Nove anos depois de surgir com a promessa de combater a corrupção, a Operação Lava Jato é escancarada com novas revelações mostrando como o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol pressionaram o TRF4, emparedaram ministros do STJ e chantagearam testemunhas. Agora, o corregedor do CNJ vai analisar tudo isso, o destino dos depósitos judiciais e o sumiço de R$ 2,8 bilhões

Em 17 março de 2014, a Operação Lava Jato anunciava na imprensa a prisão do doleiro Alberto Youssef em um hotel do Maranhão. Ele era investigado pela Polícia Federal (PF) por ligações com um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo o ex-deputado federal do Paraná José Janene (PP) e o doleiro Carlos Habib Chater, dono do Posto da Torre, em Brasília, que inspirou o nome da operação.

O caso parecia comum, não fosse o envolvimento com um político e o fato de Yousseff ser um velho conhecido da imprensa. O doleiro havia sido investigado no famigerado caso Banestado, um mega esquema de evasão de divisas durante o governo FHC. R$ 2,45 bilhões foram comprovadamente enviados para fora do país de forma ilegal.

Youssef administrava as contas CC5 (de não residentes) utilizadas para o envio de recursos, tendo movimentado US$ 876,8 milhões entre 1996 e 1999. Teria sonegado R$ 118 milhões em impostos. Mas não chegou a puxar uma cana. O juiz responsável pelo caso era ninguém menos do que Sérgio Moro.

Nove anos depois, a Lava Jato apodrece a olhos vistos e vira a carniça da mídia, que finge não ter sido responsável por ter incensado o hoje senador pelo União Brasil do Paraná. Mas Sergio Moro tem graves problemas pela frente.

Nas últimas semanas, a imprensa trouxe à tona novas denúncias apontando que os esquemas de coerção de testemunhas, manobras ilegais e parcialidade do juiz — já reveladas na Operação Vaza Jato — não se esgotaram em si. Algo de muito sujo continua vindo à tona, para desespero do senador Sergio Moro. Em maio, o Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). É outro que vai enfrentar as barras da Justiça sem ter para quem apelar.

Dallagnol foi cassado porque o TSE considerou que seu pedido  de demissão do Ministério Público Federal (MPF) só ocorreu porque ele queria fugir de uma eventual punição administrativa do órgão. O ex-procurador era alvo de 15 processos disciplinares, que poderiam lhe tornar inelegível. Ao sair do MPF, os processos caducaram e ele, então, se candidatou a deputado. Agora, sem o foro parlamentar pelo qual tanto lutou, ficou à mercê de novos processos judiciais. Daí o medo do que vem pela frente.

O temor de Moro e Dallagnol se justifica. Ambos têm muito o que explicar. Na última semana, conversas inéditas entre procuradores mostram que Moro tentou obter informações para emparedar ministros do Superior Tribunal de Justiça e que o Ministério Público editou súmulas do Tribunal Regional Federal da 4ª Região em matéria penal e de improbidade administrativa. Os diálogos foram revelados por Luis Nassif, do Jornal GGN.

As conversas, que fazem parte do acervo apreendido pela Polícia Federal na Operação Spoofing, voltam a mostrar a proximidade entre a Lava Jato e o desembargador Marcelo Malucelli, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), cujo filho era sócio no escritório de Sérgio Moro. Sabe-se agora que procuradores podem ter deixado de utilizar documentos sobre políticos a pedido de Moro, possivelmente para que o caso não subisse ao Supremo Tribunal Federal. 

“O Russo (Sergio Moro) pediu para autuar os materiais sensíveis, como aquelas três folhas que você me mostrou hoje, em apartado. E ele quis saber onde estão as anotações do MO (Marcelo Odebrecht) sobre o Falcão e ministros do STJ”, disse uma pessoa identificada nas mensagens apenas como “Érika”, possivelmente a delegada Érika Marena. Já “Falcão”, citado no diálogo, é o ministro Francisco Falcão, do STJ. 

Em outro trecho, o procurador Januário Paludo — o principal cérebro da República de Curitiba — afirmou que o desembargador Thompson Flores, do TRF4, pediu que os integrantes da Lava Jato fizessem súmulas para a corte em matéria penal e de improbidade administrativa: “O TRF4 vai editar uma série de súmulas. Quem está coordenando e o vice presidente, nosso ex-colega Lenz, que nos procurou. Ele nos pediu, ‘diante da nossa experiência’ a redação de súmulas em matéria criminal e AIA, especialmente”. Nassif especula que as súmulas provavelmente eram aquelas que aumentaram as penas de Lula.

Nassif ainda trouxe outra revelação: a Lava Jato tentou chantagear Dias Toffoli. Em 20 de agosto de 2016, uma nota vazada para a coluna de Monica Bergamo, na Folha, dava conta de que “funcionário de confiança da corte pode ter caído na rede da Operação Lava Jato”. Na época, a revista Veja publicou uma capa com uma acusação irrelevante contra Dias Toffoli.

