Esta é uma das cinco experiências premiados como destaque no ciclo de premiação 1997 do Programa Gestão Pública e Cidadania, iniciativa conjunta da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Ford.Autores: Anna Luiza Salles Souto Ferreira e José Carlos Vaz, a partir de documentos oficiais do programa.

Esta é uma das cinco experiências premiados como destaque no ciclo de premiação 1997 do Programa Gestão Pública e Cidadania, iniciativa conjunta da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação Ford.Autores: Anna Luiza Salles Souto Ferreira e José Carlos Vaz, a partir de documentos oficiais do programa.

O Programa Médico de Família de Niterói-RJ é uma experiência pioneira no Brasil, hoje já bastante consolidada, de assistência integral à saúde das populações de áreas faveladas, definidas como de risco para a saúde. Seu princípio básico é oferecer serviços de saúde através de equipes exclusivamente alocadas a pequenos grupos de famílias em cada comunidade. Cada família é atendida sempre pela mesma equipe profissional, responsável por seu setor. Essa equipe pode, então, desenvolver relações diretas com as pessoas que estão aos seus cuidados. Por sua inserção no ambiente, pode desenvolver um grande conhecimento de todas as situações que envolvem os moradores, conhecer efetivamente cada um deles moradores e acompanhar a evolução da saúde de toda a família, realizando principalmente ações preventivas. A ênfase na qualidade do atendimento, e não na quantidade, é possibilitada pela realização do trabalho de saúde preventiva.

ANTECEDENTES

O primeiro módulo do programa começou operar em setembro de 1992, fruto de um processo de discussão datado das décadas de 70 e 80. A partir de 1989 iniciou-se a municipalização das unidades de saúde, anteriormente a cargo da União e do Estado. Com a implantação do SUS, o município assumiu uma grande rede de unidades de saúde, heterogêneas e desarticuladas.

A reestruturação do modelo de saúde caminhou para a descentralização, conferindo maior autonomia e agilidade ao sistema. Foram criados o Fundo Municipal de Saúde, em 1989 e, posteriormente, a Fundação Municipal de Saúde (1992), responsável pela gerência dos recursos e pela política do setor.

O novo sistema baseou-se no conceito de distritalização da saúde. Foram criados três distritos sanitários, cada qual com competência de gestão das unidades alocadas em seu território. Com autonomia, cada distrito trabalha com recursos técnicos e práticas de saúde adequadas à realidade epidemiológica local. Trata-se de um processo que busca a vincular a clientela ao serviço, ou seja, à equipe profissional, de modo que esta equipe se torne uma referência para a comunidade em tudo o que diz respeito à saúde.

O programa Médico de Família de Niterói surgiu como decorrência de todo esse processo de mudança do modelo de saúde do município. Nos anos de 90 a 92 foi desenvolvida a concepção do programa, com decisivo apoio de profissionais cubanos, por meio do Ministério de Saúde Pública de Cuba.

OBJETIVOS

Os objetivos do programa são definidos pela própria equipe responsável pela sua coordenação como:

"a) Complementar a rede de saúde em Niterói, para que funcione como ‘porta de entrada’ preferencial de um sistema hierarquizado em níveis de complexidade na oferta de serviços;

b) proporcionar assistência integral e continuada à população adscrita, facilitando-lhe acesso a todos os recursos para acompanhamento da saúde, dos indivíduos e da coletividade;

c) relacionar equipe de saúde e comunidade, personalizando e humanizando o atendimento, de forma a interagir na detecção e busca para os problemas de saúde e criando nova consciência acerca dos determinantes do processo saúde/doença."

FUNCIONAMENTO

Atualmente, cerca de 42 mil pessoas são atendidas pelo programa, o que equivale a uns dez por cento da população de Niterói e quarenta por cento da população residente em áreas de risco. A população atingida distribui-se em doze comunidades que têm em comum o fato de serem habitadas por cidadãos de baixa renda e se constituírem como aglomerações de alta densidade populacional, situadas em regiões de encostas ou carentes de infra-estrutura, e também deficientes em termos de cobertura pelos serviços de saúde anteriormente existentes.

Para a operacionalização do programa, cada uma das comunidades é dividida em setores de 200 a 250 famílias, ou seja, entre 1.000 e 1.200 pessoas. Cada um desses setores é atendido por uma equipe básica (um médico generalista e um atendente de enfermagem), que atua em período integral (40 horas semanais). As equipes assumem a responsabilidade pelo setor já na implantação do programa na comunidade. Nessa etapa de estabelecimento da nova forma de atendimento, realizam:

a) o cadastramento das famílias;

b) o levantamento de informações básicas sobre as condições de vida da famílias (aspectos sociais, econômicos e higiênico sanitários);

c) a elaboração de diagnóstico de saúde do setor;

d) a identificação de grupos prioritários (gestantes, recém-nascidos, portadores de doenças).

