O poder de eliminação
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Por que o genocídio na Palestina é diferente do genocídio no Brasil?
A atual fase do genocídio de Israel em Gaza, iniciada em outubro de 2023, após a operação militar “Enchente de Al Aqsa”, em 7 de outubro de 2023, pela resistência palestina, resultou na perda de mais de 40.000 vidas palestinas e no deslocamento de milhões. Esse momento abre a oportunidade de examinar o regime israelense e as suas ligações com o imperialismo estadunidense para compreender as circunstâncias que facilitaram a perpetração de tal genocídio. Nós faremos tal análise a partir dos conceitos de colonialismo de povoamento (WOLFE, 2006) e neocolonialismo tardio (YEROS; JHA, 2020) em aproximação com dois outros casos: Brasil e África do Sul.
Colonialismo de povoamento e o poder de eliminação
Embora desde a década de 1960 os autores palestinos já tivessem analisado Israel como o produto de um processo colonial de povoamento (JABBOUR, 1970; SAYEGH, 2012), após a publicação do artigo de Patrick Wolfe (2006) “Settler Colonialism and the Elimination of the Native”, tem havido um crescimento na literatura que interpreta Israel como um Estado colonial (HAWARI; PLONSKI; WEIZMAN, 2019; SALAMANCA et al., 2012; VERACINI, 2015). De acordo com a teoria de Wolfe, o processo de colonialismo de povoamento pode ser entendido através de uma “lógica de eliminação” estrutural. A colonização de povoamento das terras indígenas envolve a erradicação da população nativa por meios como morte, expulsão, assimilação e confinamento.
A Nakba palestina de 1948, que envolveu a expulsão de mais de 750.000 palestinos e a destruição de 500 vilarejos, juntamente com os massacres históricos de palestinos como Sabra e Shatila em 1982, e o subsequente confinamento dos palestinos sobreviventes em enclaves altamente securitizados na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, servem como prova de uma lógica subjacente a estes acontecimentos que remete à teoria do colonialismo de povoamento (SALAMANCA et al., 2012).
O processo de colonialismo de povoamento persiste enquanto houver território indígena a ser desapropriado. A guerra israelense contra os palestinos em Gaza é uma nova fase deste processo de confisco duradouro. Concordo com as críticas dirigidas à perspectiva de Wolfe sobre o colonialismo de povoamento, especificamente no que diz respeito à inadequação da compreensão das contradições da classe e do trabalho (ENGLERT, 2020) e à luta pela libertação nacional na Palestina (AJL, 2023).
Conforme já argumentei anteriormente, o colonialismo de povoamento, por ser um fenômeno inserido dentro do capitalismo e do imperialismo ocidentais, não possuiria uma lógica própria, mas operaria dentro das contradições dos processos de acumulação primitiva de capital (HUBERMAN, 2023). No entanto, o genocídio israelense em Gaza realça a necessidade de examinar o poder de eliminação do colonialismo israelense, que procura erradicar a sociedade palestina em Gaza através de assassinatos sistemáticos e deslocamentos forçados.
Importante ressaltar que o genocídio em curso ocorrer quando o imperialismo estadunidense tem empregado a destruição e a guerra contra grupos racialmente subalternos para enfrentar as crises permanentes colocadas pelo capital monopolista (CAPASSO; KADRI, 2023). A política externa e a estratégia de acumulação da administração Joe Biden (2020-) giram em torno da guerra para beneficiar o complexo industrial militar dos EUA. Esta abordagem é exemplificada pela postura persistente de confronto com a Rússia, apesar dos reveses vividos na Guerra da Ucrânia (2022-).
Esse raciocínio é também visto no compromisso inabalável com Israel, apesar da desaprovação popular do envolvimento dos EUA no genocídio em Gaza. As indústrias de segurança dos EUA e de Israel estão intrinsecamente ligadas e utilizam os territórios palestinos como campo de testes para o seu armamento (HALPER, 2015; LOEWENSTEIN, 2023). O resultado desta aliança entre EUA e Israel é a promoção do genocídio em Gaza, que tem semelhanças com outros exemplos de esforços de eliminação indígenas nos Estados Unidos, no Brasil e com outros contextos de colonialismo de povoamento, como a África do Sul.
Colonialismo de povoamento e neocolonialismo tardio
O Brasil é outra colônia de povoamento que tem sido implicada na perpetração de genocídio contra povos indígenas e outras populações subalternas. A expansão das propriedades de grandes latifundiários e outras atividades extrativistas, incluindo a mineração ilegal, resultaram na expulsão e morte de numerosas comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, especialmente na região amazônica. De 2022 a 2023, 706 indivíduos Yanomami perderam a vida devido às repercussões das atividades ilícitas de mineração na região amazônica (FSP, 2024), que foram permitidas pelo governo Jair Bolsonaro (2019-2022) e não foram efetivamente controladas pela gestão Lula da Silva (2023-).
