As canções de Cartola repõem dentro de nós, contra o mundo-moinho, a personalíssima ventura de viver em comunidade.

“Todo mundo tem o direito/ de viver cantando/ O meu único defeito é / viver pensando/ em que não realizei / e é difícil realizar / Se eu pudesse dar um jeito/ mudaria o meu pensar”. Os versos de “Silêncio de um cipreste”, do disco de despedida de Cartola, nos aproximam do mistério deste sujeito lírico e reflexivo que fez da Mangueira a terra mítica de todos os brasileiros.

Nada mais distante do ser Cartola que a imagem ingênua e algo naturalizante do compositor raiz e fruto mais viçoso da árvore de uma vida feliz em comunidade que lhe foi dado como destino. Nesta imagem de harmonias, perde-se o enredo dramático da vida de Agenor de Oliveira e a construção de sentidos de sua criação. Expressiva de vivências, a música de Cartola é sobretudo criação de mundos possíveis.

O autor daquela canção que talvez seja o maior elogio da vida em comunidade entre nós, “Sala de recepção” (“Habitada por gente simples e tão pobre/ que só tem o sol que a todos cobre / Como podes, Mangueira cantar? …”) é também o compositor maior da cisão, da dor e abismo da experiência de viver neste mundo (“O mundo é um moinho”).

Entre a Estação Primeira e Cartola não houve só harmonias. Um dos fundadores da Mangueira, aos 19 anos, para a qual trouxe o verde e rosa do Rancho dos Arrepiados, ala carnavalesca criada em volta dos trabalhadores da fábrica de tecidos Aliança, primeiro diretor de harmonia da Escola e autor do samba-enredo do primeiro desfile, passou de 1949 a 1977 sem participar das apresentações da agremiação. O samba de Cartola, mais lento, compassado, composto, não se habituou, como ele mesmo disse, referindo-se aos compositores de sua geração, ao samba corrido, “mais puxado”, “de surdo, caixa-de-guerra, tarol”: “eu estava acostumado com outro andamento”. Em 1961, seu belo “Tempos idos”, com Carlos Cachaça, parceiro dileto, ficou em terceiro lugar na quadra da Mangueira. Resolveu nunca mais compor samba-enredo.

Antes de ser redimido no encontro amoroso com Dona Zica e depois da experiência do acolhimento ainda muito jovem com Deolinda, Cartola viveu a experiência agônica do amor com Donária.

Quase não sobreviveu. Só aos 65 anos, quando gravou o primeiro disco no selo Marcus Pereira (1974), o maior compositor da Mangueira pôde começar a sair da duríssima luta pela sobrevivência de cada dia. Antes disso, foi pedreiro (o uso de uma chapéu coco para evitar que pó de cimento lhe caísse sobre os cabelos deu origem ao apelido), peixeiro, sorveteiro, cavalariço, vendedor de queijos, cambono de macumba, contínuo, chefe de barraca da Cofap, servente, lavador de carros. Uma meningite quase o matou em 1946. “Grande Deus” (“Deus, grande Deus,/ meu destino bem vê / foi traçado pelos dedos teus’) é uma canção de renascimento.

Na sublime “O inverno do meu tempo” (Cartola/Roberto Nascimento), que abre seu último disco, uma espécie de testamento lírico, depois de dizer que “os sonhos do passado/ No passado estão presentes/ No amor que não envelhece jamais”, o poeta fala das “Nossas vidas muito sofridas/ Caminhos tortuosos/ Entre flores e espinhos demais”. E conclui: “Já não sinto saudades/ Saudades de nada que fiz/ No inverno do tempo, da vida/ Oh! Deus, eu me sinto feliz”.

É talvez a esta vitória de sentido sobre o mundo-moinho que Carlos Drummond de Andrade em uma crônica no Jornal do Brasil, publicada alguns dias antes de Cartola falecer, em novembro de 1980, se refira ao escrever que “Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentido e pensamenteando sempre o gosto desta comida”.

A última alegria do compositor, como nos conta a interessante e engajadíssima biografia “Cartola, os tempos idos”, de Marília Trindade Barbosa e Arthur de Oliveira Filho. “Hermínio Bello de Carvalho leu o artigo todo para Cartola. Recortou-o do jornal e pregou-o na parede com esparadrapo, ao lado da cama. Cartola, por momentos esquecido da própria dor, quedou-se longo tempo absorto, espiando o recorte, com a aparência de quem vivia uma profunda sensação de plenitude”. Encontro de poetas.

Dois humanismos

Chamava-se “Cartola no moinho do mundo” o artigo de Drummond. Dá até para sentir o ponto de interação da emoção do poeta da “Máquina do mundo”, dos “homens partidos em tempos partidos”, da “falta que ama” com o sujeito lírico do samba. É como se as canções de Cartola fizessem o moinho girar ao revés, humanizando a máquina do mundo, reunindo os pedaços, curando as nossas carências. Por que?

A visão cósmica de Cartola compõe, em um primeiro plano, o amor da companheira: o encontro com Zica foi algo como uma refundação de sua vida, de sua dignidade, da ordem de recomposição dos afetos. Foi através dela, por exemplo, que reaproximou-se do pai que praticamente o expulsou de casa por mau comportamento quando ainda era adolescente.

A bela coletânea “Mangueira – Sambas de terreiro e outros sambas”, editado pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, registra Cartola, à vontade, entre os seus: Cícero( estivador), Fandinho (motorista), Chico Modesto (verdureiro), Quincas do Cavaco (operário especializado), Pelado (colchoeiro), Preto Rico (operário em fábricas de cerâmica e de vidro), Zagaia (funcionário público), Zé com Fome ou Zé da Zilda (bombeiro hidráulico), Zé Ramos (Fábrica Colombo), Jurandir (Caldereiro), Mauro Pereira (pintor de parede), Xangô (estivador), Padeirinho (estivador), Babau (chaveiro de bondes da Light), os trabalhadores poetas da comunidade. Drummond nunca teve existencialmente apoio em uma tal rede comunitária de afetos, embora sempre sonhasse com ela.

Cartola era decerto um humanista cosmocêntrico, cria em Deus feito natureza e harmonia do mundo, à diferença do humanismo antropocêntrico de Drummond, cioso da dignidade e da autonomia do humano. Em entrevista, Cartola disse: “mas Deus está em toda parte, não está só na Igreja. Se você estiver numa aflição, estiver no meio de uma mata e se ajoelhar defronte de um tronco de árvore e rezar com fé, ela representa Deus pra você, porque a árvore é da natureza.”

O amor, a comunidade, o cosmos, o sujeito lírico criador: Cartola, poeta das imagens autênticas, que vê a lua no alto do morro como um pandeiro, ampliando o nosso repertório romântico, ou que diante do amor-agônico, proclama que é “preciso uma nova abolição”, na referência à condição de origem logo ali no passado de sua geração, é quase sempre o melhor intérprete de suas canções.

“Finda a tempestade/ o sol nascerá / finda esta saudade/ hei de ter outro alguém para amar”.

JG

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