O projeto de um partido político transformador é, por definição, inseparável da afirmação de novos valores político-culturais, no sentido do exercício diário da práxis pública, no nosso caso, de uma práxis socialista. No último quarto do século XX, vivemos no Brasil, uma aventura singular com a construção de um partido socialista e democrático que emergiu num ambiente marcado, durante séculos, pelo sinete de uma cultura política patriarcal e oligárquica.

Forças populares gestadas na resistência à ditadura e nas lutas operárias, no final dos anos setenta, produziram uma rica síntese ao realizar a crítica teórica e prática da experiência da esquerda que as precedeu e, ao mesmo tempo, incorporaram os mais significativos e generosos valores daquela experiência. Esse foi o chão e o conflito de culturas de onde brotou o Partido dos Trabalhadores. Essa tem sido a tensão permanente que atravessa sua prática ao longo de vinte e seis anos de lutas.

Há dez anos, o Diretório Nacional do PT instituiu, a partir da lei que estabeleceu o Fundo Partidário, a Fundação Perseu Abramo. Instituiu-a com esse nome para homenagear um entre os mais significativos militantes da esquerda brasileira na área da comunicação, durante a resistência à ditadura militar. Um profissional que marcou sua passagem pela imprensa – tanto convencional como alternativa – pelo rigor e coerência com que defendeu os princípios do socialismo democrático entre nós: o jornalista Perseu Abramo, fundador e dirigente do Partido até o fim de sua vida.

O projeto político-cultural encarnado pela Fundação Perseu Abramo cultiva, há dez anos, o exercício da pluralidade do pensamento para dentro do PT e mantém a vocação inequívoca para o diálogo, como testemunha este seminário, com as diversas vertentes da esquerda democrática do Brasil, do continente e de outras partes do mundo. Erigiu, ao longo desses dez anos de trabalho, um conjunto de formulações traduzidas numa tarefa de grande envergadura para as esquerdas no país: constituir-se num espaço permanente de debate e elaboração de sínteses teóricas e programáticas das grandes contradições de uma sociedade visceralmente desigual e injusta. Uma sociedade que ainda hoje não se despediu de suas heranças escravocratas. Uma formação social que vive acossada pela vertigem da fratura, mas historicamente se vê contida por fortíssimos mecanismos de controle político-culturais atados às mãos de um segmento minoritário que atravessa governos e crises e revela uma grande capacidade interna de recomposição em torno dos seus interesses de classe.

A emergência do governo Lula, com a eleição de 2002, resultante da lenta maturação do processo de lutas sociais mobilizado pelas classes trabalhadoras, desde o final dos anos setenta do século XX, e da sua capacidade de diálogo com as expectativas de amplos setores da sociedade brasileira pôs em cheque, pela primeira vez, aqueles mecanismos de controle. Viragem histórica, consolidada pela vitória inequívoca de 2006, deriva de uma crise de dupla face: a falência do projeto neoliberal para o Brasil, exposta na agonia final do mandato de Fernando Henrique e agora refletida na debilidade do discurso da direita, no segundo turno das eleições, e a reduzida capacidade das esquerdas de afirmar na agenda nacional seu projeto alternativo, a partir da análise crítica dos novos padrões de desenvolvimento capitalista do país e de sua própria experiência político-administrativa nos espaços institucionais que conquistou. Em outras palavras: a direita perdeu o chão nacional e internacional que nutria as raízes do seu projeto e as esquerdas, prisioneiras de fatores condicionantes herdados, ainda não foram capazes de desenhar com clareza a cartografia da transição rumo a um novo paradigma de desenvolvimento para o país, que supere o nacional-desenvolvimentismo e o neoliberalismo: um paradigma pós-neoliberal que retome a perspectiva democrática e popular e aponte para a sociedade socialista que almejamos.

A tarefa de instituições partidárias como a Fundação Perseu Abramo ganha relevância num quadro de debilidades para enfrentar os desafios ético-programáticos postos na agenda dos socialistas democráticos brasileiros, em particular aqueles organizados no PT. Como resultado de um trabalho coletivo cuidadoso, inicialmente conduzido pelo companheiro Luiz Dulci, primeiro presidente da Fundação, estruturamos essa construção político-cultural ancorada em cinco projetos: O Centro Sérgio Buarque de Holanda de Memória e História; a Editora Fundação Perseu Abramo; o Núcleo de Opinião Pública; o Projeto de Cultura Política (antes Projeto de Reflexão); a Revista Teoria e Debate criada pelo Partido há 19 anos que, hoje, circula sob responsabilidade da Fundação Perseu Abramo e, precisamente neste número, apresenta uma nova reforma gráfica e editorial para ampliar seu alcance e audiência na sociedade brasileira; e, mais recentemente, um sexto projeto: o Núcleo de Cooperação Internacional. Todos esses projetos são articulados por um Núcleo Administrativo e Financeiro enxuto que viemos construindo ao longo da década instalados na sede própria, agora ampliada, para oferecer melhores condições de atendimento a quem nos procura, e de trabalho, aos nossos servidores.

