Esbirros autoritários

Partido de Bolsonaro tenta calar na Justiça Eleitoral protestos contra o governo. Esforço de restabelecer a Censura acabou saindo pela culatra. No Loolapalooza, público e artistas evocaram o brado da resistência e esculacharam o presidente: Fora, Bolsonaro

 

 

O que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cala a boca. Bota a tua toga e fica aí. Sem encher o saco dos outros. Como atrapalham o Brasil”.  O “cala boca” proferido por Jair Bolsonaro justo no dia 31 de março, aquele em que o presidente da República e seus colaboradores comemoram o aniversário do Golpe de 1964, em vez de lamentar, fez um estranho eco à tentativa de censura a artistas e músicos que se manifestaram contra o governo no Lollapalooza no final de semana anterior.

Na primeira noite do festival, sexta-feira, 25 de março, a estrela Pabblo Vittar puxou um “Fora, Bolsonaro” e fez o gesto que simboliza o “L” de Lula com os dedos. Não satisfeita, a artista e cantora, ainda, pegou uma bandeira de Lula de alguém na platéia e desfilou a empunhando.

O gesto da Pabblo, umas das atrações nacionais mais aguardadas daquela noite, apenas deu início a uma enxurrada de protestos e de manifestações que contaminaram várias outras atrações do festival, levantaram o público e chegaram a mobilizar a Justiça Eleitoral. Naquela mesma noite, a cantora Marina Sena, radicada em Londres, mais tarde saiu-se com um “fuck Putin, fuck Bolsonaro”.

Foi o que bastou para que o fantasma da censura prévia aos espetáculos públicos rondasse o Autódromo de Interlagos, em São Paulo. No dia seguinte, em pleno sábado, 26, atendendo a um pedido de advogados do Partido Liberal, ao qual Jair Bolsonaro é filiado e vai concorrer às eleições de outubro, o ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, considerou que as manifestações espontâneas e legítimas de artistas configurariam propaganda eleitoral antecipada. E, portanto, não poderiam ser permitidas, sob pena de pagamento de multa R$ 50 mil.

A cantora Anitta, que na última semana se tornou a artista brasileira mais tocada em todas as plataformas de streaming em todo o mundo com o reggaeton “Envolver”, e tem feito campanha nas redes para incentivar o voto de jovens entre 16 e 18 anos, correu às redes para dizer que pagaria a multa de quem quisesse se manifestar no festival de música.

No Lollapalooza, em franca desobediência à decisão do ministro do TSE, o bordão “fora, Bolsonaro” virou algo tão esperado como o bis nos espetáculos. O rapper Emicida puxou um coro de “ei, Bolsonaro, vai tomar no c*”, depois de discursar também sobre o voto dos mais jovens.

No show dos Detonautas,  o vocalista Tico Santa Cruz, além de falar sobre pandemia, chegou a projetar uma foto do presidente no telão na hora do indefectível “Fora, Bolsonaro” gritado pelo público. O presidente se tornou o personagem que todos adoram mostrar ojeriza, provocando reações de repulsa e descontentamento. A banda Fresno também não teve dúvida: emplacou um Fora, Bolsonaro no fundo do palco. O público adorou.

De quase estreantes em festivais desse porte, como os músicos Jão e Glória Groove a artistas veteranos, com muita bagagem musical e experiência de vida, como Lulu Santos, o clima do fesdtival foi protesto e em defesa da liberdade de expressão. Esse foi o tom dos três dias de festival. Mas foi para além daqueles que participaram do Loolapalooza. 

Nas redes sociais, a tentativa de censura esquentou os ânimos e o debate pegou fogo. Artistas como Zélia Duncan, Caetano Veloso e Teresa Cristina, entre outros, se pronunciaram em suas redes sociais, criando uma repercussão que chegou a sufocar até mesmo o ato de pré-campanha do próprio Jair Bolsonaro, marcado para o domingo, 27.

O presidente, desprezando conselhos mais prudentes de correligionários, compareceu ao evento e discursou na solenidade com cara de ato de campanha prévio promovido pelo Partido Liberal, do político Valdemar Costa Neto, preso e condenado por corrupção.

Enquanto isso, além das manifestações individuais, o último dia do festival, no domingo, viu também reações articuladas de artistas expressivos. O cantor Marcelo D2, do Planet Hemp, com apoio do deputado federal e pré-candidato ao governo do Rio Marcelo Freixo (PSB), deu procuração ao advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, para que ele tentasse derrubar a liminar.

A empresária Paula Lavigne, à frente do grupo 342 Artes, projeto de combate à censura, lançou campanha nas redes chamada “Cala a Boca Já Morreu”, que mobilizou perfis de artistas nas redes sociais contra a decisão do TSE, abraçada por músicos como Roberto Frejat e Daniela Mercury.

A cantora baiana publicou texto em que discutia a sentença do juiz do TSE. “A decisão monocrática do ministro Raul Araújo que proíbe a manifestação dos artistas (que são eleitores) no festival Lollapalooza está de acordo com o que está escrito na resolução 23.671/2021 do próprio TSE?”, questionou. “A Constituição não assegura liberdade de expressão ao eleitor? Queremos que o plenário do TSE se manifeste sobre essa decisão que soa como censura à livre manifestação dos eleitores”, escreveu Daniela​.

Na segunda-feira, o episódio já tinha serenado, uma vez que Raul Araújo, que censurou o festival Lollapalooza a pedido do partido de Bolsonaro, derrubou sua própria liminar, atendendo a pedido de retirada de ação. O PL decidiu recuar depois que o presidente, irritado com a péssima repercussão do caso, se mostrou furioso e ordenou que Costa Netto voltasse atrás.

O episódio, contudo, continuou reverberando nas redes sociais e na imprensa, inclusive estrangeira, como prenúncio do que pode vir a ser tanto a campanha eleitoral de outubro quanto o recrudescimento de tom do bolsonarismo. na quarta-feira, na esteira da ressaca do bolsonarismo com o Loolapalooza, foi a vez de Chico Buarque pegar uma toalha com a foto de Lula, num show na Mangueira com a presença do ex-presidente e de Dilma Rousseff.

A tentativa canhestra de classificar como propaganda eleitoral antecipada o fato de artistas notoriamente de oposição ao governo e, entre eles, alguns apoiadores de Lula, foi apenas uma espécie de piloto de uma semana francamente ruim para o presidente. Bolsonaro teve de demitir o ministro Milton Ribeiro (Educação) por suspeita de corrupção. O presidente passou a noite no Hospital das Forças Armadas, por conta de um daqueles desconfortos intestinais que volta e meia o deixam abatido.

Em outros anos, nos dias que antecedem o 31 de março, Bolsonaro sempre aproveitou para fazer demonstrações de força de sua leitura muito particular dos eventos históricos que antecederam o Golpe de 1964. Ele sempre tenta reiterar, entre os seus fanáticos de extrema-direita, a ideia da ordem e progresso que teria sido desfeita, caso o “comunismo” tivesse se instalado naquela ocasião.

Este ano, no entanto, o ex-capitão do Exército, que deixou a força depois de ser preso por tentativa de atentado terrorista no Rio de Janeiro, teve de ouvir a voz das ruas. Artistas e juventude rechaçam o seu governo autoritário em altos brados. Não bastasse isso, Bolsonaro assiste a seus índices de desaprovação subirem nas pesquisas de opinião, E, mesmo afastando o ministro da Educação “terrivelmente evangélico” que vendia favorecimento a troco de barra de ouro, ainda passou a semana agonizando. Não é de admirar que ele ande um nervoso. •

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