Vidas indígenas importam!

Os governos do Brasil de 1988 até 2014, mesmo derivados de diferentes espectros políticos, mantiveram o respeito aos direitos aos povos indígenas. Esses direitos foram fruto de muitas lutas, dos indígenas e da grande maioria da sociedade brasileira durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987.

A nossa Carta conta com um capítulo próprio, com os artigos 231 e 232, para disciplinar a matéria indigenista. O caput do artigo 231 reconhece aos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme seus usos, costumes e tradições, e determina que a União promova a sua demarcação e proteção dos seus bens.

A demarcação serve para explicitar os limites da terra e não se configura como fonte constitutiva de direito. O direito originário consagra a fonte primária da posse territorial, não havendo, portanto, quaisquer títulos anteriores a ele. Independentemente do processo demarcatório, as terras tradicionalmente ocupadas já são consideradas indígenas.

Em relação ao direito de propriedade, ficou estabelecido que as terras indígenas são bens da União. Portanto, os direitos indígenas sobre suas terras estão relacionados à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais.

Quanto à Lei 6001, o Estatuto do Índio de 1973, apesar de alguns de seus dispositivos não terem sido recepcionados pela Constituição de 1988, os relativos aos direitos territoriais estão em pleno vigor.

Desde janeiro de 2019, porém, o governo Bolsonaro e seus aliados no Congresso vêm desmontando a política indigenista e atacando a Constituição, ameaçando as vidas indígenas. Na verdade, esses setores minoritários, agrupados agora em torno do bolsonarismo, nunca aceitaram os termos pactuados na Constituição de 1988.

Por isso, a aposta deste governo genocida é a destruição do conjunto de políticas públicas voltadas a esses povos, com ênfase no combate às demarcações de seus territórios tradicionalmente ocupados.

É disso que se trata a decisão da CCJ da Câmara dos Deputados de 23 de junho, de encaminhar a aprovação do Projeto de Lei 490/2007, uma proposta de 14 anos atrás, ressuscitado agora para destruir as bases de proteção jurídica dos povos indígenas. Faz parte, portanto, de um processo articulado há anos por grupos políticos e econômicos, como setores militares, certos missionários fundamentalistas, mineradores, garimpeiros, madeireiros e grileiros, os mesmos que se viram derrotados na Constituinte.

Em resumo, o projeto propõe modificar a Lei 6001/73 em pontos que atentam diretamente contra os princípios fundamentais da Constituição, como já vem sendo denunciado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, mobilizada permanentemente em Brasília e reprimida pela polícia no último dia 22 de junho, com o beneplácito do deputado Artur Lira (PP-AL), presidente da Câmara.

Este projeto estabelece uma série de entraves às demarcações. O principal é a possibilidade de apresentação de contestações, por vários atores, em todas as fases do complexo e demorado procedimento demarcatório. Hoje, o direito ao contraditório pode ser feito por qualquer pessoa, no período de 90 dias após a publicação do relatório de identificação elaborado pela Funai e encaminhado ao Ministério da Justiça.

Além disso, fortalece a tese do “marco temporal”, uma interpretação que, na direção oposta ao fundamento da “tradicionalidade”, aplicado pela tradição jurídica brasileira e consagrado em 1988, restringe o direito territorial somente para as comunidades que estivessem de posse da terra em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Este tema, aliás, está na pauta do STF neste momento.

O projeto suprime de forma irresponsável e criminosa o direito de consulta livre, prévia e informada às comunidades atingidas por grandes empreendimentos, um direito garantido pela Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Atenta também ainda contra a política de “não contato” com os povos indígenas em isolamento voluntário, extremamente vulneráveis a contatos imprevistos e conflitos, inclusive por razões sanitárias. O Brasil tem sido referência mundial nessa política, iniciada pela Funai em 1987.

Essa iniciativa do PL 490/2007 entra para a história como um dos maiores ataques aos direitos indígenas no Brasil, após a redemocratização do país em 1988.

Mas não se trata apenas de um ataque no âmbito legislativo. Os aliados de Jair Bolsonaro e Artur Lira que atropelam os direitos indígenas no Congresso, têm conexões diretas com os segmentos que nos rincões mais distantes da Amazônia estão invadindo deliberadamente os territórios indígenas, com armas e munições pesadas, como nos casos recentes nas Terras Indígenas Munduruku e Yanomami.

Desde os primeiros meses de 2019, revivemos o contexto de aumento acentuado do desmatamento na Amazônia, que chegou a mais de 9 mil km² em 2019, refletindo uma alta de 100% em cinco anos. Essa foi a maior devastação no bioma Amazônia registrada desde 2015. O ano de 2021 promete bater mais uma vez esse recorde, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) para o primeiro semestre.

Os invasores procuram criar o fato consumado, ocupando e destruindo os territórios, inclusive de forma desumana diante da situação de agravamento da vulnerabilidade dessas populações pela pandemia da Covid-19. Esta foi a motivação de uma das ações de denúncia de genocídio perante o Tribunal Internacional de Haia, feita em junho de 2020, contra o governo Bolsonaro, que tem estimulado esse tipo de ações criminosas.

Essa turma de bandidos ancorada no governo federal desde 2019, como se viu no caso do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, é movida pela roubalheira, o ressentimento e um espírito vingativo contra os princípios do pacto democrático assentado pela Constituição de 1988.

Eles sempre atuaram para colocar as garras, mesmo que ilegalmente, nos recursos naturais existentes nas últimas áreas de floresta preservada no Brasil: as unidades de conservação e as terras indígenas, que representam 23% da Amazônia Legal.

É disso que se trata, sem meias palavras. É a boiada que está passando diante de nossos olhos, e é preciso sustá-la imediatamente, antes que seja tarde demais.