenta após a sua ruidosa edição. O livro de 1966 é, certamente, um episódio decisivo na cultura da esquerda brasileira.

O golpe militar de 1964 não significara apenas um trauma e a desarticulação de todo o sistema de forças populares acumulado desde o pós-guerra e em processos diferenciados de radicalização na conjuntura dos inícios dos anos 1960. Havia no pós-64, de fato, uma crise de sentido da cultura hegemônica da esquerda brasileira, em particular de seu pólo dominante, o PCB. Esta crise de sentido se expressava de modo agudo no questionamento da teoria da revolução brasileira.

A revolução brasileira de Caio Prado Júnior pretendia ser, neste contexto, o diagnóstico do encerramento de uma história (que ele caracterizaria mais como farsa do que como tragédia) e a proposta de um novo recomeço para a esquerda. 1964 não fora propriamente uma derrota que as forças de esquerda deveriam reivindicar para organizar a resistência ao regime militar. Fruto de erros dogmáticos, de ilusões cultivadas e alianças espúrias, a ruína do sistema nacional-desenvolvimentista – que ia do PCB e do trabalhismo de esquerda às correntes de centro mais moderadas originadas da tradição varguista – era mais a oportunidade para um recomeço seguro e autêntico da esquerda brasileira. A revolução brasileira subestimava claramente o sentido estratégico duradouro do sistema de poder instaurado em 1964: “Não há dúvida que, superada a situação política atual derivado golpe reacionário e repressivo de 1 de abril, o movimento ascensional das massas trabalhadoras rurais se reanimará em ritmo acelerado”. E chega até mesmo a afirmar um “lado positivo” em 1964 pelo fato de o golpe militar ter destruído o sistema “em que o movimento operário se viu envolvido e em que se comprometia cada vez mais.”

Caio Prado era decerto um personagem com legitimidade histórica para realizar este duro acerto de contas com a tradição dominante da esquerda brasileira. Dissidente público do PCB, partido com o qual mantinha, no entanto, laços de fidelidade, autor de uma obra original e rica de interpretação da história do país, ele mantinha desde o Estado Novo de 1937-1945 uma polêmica continuada com a linha do PCB que, com exceção do período 1947-1954, orientou a sua força estratégica para a inserção no sistema nacionalista de Vargas e, depois, do nacional-desenvolvimentismo. Inserido nas tradições paulistas desde sempre críticas e avessas ao varguismo, Caio Prado defendera desde o início uma frente do PCB com os liberais contra a ditadura. Nos anos 1950, fora também critico severo do apoio do PCB à candidatura Lott e ao governo JK.

É este sentido crítico e corrosivo, de fortíssima cisão e refundação, que fez a fortuna de A revolução brasileira. Para o livro convergiram todas as correntes de esquerda antagonistas e em cisão com o PCB em crise, acelerando e intensificando o ocaso da centralidade deste partido. Em um sentido mais longo, como maior partido da esquerda brasileira que sucedeu à crise do PCB, o PT tem as suas proto-origens neste pensamento de finitude e refundação.

Socialismo, guerrilha e classe

Entre o nascimento do PT e A revolução brasileira, no entanto, transcorreram-se treze anos de intensa história nacional da luta de classes, de tragédias e formação de esperanças novas para as esquerdas brasileiras. E Caio Prado, com a sua vida intelectual e militante encerrada no grande ciclo pecebista, não foi um intelectual orgânico do nascimento do PT.

Mas é possível também, com as devidas mediações, falar de uma linha de continuidade entre o marxismo de Caio Prado e a cultura do PT, além da dimensão negativa de recusa à cultura do “nacional-desenvolvimentismo”, depois condensada na crítica o populismo de Francisco Weffort, este sim, um forte intelectual orgânico ao nascimento do PT. Trata-se da linha do marxismo que firma a necessidade de uma política classista independente, lastreada socialmente e nos valores do mundo do trabalho. Caio Prado identificava na valorização dos direitos dos trabalhadores rurais e em uma clara política autônoma nacional de industrialização dirigida pelo Estado, as linhas mestras de uma política classista capaz de conectar o que a nossa origem colonial havia desde sempre cindido, isto é, produção e consumo, direitos do trabalho e Nação.