“Agora, analisando trechos da Spoofing, fica-se sabendo que a Lava Jato ordenou ao representante da Secretaria da Receita uma devassa nas contas de Toffoli”, relata o jornalista. A ordem foi dada a Roberto Leonel, depois nomeado por Sérgio Moro para chefiar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Os escândalos e as sujeitas reveladas agora ainda dizem respeito também ao manuseio de recursos milionários que teriam sido administrados pela Lava Jato. Depósitos judiciais que somam R$ 300 milhões, determinados ao longo da operação, passarão pelo escrutínio do ministro Luís Felipe Salomão, corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele está promovendo uma inspeção no TRF4 e na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, onde Moro atuou.

Na última semana, o jornalista Marcelo Auler revelou em seu blog a notícia de que parte dos recursos que a Lava Jato arrecadou, depositados em juízo em uma conta bancária, desapareceu. São nada menos do que R$ 2,9 bilhões. O dinheiro estava na conta 0650/005/86404384-3, na agência da Caixa Econômica Federal no fórum da Justiça Federal de Curitiba. Segundo Auler, a conta atingiu um saldo de R$ 3 bilhões. Em setembro de 2022, restavam na conta R$ 842 milhões. Em maio deste ano, meros R$ 32,9 milhões.

Auler identificou que na conta bancária foram feitos dois depósitos provenientes de acordos de leniência assinados com a Brasken S/A (Processo 5022000-13.2017.4.04.7000), no valor de R$ 1.282.463.635,53; e Odebrecht S/A (Processo 5020175-34.2017.4.04.7.000), de R$ 175.337.296,34.

De acordo com dados obtidos por Auler, tais valores eram apenas parte do acordado. Com a Brasken, o total que deveria ser pago era de R$ 3.131.434.851.37, que à época correspondiam a US$ 957.625.336,81. Já no acordo relacionado à Odebrecht o valor acordado era de R$ 3,828 bilhões, em 23 parcelas anuais, com correção pela Selic, o que totalizaria ao final R$ 8,512 milhões.

O jornalista questiona: “Onde foram parar os R$ 2,8 bilhões? Oficialmente ninguém responde essa pergunta. Destrinchar isso será um dos desafios a ser resolvido pelo ministro Salomão. Ele talvez consiga levantar gastos isolados que apareceram na vara, também sem muitos detalhes e sem explicações”. Segundo portaria assinada por Salomão, existem hoje “diversas reclamações disciplinares em face dos juízes e desembargadores” das instâncias judiciais da Lava Jato.

Salomão pediu acesso às provas colhidas na Operação Spoofing, que prendeu o grupo que hackeou os celulares da força-tarefa de Curitiba e do ex-juiz Sergio Moro, no caso conhecido como Vaza Jato — que veio à tona em 2019, por obra do jornalista Glenn Greenwald, na época à frente do The Intercept Brasil. O que está por vir pode reescrever a história do Judiciário e determinar condenações a Moro e Dallagnol.

A correição acontece após o afastamento cautelar do juiz Eduardo Appio de suas funções na 13ª Vara de Curitiba. Desde fevereiro, quando assumiu os processos da Lava Jato, Appio mostrou-se disposto a ouvir investigados pela Lava Jato que sempre reclamaram estarem sendo vítimas de perseguição ou de abusos da operação. Foi ele quem convocou a prestar depoimento o advogado Rodrigo Tacla Duran, que diz ter sido extorquido pela operação.

Depois que a força-tarefa foi extinta e o ex-juiz federal e seu parceiro, então coordenador da Lava Jato, migraram para a política, foi Appio, crítico declarado dos métodos criminosos da República de Curitiba, assumiu os processos remanescentes na 13ª Vara Federal. Ele descobriu ações esquecidas na gaveta, expondo denúncias de abusos lançadas por alvos da operação, como Tacla Duran. Também deu início à apuração do grampo ilegal instalado na cela do doleiro Alberto Youssef.

Appio foi afastado do cargo após ser acusado de tentar investigar informalmente o desembargador Marcelo Malucelli, do TRF4. O magistrado é pai do advogado João Malucelli, que namora a filha de Sergio Moro e é sócio do ex-juiz. A ação de Appio expôs o desembargador, levando-o a se declarar impedido para julgar processos da Lava Jato.

Em 6 de junho, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus preventivo para que Tacla Duran possa entrar no país e participar de uma audiência pública da Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, agendada para esta segunda-feira. O advogado mora na Espanha e foi convidado para prestar esclarecimentos sobre denúncias de extorsão na Lava Jato.

Sobre a investigação do CNJ, Salomão promete apurar possíveis irregularidades, como desvio de função. A iniciativa foi lançada após um acordo entre a força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal (MPF) do Paraná e a Petrobrás. A Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestou contra, e o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu os efeitos do acordo.

O CNJ quer saber detalhes sobre a fase de criação do fundo, os valores totais recebidos e a situação atual desse dinheiro, além de investigar possíveis irregularidades na composição e gestão do saldo. Após a decisão do Supremo, assinada pelo ministro Alexandre de Moraes, houve longo impasse envolvendo a PGR, a União e o Congresso. A disputa foi encerrada com novo acordo, que destinou os R$ 2,66 bilhões para ações de combate a queimadas na Amazônia e a iniciativas na área de educação. O CNJ vai verificar se o dinheiro foi devidamente empregado. •