Além disso, a “guerra às drogas” racionalizou a violência do Estado contra os jovens negros residentes em favelas urbanas, levando à sua morte e ao encarceramento em massa. Por exemplo, após um policial militar de Santos ter sido morto a tiros em 2 de fevereiro de 2024, supostamente por uma organização criminosa, a força policial da região foi responsável pela morte de 50 pessoas, predominantemente de ascendência africana.
O povo Yanomami na Amazônia e a população negra da Baixada Santistatêm sofrido mortes sistemáticas, ocorrências recentes dentro de um prolongado processo de genocídio contra indígenas e negros no país. Poets (2020) demonstra o desvio histórico do colonialismo de povoamento brasileiro de uma “lógica de eliminação”, como a proeminência histórica da exploração da mão de obra indígena. No entanto, os genocídios em curso servem como prova de que a eliminação continua a ser uma manifestação significativa de poder do Estado colonial brasileiro tal qual o israelense (HUBERMAN; NASSER, 2019).
Yeros et al (2019) destacam a contradição entre a perpetração da violência genocida contra populações racialmente subalternas e a implementação de políticas destinadas a promover a justiça social e racial como a manifestação do neocolonialismo tardio no Brasil. Neocolonialismo significa a continuação do processo colonial, mas agora por meios indiretos. Nkrumah (1967) cunhou o termo neocolonialismo para designar processo de continua subjugação dos povos que haviam obtido a sua independência das metrópoles nos anos 1950 e 1960.
O neocolonialismo se manteria principalmente através de mecanismos culturais e econômicos, como os capitais monopolistas. Apesar das limitações representadas pelo neocolonialismo, essas nações do Terceiro Mundo conseguiram avançar processos de desenvolvimento e solidariedade anticolonial nos marcos da Conferência de Bandung através do controle do Estado. Yeros e Jha (2020) desenvolveram o conceito de neocolonialismo tardio para compreender a permanência do fenômeno sob o neoliberalismo e o capital financeiro em constante crise. Agora, o neocolonialismo seria caracterizado pela crescente expropriação das riquezas e do trabalho das populações periféricas.
Para uma compreensão abrangente da transição para o neocolonialismo tardio, Yeros e Jha (2020) destacam as características distintivas das colônias de povoamento na América Latina e na África Austral. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, os golpes de estado e as ditaduras interromperam movimentos de libertação e, consequentemente, as suas transições para uma situação neocolonialismo. O resultado foi a manutenção de governos de supremacia branca.
A passagem para o neocolonialismo tardio em países como o Brasil e a África do Sul ocorreu apenas na era neoliberal. Como resultado, os movimentos colonizados testemunharam a preservação do poder, o controle territorial e a exploração da classe trabalhadora semiproletária pelas elites colonizadoras brancas, mesmo durante períodos de governos progressistas do ANC (Congresso Nacional Africano) na África do Sul (1994-), e administrações do PT (Partido dos Trabalhadores) no Brasil (2003-16; 2023-).
Outra contradição característica do neocolonialismo tardio pode ser observada sobre nas políticas externas de África do Sul e Brasil, que procuram uma maior independência e relações mais estreitas com o Sul, tal como manifestado pelo estabelecimento dos BRICS e pela forte condenação do colonialismo israelense e do genocídio em Gaza, mas sem desviar substancialmente da influência do imperialismo estadunidense e do capital monopolista. Bond (2015) vê o envolvimento destes países em missões de paz da ONU, como o Brasil no Haiti (2004-17) e a África do Sul no Sudão do Sul (2011-), como ações subimperialistas.
No entanto, a África do Sul demonstrou um apoio material muito mais forte aos palestinos, cortando laços diplomáticos com Israel e apresentando acusações de genocídio contra a nação da Corte Internacional de Justiça (CIJ). O Brasil endossou as ações da África do Sul na CIJ, mas continua a manter relações diplomáticas, comerciais e militares com Israel. Face ao genocídio em Gaza, questionamos como as transições para o neocolonialismo tardio no Brasil e na África do Sul facilitam a compreensão do colonialismo de povoamento israelense durante o genocídio em Gaza.
As disputas entre descolonização e neocolonialismo no Brasil, na África do Sul e em Palestina/Israel
O caso de colonização de povoamento brasileiro e as disputas para a descolonização fornecem uma visão sobre como Israel impediu a transição para o neocolonialismo na Palestina durante a Guerra Fria. Segundo Gissoni et al (2024), o potencial de libertação nacional no Brasil durante o início da década de 1960, marcado pelo surgimento de um movimento nacionalista e pela implantação de reformas sociais pelo governo João Goulart (1961-64), motivou a elite colonizadora escolher o autoritarismo como meio de preservar o controle sobre o ambiente político interno e alinhar-se com o imperialismo dos EUA.
Esta decisão incluiu o estabelecimento de uma ditadura civil-militar. O projeto de colonização nacional levado a cabo pela ditadura visava equilibrar a oposição moderada ao imperialismo com “o desenvolvimento industrial com o monopólio da terra dos colonos e a reprodução do modo colonial de acumulação através da acumulação primitiva à custa dos colonizados” (GISSONI; PIRES; CARVALHEIRA, 2024).
