
Ucrânia, a OTAN e o ninho de serpentes
Via portal https://operamundi.uol.com.br/
O vexame de Zelensky em reunião com Trump na Casa Branca tornou evidente que a guerra da Ucrânia sempre foi uma guerra da OTAN
O vexame televisionado do presidente da Ucrânia Volodymyr Zelenski na semana passada, quando foi hostilizado por Donald Trump e J.D Vance em plena Casa Branca, tornou evidente, até para quem se recusava a ver, que a Ucrânia luta uma guerra da OTAN, e não uma guerra em favor dos interesses de seu próprio povo. Ao contrário: a guerra que a Ucrânia luta é também contra uma parte significativa de sua própria população, enredada em uma guerra civil sangrenta desde o episódio que ficou conhecido como Euromaidan, quando o governo central foi derrubado em um golpe de Estado financiado, apoiado e em larga medida tramado por diplomatas e “agentes” dos Estados Unidos e da União Europeia.
A mídia ocidental pouco repercutiu as notícias escabrosas de massacres de civis ocorridas em uma crescente desde o início das agitações que redundaram na deposição de Viktor Yanukovych, mandatário que havia sido eleito por voto popular e que era contrário à adesão do país à União Europeia (e à OTAN). Apelidado de “russófilo” pelas agências de notícias internacionais, Yanukovych foi pintado como mero fantoche russo, adjetivação que conforma parte central da narrativa que justifica sua deposição e a seguinte repressão sangrenta de todos os setores do povo que opuseram-se a esse movimento político. Diante da enxurrada de justificativas que moldaram a opinião média internacional – em especial nos países do “ocidente” –, nunca é demais resgatar alguns fatos.
Logo após a derrocada do governo por forças de extrema-direita e organizações patrocinadas pelo “ocidente”, organizações sindicais e partidos de esquerda foram selvagemente reprimidos e o Partido Comunista foi fechado por uma lei imposta pelo governo que nasceu do golpe, em 2015. Em toda a Ucrânia desenvolveu-se uma campanha de “apagamento étnico”, dirigida principalmente aos grupos russófonos. A língua russa foi banida do uso público. Nas regiões de maioria russa, estourou a guerra civil de resistência ao governo de extrema-direita.

Como recorda a matéria assinada por John Wojcik, em 02 de maio de 2014, poucos meses após a ascensão do governo fascista, em uma composição de forças de extrema-direita, como o Pravyi Sektor [Правий Сектор], e partidos pró-europeus, cerca de mil militantes de extrema-direita, liderados pelo Pravyi Sektor e com o apoio de uma torcida organizada do time de futebol Chernomorets, cercaram militantes de sindicatos e movimentos de esquerda que se opunham ao governo pró-fascista em Odessa, os encurralaram dentro do edifício “Casa dos Sindicatos” e atearam fogo. Relatos de observadores dão conta de que grande parte dos que atacaram e queimaram o prédio usavam suásticas e outras insígnias fascistas. Testemunhas também disseram que os fascistas estavam armados com bastões, escudos e correntes de metal. Mulheres e crianças teriam sido queimadas vivas após as primeiras rodadas de tiros e coquetéis molotov terem sido jogados no prédio pelos direitistas. Os mesmos grupos que lideraram o ataque à sede do sindicato já haviam incendiado outro acampamento pró-Rússia em Odessa, uma fileira de tendas na Praça do Campo Kulikova. Enquanto o sindicato era consumido pelas chamas, fotos postadas no Twitter mostravam pessoas penduradas nas janelas e sentadas nos parapeitos, de onde pareciam preparar-se para pular. De acordo com vários relatos, citados na mesma matéria escrita por Wojcik, aqueles que pularam e sobreviveram foram cercados e espancados pelos fascistas e torcedores do time de futebol. Os vídeos e fotos do episódio mostram a polícia de choque ucraniana parada sem fazer nada para impedir ou prevenir a violência. O Pravyi Sektor comemorou seu “feito” em postagens no YouTube e no Twitter: “besouros da batata estão sendo assados em Odessa”. O termo refere-se às fitas de São Jorge usadas por muitos dos manifestantes antigoverno de Kiev. “O objetivo é limpar completamente Odessa dos pró-russos”, disse Dmitry Rogovsky, outro ativista do Pravyi Sektor.
O autor do relato, escrito logo após o massacre, considerava que “o aumento da violência dos direitistas” seria um “constrangimento crescente para os EUA e a União Europeia, que apoiaram o golpe de direita em Kiev e tentaram jogar a culpa pelos problemas da Ucrânia na Rússia”. No entanto, nesse ponto, Wojcik estava infelizmente equivocado. Não houve constrangimento da União Europeia e nem dos EUA. Pelo contrário, os atos dos agrupamentos neonazistas foram sistematicamente “apagados” dos jornais ou vagamente noticiados como ações de enfrentamento ao “separatismo” russo ou à “interferência russa” na política da Ucrânia. A violência não parou de crescer. O exército regular da Ucrânia e milícias de inspiração nazista como o Batalhão Azov e outros agrupamentos paramilitares de extrema-direita, como os neonazistas do S14 (o partido “Fundação da Liberdade”), assassinaram cerca de 15 mil civis até o final de 2021. Foi também em 2021 que os comandos do Batalhão Azov foram oficialmente integrados às Forças Armadas da Ucrânia e passaram a ter liberdade de ação na região insurgente do Donbass. Dentre as vítimas das forças neonazistas estão tanto os combatentes separatistas – civis auto-organizados em milícias para combater as forças pró-Kiev – quanto idosos, mulheres e crianças, friamente executados pelas forças do Azov.