Depois desse primeiro contato com a população e suas condições de vida e de saúde, as equipes passam a organizar o atendimento aos moradores do setor sob sua responsabilidade, que consiste em:

a) realizar visitas domiciliares regulares, destinadas à busca ativa de pacientes, a identificação de situações de risco para a saúde e ao contato da equipe com famílias;

b) atendimento ambulatorial, em uma instalação modular localizada na própria comunidade (consultas por livre demanda ou situações captadas).

As equipes básicas são auxiliadas por uma equipe de supervisão multidisciplinar (especialistas em Clínica Médica, Pediatria, Toco-ginecologia, Enfermagem, Saúde Coletiva, Serviço Social), que realiza visitas semanais de acompanhamento dos indicadores de saúde e avaliação do atendimento e qualidade dos serviços. As equipes de supervisão também se encarregam da capacitação permanente das equipes básicas, buscando ser um espaço de discussão sobre os principais problemas encontrados no atendimento.

A equipe de supervisão e as equipes básicas têm um coordenador comum, responsável por avaliar o andamento dos trabalhos, agregar e analisar os resultados obtidos e relacionar-se com as instâncias superiores.

Através de um sistema de referências foram estabelecidos diversos níveis de atendimento, permitindo o acesso dos cidadãos a serviços mais complexos ou especializados fora do âmbito do programa, mas sob seu acompanhamento.

A capacitação de recursos humanos é vista pelos gestores do programa como sua maior dificuldade, ao mesmo tempo em que é entendida como uma dificuldade decorrente da própria natureza do trabalho social empreendido. Tem-se buscado corrigir essa deficiência investindo em supervisão e educação continuada.

PARTICIPAÇÃO POPULAR

O Programa Médico de Família de Niterói leva os cidadãos a participarem ativamente em sua gestão, ao buscar que as equipes básicas e os moradores da área de atuação se aproximem e se conheçam. A característica central da mudança do modelo de saúde que Niterói tem vivido é um processo de descentralização acompanhado pelo controle social das políticas de saúde. O Conselho Municipal de Saúde foi precedido por um Pré-Conselho do qual faziam parte as associações de moradores. Em cada distrito foi criado um conselho comunitário de saúde.

No programa Médico de Família essas diretrizes de democratização da gestão tiveram amplo espaço para se materializar, representado pelo processo de controle social pela própria comunidade, que participa da avaliação mensal da atuação do programa e da co-gestão financeira e administrativa: as associações de moradores assumem e participam a desde a contratação dos profissionais até a assinatura dos cheques de pagamento e a avaliação do desempenho do programa.

RECURSOS

Os recursos investidos no programa Médico de Família de Niterói foram da ordem de US$ 3,7 milhões em 1996, o que equivale a cerca de US$ 90 per capita anualmente. Esse volume de recursos tem como origem o Tesouro Municipal e corresponde a aproximadamente dez por cento do total de recursos investidos na rede de saúde do município.

Os gastos com pessoal são o principal item do orçamento do programa. A equipe envolvida é composta por 45 equipes básicas e 21 supervisores, totalizando 111 profissionais. O programa também exige investimento para a instalação de consultórios nas comunidades envolvidas, tornado acessível pelo uso de construções modulares.

Veja também a experiência de Londrina.

RESULTADOS

Os resultados obtidos pelo programa Médico de Família de Niterói são bastante significativos em termos de saúde pública. Em primeiro lugar, o programa estendeu os serviços de saúde a cidadãos que, até então, estavam praticamente alijados deles. Essa extensão, além disso, não se deu somente sob o aspecto do aumento quantitativo dos serviços prestados, mas significou uma mudança de paradigma de prestação de serviços de saúde, enfatizando a saúde integral e as ações preventivas. O Programa Médico de Família de Niterói teve um caráter pioneiro. A partir de seu sucesso, diversos outros municípios passaram a desenvolver programas semelhantes, e a concepção que norteia o programa vem se disseminando no Brasil.

A redução da mortalidade infantil é um indicador bastante expressivo do sucesso: em 1989, antes do processo que levou à implantação do programa, o município apresentava a taxa de 32,5 óbitos por mil. O programa foi implantado em setembro de 1992 e um ano depois a taxa de mortalidade infantil, que se viu reduzida para a marca de 15,8 óbitos por mil, mantendo-se nesse patamar.

No município, o programa é considerado bastante satisfatório. Uma pesquisa de opinião realizada pelo IBOPE apresentou um índice de aprovação de 96%. Além disso, os gestores do programa apontam como elementos de avaliação importantes a expressão da satisfação pelos usuários, a demanda de cidadãos não atendidos pelo programa, a avaliação do Conselho Municipal de Saúde, da Câmara de Vereadores e do próprio executivo municipal.

Além desses resultados, é importante destacar o significado positivo em termos de resgate da credibilidade do serviço público e da prática da gestão participativa. O programa construiu uma modalidade de serviço de saúde que produz resultados não somente sobre os indicadores epidemiológicos, mas contribui também para a democratização da sociedade.


* Publicado originalmente como DICAS nº 96 em 1997

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