Hora de apontar responsabilidades
Um dos temas mais urgentes a se enfrentar nos próximos passos da CPI sobre a Covid no Senado é o da responsabilização. Já se sabe que as decisões do governo Bolsonaro adotadas desde o princípio da eclosão da pandemia afrontaram todos os consensos médicos e científicos do mundo civilizado, centrados na defesa do distanciamento social, uso de máscaras e decretação de quarentenas urbanas, sustentadas por pesados auxílios econômicos aos trabalhadores como a única saída profilática enquanto a ciência se encarregava de apresentar vacinas viáveis à população no menor tempo possível.
Bolsonaro agiu em confronto aberto: promoveu aglomerações, tratamentos sem comprovação científica, induziu trabalhadores a romper o isolamento social, desrespeitou normas sanitárias básicas e dificultou tanto o desenvolvimento quanto a aquisição das vacinas. Isso levou o Brasil a representar, sozinho, 12,8% das mortes globais por coronavírus até o momento, mesmo dispondo de apenas 2,7% da população global. O Brasil é o segundo país com o maior número absoluto de óbitos, atrás somente dos Estados Unidos.
Falta agora unir causa e efeito, atribuindo aos agentes públicos a responsabilidade civil, base de qualquer Estado Democrático de Direito. No entanto, esse trágico fracasso na condução da pandemia muitas vezes é encoberto pelos defensores governamentais ao se utilizarem das estatísticas de morte por cada 100 mil habitantes, que colocariam o Brasil atualmente na 13ª posição global, atrás de países como Bélgica e Itália.
Sobre o difícil tema das comparações internacionais, foi publicado fundamental estudo do Ipea, em fase ainda preliminar, que mostra claramente a liderança tanto absoluta quanto relativa do Brasil no fracasso da gestão da pandemia. E que, mais ainda, o desastre com a perda de vidas no país explica parte importante também das dificuldades que o Brasil enfrenta em seu mercado de trabalho, com variações negativas no nível de ocupação muito superiores à média dos países pesquisados.
O estudo trabalha com dados da pandemia de fins de 2019 e todo o ano de 2020. Uma questão fundamental em se compreender os fenômenos das mortes por Covid no Brasil em relação ao mundo: nossa estrutura etária. Muitos dos países que se situam acima do Brasil em mortes por 100 mil habitantes assim o estão por apresentarem populações mais envelhecidas que a nossa.
Essa diferença etária, no entanto, pode ser isolada, comparando a taxa esperada que os outros países teriam de mortos por Covid caso todos tivessem a mesma estrutura etária brasileira. O resultado é assustador: mesmo antes de o Brasil formar-se como epicentro da Covid – que se consolidou durante a segunda onda de 2021 – o risco de um cidadão brasileiro morrer pelo novo coronavírus em 2020 foi 3,6 vezes maior do que a média global. E duas mil vezes maior do que o risco de morte de um cidadão vietnamita.
O Brasil, segundo esta metodologia, foi o 10º país mais afetado pelo coronavírus em 2020. Isso é o dobro que a sua posição bruta de mortos per capita no mesmo período – 20º lugar. Acima do Brasil nessa comparação harmonizada por estruturas etárias, o grupo é composto majoritariamente por países latino-americanos: Peru (1º), México (2º), Belize (3º), Bolívia (4º), Equador (5º), Panamá (6º) e Colômbia (8º) – além da Macedônia do Norte (7º) e do Irã (9º).
Notam-se duas características fundamentais nestes países: o subdesenvolvimento e a desigualdade. Notam-se também governos com graus distintos de negacionismo científico, que ignoraram o real impacto da pandemia na sociedade e não foram capazes de articular seus sistemas de proteção social para equacionar o desafiador mercado de trabalho dual destas economias, cujo peso do setor informal dificulta (mas não proíbe) políticas de distanciamento social efetivas.
Não bastasse o maior fardo absoluto e relativo da Covid na destruição de vidas brasileiras, o estudo do Ipea também revela forte correlação entre impacto sanitário da pandemia e desempenho do mercado de trabalho, em que os países com maior risco absoluto de mortes na pandemia foram também os mesmos que tiveram mais perdas na taxa de ocupação no mercado de trabalho.
O caso do Brasil – -7% de taxa de ocupação em 2020 –, nesse cenário cruzado, está entre os piores, com grandes perdas humanas e laborais durante a pandemia, acompanhado dos países latino-americanos com alta taxa de informalidade no mercado de trabalho, como México, Colômbia, Peru, Bolívia e Argentina. Nisso, o estudo avança em dados e solidifica o argumento de que a solução correta para a saída da crise econômica está umbilicalmente ligada à solução também correta para a pandemia, opção esta desprezada pelo governo Bolsonaro em favor de aberturas precoces e por negligenciar a expansão tanto do auxílio emergencial quanto da proteção dos postos de trabalho formais no início de 2021, que impulsionaram a amplitude e o alcance da segunda onda pandêmica.
A disponibilidade de instrumentos públicos capazes de gerenciar uma pandemia em países desenvolvidos é sempre maior que no mundo em desenvolvimento, mas isso não justifica o péssimo desempenho do Brasil, cada vez mais evidente nas pesquisas e estudos sérios divulgados.
Nosso Estado, com todas as dificuldades enfrentadas desde o Golpe de 2016, ainda dispunha de ferramentas estratégicas que, não tivessem sido ignoradas, poderiam ter alterado o curso das mortes na pandemia e, simultaneamente, amenizado a crise do mercado de trabalho. O uso dos sistemas únicos de saúde e de assistência social com máxima eficiência, sem perdas orçamentárias com o precoce levantamento do decreto de calamidade, e com a busca ativa em massa dos trabalhadores informais aptos ao auxílio emergencial, diminuindo a necessidade do deslocamento e aglomeração de milhões de brasileiros para o as agências bancárias em busca do auxílio.
Além disso, a formação imediata de um gabinete de crise, de alcance federativo, com sustentação científica para a decretação de quarentenas regionalizadas e de um protocolo nacional de atendimento à pandemia no sistema de saúde. Também o financiamento emergencial, incondicional e imediato às instituições públicas de pesquisa para o desenvolvimento de vacinas, como também a aquisição internacional rápida das vacinas disponíveis. E, ainda, a garantia das folhas salariais até três salários mínimos para as regiões em regime restrito de quarentena e garantia de auxílio emergencial para todos os trabalhadores informais até o final da pandemia.
E, não menos importante, o pedagógico exemplo do presidente da República, como chefe de Estado, demonstrando solidariedade ao mortos, com a decretação de lutos oficiais periódicos, a mobilização da opinião pública em favor da solidariedade e da urgência do coletivismo, e o estrito cumprimento individual às normas sanitárias, tanto em seu espaço de trabalho, quanto em sua necessária representação política na sociedade. A ausência de tais medidas, óbvias a qualquer mente racional, demanda resposta à sociedade, que vela por corpos em demasia e suporta o luto que não merecia.