Para além do “apagamento étnico” dirigido às populações de fala russa e outras minorias étnicas como os ciganos, outros apagamentos estiveram no centro das ações das milícias e partidos neo-nazistas que ascenderam ao poder em 2014: o principal deles é o da memória da União Soviética e da guerra de resistência ao nazismo. O banimento do Partido Comunista em 2015 é um dos capítulos desse empreendimento, assim como o massacre à casa dos sindicatos em Odessa, onde morreram militantes comunistas. Como mostra o artigo de Rodolfo Queiroz Laterza, a glorificação de figuras pró-nazistas como Stepan Bandera e Roman Shukhevych faz parte de uma tendência do nacionalismo ucraniano que tem várias vertentes. Sob a presidência de Viktor Yushchenko, que foi de 2005 a 2010, muitas iniciativas destinadas ao apagamento da memória soviética foram adotadas, assim como a glorificação de figuras que colaboraram com os nazistas. Em 2007, partiu de Yushchenko a iniciativa de conceder postumamente a Shukhevych e Bandera o título de “Heróis da Ucrânia” – decisão que foi anulada, pouco depois, pelo judiciário do país. O imaginário de uma “glória” nacionalista ucraniana, que se apresenta como necessariamente anti-russa, é a ponte entre todas as tendências políticas ditas nacionalistas e os agrupamentos neonazistas que utilizam-se do discurso étnico para, de fato, destruir a memória da derrota do nazifascismo e do capítulo soviético da história ucraniana. Capítulo este que foi fundamental para livrar a região do domínio do nazismo alemão, a quem serviam Bandera e Shukhevych.
É dentro desse “caldo de cultura” que se mescla um saudosismo de um tempo que nunca existiu (um momento de glória das forças nacionalistas, aliadas aos nazistas) com a responsabilização das etnias “não ucranianas” – como os grupos de fala russa, os ciganos, os tártaros da Crimeia, dentre outros – pelas dificuldades de afirmação do nacionalismo e o apoio a Moscou. Em artigo publicado no Jornal da USP, o professor Tibor Rabóczkay traduz para o português um trecho do infame discurso de uma deputada ucraniana, Irina Farion, da base de apoio de Zelensky: “Prestem atenção! Se enviarem um cachorro para treinamento, ele voltará para casa em um mês reconhecendo os comandos: sente-se! em pé! deite-se! Mas eles (as minorias étnicas) precisam de sete anos para aprender a língua de Stepan Bandera, Taras Shevchenko e Lina Kostenko. Precisamos de tantos débeis mentais na Ucrânia? Sugiro que peguem o passaporte que os húngaros lhes deram e sumam daqui para a Hungria! Qual é o empecilho? Por que eu tenho que alimentá-los aqui? Por que tenho que financiar o ensino deles em húngaro, romeno e na língua de Moscou? Ah, desculpem, e o ensino em polonês também?”.
São, portanto, dois movimentos coordenados: a hostilidade às minorias e o apagamento de toda a simbologia que remonta ao período soviético, bem como de quaisquer agrupamentos políticos que promovam uma memória positiva do período em que a Ucrânia integrou a URSS, em especial dos comunistas. Um exemplo emblemático está no artigo supracitado de Laterza, que nos conta que em dezembro de 2022, a Rua Pushkin, na cidade de Izium, foi renomeada como “Rua Stepan Bandera”. São múltiplas as frentes de ataque à memória coletiva: mudança de nomes em ruas e praças, derrubada de monumentos históricos do período soviético, recolhimento de livros de história e sua substituição por novas publicações com versões nacionalistas, que apresentam a derrota das forças pró-nazistas no Segunda Guerra como um episódio de invasão soviética. Junto a isso, as milícias neonazistas sentem-se livres para realizar massacres de civis em regiões entendidas como pró-russas e pogroms contra populações ciganas, além do assassinato de militantes de forças comunistas e veteranos da resistência ao nazismo.
O objetivo vai além do enfrentamento à operação especial russa: terminado o conflito, os grupos de extrema-direita projetam uma reconstrução da Ucrânia em moldes ultra-nacionalistas. Espalhar o terror entre minorias étnicas e agrupamentos políticos anti-fascistas é parte do plano. Todos os crimes de guerra cometidos pelas milícias de extrema-direita, portanto, inclusive em solo russo, como em um episódio macabro ocorrido em Kursk, em que idosos foram amarrados e explodidos com granadas e mulheres violentadas antes de serem mortas, integram a estratégia geral de espalhar pânico e estimular que essas populações, empurradas pelo pavor, deixem os territórios considerados ucranianos.
Se a guerra terminar, dado que sem o apoio dos EUA a continuidade das ações da OTAN está inviabilizada – a despeito do apego das elites no poder na Europa ao prosseguimento do conflito –, a Ucrânia estará ainda enredada em uma situação de extrema violência, com uma multiplicidade de agrupamentos neonazistas e ultranacionalistas dispostos a seguir semeando o terror entre a população do país. O apoio dos Estados Unidos e da Europa a esses agrupamentos, a fim de viabilizar seu objetivo de enredar a Rússia em um conflito armado – que pensavam que seria suficiente para impor ao país euroasiático uma derrota definitiva – chocou os ovos de inúmeras serpentes, que hoje contam com muito mais poder econômico e militar do que jamais sonhariam ter antes de 2014.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.