Terror na sala de parto
O caso do médico Giovanni Quintella Bezerra, preso por estuprar pacientes fortemente sedadas, choca o Brasil e serve para a sociedade repensar em maneiras de coibir a violência sexual
Se há uma coisa que o machismo e a misoginia, este casal que parece ter se juntado para tornar a vida das mulheres um inferno, produzem com facilidade são culturas de violência. Na segunda-feira, 11, as mulheres do Brasil se depararam com mais um caso estarrecedor: foi preso em flagrante no Rio de Janeiro o médico Giovanni Quintella Bezerra. Ele é acusado de estupro contra uma parturiente.
O método do criminoso era simples, descarado: a paciente de cesárea ficava isolada, desacompanhada e totalmente sedada para que ele estuprasse justamente no momento que a OMS chama de “hora dourada”. Nos partos normais ou cirúrgicos humanizados , definem-se assim os minutos imediatamente depois que a criança sai do útero e é colocada no colo da mãe, enquanto as equipes de saúde finalizam o parto em si: esperam a expulsão da placenta ou a retiram, dão pontos caso seja necessário etc. É uma maneira de criar o vínculo mãe-bebê, essencial neste começo de vida para o que nasce. Em geral, opta-se pela anestesia raquidiana, que impede que a paciente sinta a dor da cirurgia, mas permite que ela esteja atenta e consciente.
Enfermeiras e técnicas de enfermagem de um dos hospitais onde Quintella dava plantão há alguns meses começaram a desconfiar de Bezerra pelo uso de roupas cirúrgicas grandes e compridas,. Além disso, ele dispensava o/a acompanhante muito rapidamente e usava uma quantidade anormal de sedativos.
Incomodadas com esses indícios e estranhando também a movimentação corporal de Bezerra durante as cirurgias, as enfermeiras esconderam um celular em um armário com porta de vidro coberto de insulfilme para gravar a cena, certamente cientes de que, sem provas concretas, de nada valeria denunciar o caso. No caso das profissionais de enfermagem, ainda há o peso de várias assimetrias na relação com os profissionais de medicina.
Preso na madrugada de segunda, Quintella passou a ser investigado por estupro de vulnerável. Ao longo do dia de sua prisão, outras vítimas apresentaram-se à polícia a depor. Até o fechamento desta edição, há pelo menos seis casos de outras mulheres que teriam sido vítimas do anestesista. Todas pelo mesmo método: excesso de sedação, roupas largas e compridas para ocultar os movimentos e isolamento visual do resto da equipe, com a dispensa antes do tempo de acompanhante.
Além de ser um estuprador e abusador, Quintella parece ter um gosto especial por deixar mais ou menos evidente seu comportamento violento. Oculta, mas se coloca numa situação em que também exibe, como se tivesse certeza da impunidade ou, no mínimo, da cumplicidade de seus pares.
É como se ele organizasse o ato, contando com o fato de que outros homens presentes fariam vista grossa ou não se importariam com uma “oportunidade” que, talvez, ele se sentisse um otário em não aproveitar, supondo que qualquer outro homem em sua situação faria o mesmo.
Muitos o fazem. No ano passado, 30.553 meninas de até 13 anos foram estupradas, de um total de 66.020 casos de estupro e estupro de vulnerável, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O documento é elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que faz o levantamento a partir dos registros de ocorrência em delegacias.
Para os crimes de estupro em geral, houve aumento de 4,2% em relação a 2020. Crianças e adolescentes até 13 anos, incluindo gênero feminino e masculino, representam 61,3% do total de vítimas — em 2020, o índice foi de 60,6% e, em 2019, de 57,9%. O crime de estupro é classificado como estupro de vulnerável nas situações em que a vítima tem menos de 14 anos ou não pode consentir nem oferecer resistência, como no caso das parturientes submetidas a forte sedação.
Pode-se tranquilamente falar em uma cultura do estupro, diante dessas estatísticas. Este tipo de violência sexual, que costuma ocorrer com mulheres na proporção de 9 de 10 casos, pressupõe que há uma prevalência do desejo sexual masculino sobre seu objeto e, pior, que o não-consentimento é um detalhe a ser resolvido à base da força física bruta, da ameaça verbal e/ou da intimidação.
As culturas machistas e o ambiente patriarcal, ainda que operem de formas mais brandas ou melífluas, reforçam a ideia de submissão e de anuência feminina diante dos imperativos e urgências masculinas. O já longo caminho percorrido por movimentos feministas e de mulheres até se desnaturalizar a violência e o assédio ainda tem muito que brigar para que a cultura do estupro deixe de operar tão à vontade.
A frieza e falta de reação de Quintella quando foi preso em flagrante, fato registrado pela equipe da delegada Bárbara Lomba, no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João do Meriti (RJ), cujo vídeo circulou amplamente pelos telejornais e pelas redes sociais, corroboram essas suspeitas. O médico, como muitos criminosos em série, planejava com cuidado seus passos e não tinha menor traço de empatia por suas vítimas. Neste momento, Quintella está em prisão preventiva e foi transferido para Bangu 8, enquanto seguem as investigações.
Não deixa de ser uma ironia pavorosa que o estuprador tenha escolhido justo um hospital que leva o nome de Heloneida Studart, uma feminista com militância que se estendeu por mais de cinco décadas.
Escritora e ensaísta, a cearense nascida em 1932 chegou ao Rio de Janeiro nos anos 1950, deslanchou a carreira de jornalista num dos períodos mais interessantes da imprensa carioca. Da geração pioneira do feminismo da década de 1960, fundou o Centro da Mulher Brasileira, ao lado de Rose Maria Muraro.
Presa em 1969, Heloneida retomou a militância interrompida em 1964, quando o Partido Comunista Brasileiro foi colocado na clandestinidade. Na redemocratização, a partir de 1978, ela cumpriu seis mandatos como deputada estadual pelo Rio de Janeiro, o último integrando a bancada do PT.
Será necessário esperar o final das investigações para apurar se o hospital foi negligente, como tenta provar o advogado de uma das vítimas. Ou, pior: se colegas médicos foram coniventes com as práticas sexualmente abusivas. Igualmente imprescindível que mulheres e movimentos sociais feministas fiquem atentos ao processo judiciário que se seguirá para que o criminoso seja punido no rigor da lei, uma vez que, em muitos casos, alivia-se a pena do estuprador sob os pretextos mais esdrúxulos ou, pior, nem mesmo são considerados culpados. Afinal, num país em que a violência contra a mulher e os feminicídios são tratados como corriqueiros, há uma mentalidade de que “alguma a mulher fez para ser estuprada”. •