A desigualdade envergonha
Cenário de pobreza e fome torna urgente o combate às injustiças sociais no país. Relatório mostra que mais de 7,5 milhões pessoas tentam sobreviver com menos de R$ 150
Um dos campeões mundiais em concentração de renda, o Brasil convive com um histórico e vergonhoso cenário de desigualdades, refletido nos altos índices de pobreza, miséria e fome, entre outras tragédias sociais. Um relatório produzido pela Ação Brasileira de Combate às Desigualdades (ABCD), baseado em indicadores de várias instituições públicas, revela detalhes da dura realidade de grande parte da população. No Brasil, 7,5 milhões de pessoas que tentam sobreviver com menos de R$ 150 por mês.
Intitulado “Um retrato das desigualdades no Brasil”, o documento apresentado ao Congresso, na quarta-feira, 30, mostra um quadro assustador. “Os 0,01% mais ricos do Brasil possuem uma riqueza acumulada, e líquida de dívidas, de R$ 151 milhões em média”, diz um trecho do relatório. “Os 10% mais ricos obtinham, em 2022, um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior do que os 40% mais pobres”, diz o relatório.
O relatório mostra, por exemplo, que a distância entre ricos e pobres é “gigantesca”, mesmo levando em conta que os índices oficiais não capturam toda a magnitude da riqueza dos mais abastados. De acordo com a ABCD, justamente os que menos ganham são os que pagam mais impostos, em função da tributação indireta: os 10% mais pobres pagam 26,4% da sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos 19,2%.
Durante a apresentação dos dados, o parlamento assistiu ao lançamento do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades e de instalação da Frente Parlamentar Mista de Combate às Desigualdades, uma bancada suprapartidária criada para defender as pautas dos movimentos sociais. A iniciativa conta com a coordenação de Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo Lula no Senado, e do deputado Guilherme Boulos (PSol-SP).
A frente parlamentar vai selecionar, para apoio, projetos em análise no Congresso e propor alternativas que contribuam com o combate às desigualdades. Além disso, será feito um monitoramento periódico, através do Observatório Brasileiro de Combate às Desigualdades, ligado à ABCD, de políticas públicas por meio do estabelecimento de metas, indicadores e cobrança de resultados de forma contínua para assegurar que os programas implantados, de fato, promovam a igualdade.
O relatório da ABCD traz uma seleção de 42 indicadores, organizados em oito temas e compilados a partir de dados de fontes públicas e reconhecidas. E traz de dados sobre educação, saúde, renda, riqueza, trabalho, clima e meio ambiente, desigualdades urbanas e acesso a serviços básicos, representação política e no Poder Judiciário, segurança pública, segurança alimentar. O documento também apresenta os desafios para o aprimoramento dos indicadores de desigualdades.
De acordo com o documento, a falta de condições mínimas de dignidade afeta os mais pobres desde o seu nascimento. Além disso, parte expressiva da população ainda mora em áreas precárias ou de risco e tem maior chance de morte, por conta da ausência de serviços adequados de saúde.
“Há um expressivo déficit de serviços públicos sentido pelos mais pobres, afetando as condições mais básicas da cidadania em todas as etapas da vida. Em 2022, mais de 3 crianças de menos de 1 ano morreram por hora, ou quase 90 por dia, totalizando 31.856 óbitos no ano”, informa o levantamento.
Em relação à educação infantil, estima-se, segundo o levantamento, que 69% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos estão sem vagas em creches, afastadas de oportunidades educacionais desde os primeiros anos, com consequências que tendem a perdurar por toda a vida. “A falta de vagas em creches, por sua vez, também afeta a capacidade de suas mães e pais de trabalhar e, assim, melhorar suas condições de vida, contribuindo para perpetuar o ciclo da pobreza”, sintetiza o relatório.
O documento destaca também a realidade dos 33 milhões de brasileiros que vivem em situação de insegurança alimentar grave, uma das desigualdades que o governo Lula tem combatido com iniciativas para promover a inclusão social. Uma delas é o Plano Brasil Sem Fome, lançado pelo presidente na quinta-feira (31), com o objetivo de tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, como ocorreu em 2014. “A questão da fome é uma coisa que mexe muito comigo. Porque a fome não é vista pelos outros. A fome não dói para fora. Ela dói para dentro”, disse Lula, durante o evento, em Teresina (PI).
A pesquisa mostra também que é de 5,8 milhões de domicílios a estimativa de déficit habitacional, o correspondente a 8,4% do total de residências no Brasil. O principal componente do déficit é o ônus excessivo com aluguel, que correspondia, em 2019, a 51,5% do seu total, somando 3,07 milhões de domicílios.
“Essa condição tem apresentado crescimento contínuo entre 2016 e 2019, puxado pelo crescimento do fenômeno na região Sudeste. Em seguida estão os domicílios em habitação precária, totalizando 1,48 milhão ou 24,9%, número próximo da coabitação com 1,412 milhão ou 23,7% do total do déficit”, atesta o documento.
“Quase metade da população – 96 milhões de pessoas – não tinha acesso à rede de esgoto, sendo que a ausência de moradia digna afeta 5,6 milhões de domicílios. Além disso, 4 milhões de pessoas habitam em áreas de risco, sob a possibilidade de perder sua vida e de seus familiares em deslizamentos”, informa.
Abismos regionais
Longe do objetivo preconizado pela Constituição, a desigualdade entre regiões e unidades da federação ainda é marcante, aponta o relatório da ABCD. “A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, é 59% maior na região Norte (15,01 por mil nascidos vivos) do que na região Sul (9,45 por mil nascidos vivos)”, diz o documento.
Também entre os Estados verificam-se diferenças expressivas: Santa Catarina registra 9,23 óbitos para cada mil nascidos vivos, enquanto Acre, Roraima e Amapá apresentaram mais do que o dobro. Quanto à educação, a desigualdade territorial é marcante desde a primeira infância. Enquanto no Sudeste a estimativa é a de que 50,5% das crianças de 0 a 3 anos não têm vagas em creches, na região Norte a proporção sobe para 80,3%. No Estado do Amazonas, chega a 85,1%.
Já em relação ao analfabetismo funcional entre a população de 15 a 64 anos, o contraste se manifesta, sobretudo, quando se compara o negro no Nordeste (45,7%) frente à mulher não negra (branca e amarela) no Sudeste (13,9%).
A oferta de serviços de tratamento sanitário é desigual entre as regiões do país. “No Nordeste, são 40 milhões de pessoas sem esgotamento sanitário, representando 42% do déficit do país. São apenas 29,4% da população atendida contra 81,4% que contam com o serviço na região sudeste. Na região Norte, apenas 13,2% da população é atendida. O Norte do país tem, ainda, a maior proporção de domicílios em déficit habitacional, 13,4% contra 5,9% na região Sul”, diz o documento. •