A vitória política, de envergadura histórica, obtida nas urnas pelo companheiro Lula, com 58 milhões de votos, para um segundo mandato à Presidência da República e do Partido dos Trabalhadores, ao obter a maior votação para as casas do Congresso, além do expressivo avanço para os governos estaduais, demandam do PT três tarefas urgentes e incontornáveis, em diálogo com a sociedade e, em particular, com os demais partidos da esquerda, nossos aliados estratégicos: realizar o debate de balanço dos vinte e seis anos do Partido; o balanço dos quatro anos à frente do governo central; e redefinir as regras internas de funcionamento democrático do partido.

Esse esforço é indispensável para conferir nitidez ao projeto pós-neoliberal de desenvolvimento do Brasil, para o século XXI, e construir uma plataforma unificadora capaz de dar um novo impulso à ação estratégica de médio e longo prazo aos instrumentos construídos para materializá-la: o Partido dos Trabalhadores e os Partidos da Esquerda Democrática.

Que papel podem jogar instituições como a Fundação Perseu Abramo nesse contexto de radicalização da luta de classes; na disputa de hegemonia dos valores que devem predominar na sociedade brasileira; na formulação de um novo projeto de país?

A grande matriz formadora dos quadros da direita brasileira foi o próprio aparato do Estado brasileiro, suas instituições. Para quem deseja conservar o establishment é suficiente. Para quem, ancorado nas lutas sociais, organiza forças para transforma-lo, não. Erram, portanto, aqueles entre nós, que imaginam que as esquerdas, a partir do momento em que alcançam o governo passarão a nutrir-se das energias do Estado para a transformação social que desejamos.

Qual a agenda das Fundações e Institutos dos Partidos de Esquerda para o período imediato? Devemos enfrentar a formulação – em alguns casos a atualização – dos temas das maiorias sociais e também das minorias sociais, para sermos coerentes com a tradição e a sensibilidade da esquerda:

O que temos a dizer sobre a questão da sustentabilidade, quando mobilizamos esforços para por em marcha um novo ciclo de desenvolvimento virtuoso para o Brasil? Qual é a posição das esquerdas brasileiras que sustentarão o governo Lula nos próximos quatro anos sobre a matriz energética do país e seus desafios? Os projetos de energia nuclear de Angra; a construção das hidrelétricas do Rio Madeira e de Belo Monte, no Xingu; as novas tecnologias de produção de energia renovável com o biodiesel?

Que passos devem ser dados para aprofundar o processo de democratização da propriedade da terra, da renda e da tecnologia no sentido de incorporar ao sistema produtivo as centenas de milhares de famílias que demandam legitimamente a Reforma Agrária, garantir a Segurança Alimentar dos brasileiros e consolidar a posição deste país – articulando a propriedade familiar com o agronegócio – como espaço privilegiado para a produção de alimentos para o mundo?

Que propostas vamos construir juntos com uma juventude que – diferentemente das gerações que a antecederam – sente sobre seus ombros a crise da transição de paradigma de desenvolvimento do capitalismo mundial, aqui na periferia; amarga as conseqüências da desigualdade social do país e a ausência de horizonte para realizar-se humanamente e para contribuir de maneira criativa e produtiva com o desenvolvimento da nação?

Que respostas as esquerdas brasileiras oferecem para a sobrevivência da chaga da escravidão incrustada na medula dessa sociedade incapaz ainda de reconhecer a discriminação racial incorporada ao nosso quotidiano?

Como dialogar com espírito maduro e libertário, contemporâneo do mundo, que deve corresponder às esquerdas, sem concessões à hipocrisia e aos moralismos tacanhos e conservadores, os temas irrecusáveis propostos pelos movimentos GLBT, que se constituem numa expressão social de novo tipo no país?

Com que políticas públicas o Estado brasileiro conduzido por uma coalizão de centro-esquerda cuidará adequadamente dos portadores de necessidades especiais e de uma crescente população de idosos merecedora do nosso respeito e carinho e dos investimentos necessários para lhes garantir qualidade de vida digna?

Como enfrentar o colapso do sistema político e representativo do país que nos últimos três mandatos resultou em crises que derrubaram um Presidente da República; abriram espaço para o golpe branco da reeleição de FHC e quase levaram a pique a primeira experiência de um mandato popular na história do país?

Por fim, como enfrentar desafio que justifica nossa existência política e social: ampliar os limites da democracia e radicalizar o seu exercício, libertar a imaginação política das esquerdas do seqüestro ideológico neoliberal e formular os novos contornos do socialismo democrático do século XXI?

Evidentemente a agenda das esquerdas, dos seus partidos e – em particular das suas Fundações e Institutos – vai além desse breve sumário aqui exposto. Mas, seguramente, não poderá ignora-lo para responder ao que a sociedade brasileira exige de nós.
 

S. Paulo, 15 de dezembro de 2006.
Hamilton Pereira da Silva.
Presidente da Fundação Perseu Abramo

Confira os depoimentos e saudações dos amigos e colaboradores sobre os 10 anos da FPA:

Instituto Maurício Grabois
Fundação Friedrich Ebert
Depoimento de Luiz Dulci
Depoimento de Marco Aurélio Garcia
Depoimento de Martha Suplicy
Depoimento de Tarso Genro
Carta de Eugenio Bucci
Carta de Antonio Candido
Outros Depoimentos