Os analistas do impacto de A revolução brasileira na cultura da esquerda brasileira em geral acentuaram uma clara defasagem entre a função crítica do livro, na sua vertente deslegitimadora da tradição pecebista, e a sua capacidade de polarizar programaticamente ou estrategicamente uma refundação da esquerda.

Como afirma Jacob Gorender, em “Do pecado original ao desastre de 1964” (em “História e Ideologia – Ensaios sobre Caio Prado Júnior”, organizado por Maria Ângela D´Incao, Unesp, 1989), A revolução brasileira “ganhou especial aceitação nas áreas da Polop e adjacências, sob influência de idéias trotskistas e luxemburguistas. Isto porque Caio apresentava a economia brasileira integrada no sistema mundial do imperialismo e negava a existência do campesinato.”

A crítica do caráter etapista da revolução brasileira, anti-latifundiária e anti-imperialista, traçada por Caio Prado veio, apesar de sua expressa oposição, alimentar as teses do seu caráter imediatamente socialista, impulsionando as correntes de radicalização da esquerda que reagiu ao fechamento de 1968 com o apelo à guerrilha, urbana e rural, seduzida pelo caminho cubano, guevarista ou chinês.

No entanto, após estas experiências frustradas e massacradas, nos anos 1970, de lento renascimento das lutas operárias e populares, foi este sentido marxista de uma política classista que organizou o vetor de nascimento do PT. Política de classes na cena política e de conformação na base, de uma estrutura sindical de trabalhadores urbanos e rurais, eram os dois vetores propostos por Caio Prado. PT e CUT seriam os dois vetores políticos que ganharam força nos anos 1980.

Um marxismo de transição

Em um ensaio lúcido “Um ajuste de contas com a tradição”, Marco Aurélio Garcia identificou o livro de Caio Prado “como um texto de transição no pensamento da esquerda brasileira. Realizando uma crítica demolidora de um marxismo de corte nitidamente evolucionista, Caio Prado Júnior não foi capaz de romper com o paradigma economicista que deduzia a revolução das estruturas da sociedade, transformando-a em um processo sem sujeito.”

De fato, o marxismo de Caio Prado ainda trabalhava com uma visão determinista da história, inserindo o Brasil em uma dinâmica internacional de superação do sistema capitalista em direção ao socialismo. Mais do que isto, a sua problemática central, como de toda a sua geração, ainda é da construção inacabada da Nação. O tema democrático e relação entre socialismo e democracia ainda não organizava o pensamento de Caio Prado. A mútua configuração entre socialismo e democracia na esquerda brasileira só se afirmaria como vetor crescentemente dominante nos anos 1980, com o aprendizado das lutas contra a ditadura, com o novo fôlego das vertentes culturais da desestalinização e com a superação do doutrinarismo da Polop.

Partido classista e socialista, sem patrões e cioso de sua delimitação com todas as forças burguesas, o PT em seus primeiros anos de desenvolvimento nos anos 1980 teria um tratamento muito escasso da questão nacional. É nos anos 1990, de acesso crítico à cultura do nacional-desenvolvimentismo, e empenhado em se nacionalizar e construir uma alternativa à crise do país, que o PT vai enriquecer a sua dimensão nacional.

Classismo, democracia e Nação compõem, então, em uma gramática ainda a ser formulada o programa do PT que, maduro, formou a coalizão que levou Lula à presidência do país.

É sob o prisma desta terceira grande linha de continuidade, classismo e desenvolvimento nacional, que o livro A revolução brasileira se faz presente na história do PT. E é sob esta perspectiva que podem ser relidos criticamente os temas do conceito de revolução, relação entre revolução e história brasileira e revolução brasileira e socialismo que organizam a teia deste livro memorável.

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