A Nakba frustrou efetivamente o potencial de libertação nacional palestina e a subsequente mudança para o neocolonialismo na Palestina, semelhante ao golpe militar que ocorreu no Brasil em 1964, que excluiu a população colonizada do estado. Portanto, a Nakba e o estabelecimento de Israel impediram os palestinos de alcançar autoridade sobre um estado pós-colonial após o fim do Mandato Britânico (1918-48). O resultado é o contínuo domínio colonial direto pelos colonos do Estado israelense sobre o povo e a terra palestinos.
O período posterior à Nakba, as três primeiras décadas de Israel, sob os governos do Partido Trabalhista, da esquerda sionista, em Israel (1948-77), nos remete ao período da ditadura militar brasileira (1964-85) e ao regime de apartheid sul-africano (1948-94). Caracterizada pela imposição de um regime militar de segregação racial sobre os palestinos que permaneceram onde Israel foi constituído, estes governos trabalhistas em Israel buscavam alcançar certo nível de independência da política externa em suas interações com os blocos ocidental e soviético, como a ditadura do Brasil e o apartheid da África do Sul.
Além disso, as administrações trabalhistas priorizaram o avanço de um “projeto de colonização nacional” com o desenvolvimento de forças produtivas em benefício dos colonos judeus, à custa da desapropriação da terra e do trabalho dos palestinos. O estabelecimento de uma ocupação militar nos territórios confiscados da Cisjordânia e de Gaza durante a guerra de 1967 contra a Síria, a Jordânia e o Egito fizeram o regime de ocupação militar e segregação racial apenas mudar de lugar: enquanto o regime militar para os palestinos dentro das fronteiras de Israel foi suspenso em 1966, a segregação racial e ocupação militar foram estendidas para os territórios ocupados em 1967 num contínuo de apartheid.
Enquanto mantinham regimes internos de segregação e autoritarismo militar sobre populações racialmente subalternas, Israel, Brasil e África do Sul desempenharam papéis comparáveis na política de “esfera de influência” dos EUA durante a Guerra Fria, compreendendo uma “internacional colona” entre Oriente Médio, América do Sul e África Austral. Os três países desempenharam um papel subimperialista ao combater ativamente as forças comunistas e nacionalistas nas suas respectivas regiões.
A principal razão para a melhoria do relacionamento entre os EUA e Israel é a importância estratégica de Israel no combate às forças nacionalistas na região, que impedem o acesso irrestrito dos EUA ao petróleo da região. Isto tem sido evidente desde a era do Egito de Gamal Abdel Nasser até ao período que se seguiu à revolução de 1979 no Irã. Contudo, o fim dos regimes militares de segregação racial no Brasil e África do Sul significaram uma alteração na relação com o imperialismo estadunidense e com as suas populações subalternas que não foram vistas em Palestina/Israel.
O Brasil passou por uma transição para o neocolonialismo tardio devido às ambiguidades inerentes ao processo que levou ao fim da ditadura civil-militar, que impediu uma ruptura completa com a ordem anterior. A contradição central decorre do crescimento de um capital financeiro monopolista dentro da nação após a crise da dívida no final da década de 1970, sobreposto com a emergência do movimento de democratização da década de 1980. Esse movimento, consagrado na Constituição de 1988, introduziu o sufrágio universal, a criminalização do racismo, a universalização da saúde, a reforma agrária e a proteção dos direitos das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais.
O resultado manifesta-se como um conflito social entre uma burguesia colonizadora branca que procura defender os seus privilégios através da superexploração do trabalho e da expropriação de recursos naturais, versus um movimento popular que luta pela completa descolonização política, econômica e social do país (YEROS; SCHINCARIOL; DA SILVA, 2019).
A mudança para o neocolonialismo tardio na África do Sul com o fim do regime de apartheid, em 1994, seguiu um padrão comparável ao do Brasil. Em ambos os países, a manutenção do poder econômico e do controle da terra pela burguesia branca, facilitada pelas reformas neoliberais, dificultou a conquista da justiça socioeconómica para a população colonizada (YEROS; SCHINCARIOL; DA SILVA, 2019). Andy Clarno (2017) conduz uma análise comparativa entre a África do Sul e a Palestina/Israel para compreender os limites da “descolonização” nestes países nos anos 1990. Clarno emprega o conceito de “apartheid neoliberal” para elucidar como o neoliberalismo facilitou a perpetuação da segregação de novas maneiras após o fim do apartheid na África do Sul e da assinatura dos Acordos de Oslo entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1993-95.
Segundo Andy Clarno, o apartheid neoliberal na África do Sul e na Palestina/Israel tem sido marcado pela implantação de sistemas de segurança privatizados que visam comunidades subalternas, pela crescente segregação espacial e pela exploração do trabalho precário. Contudo, o período de Oslo não significou uma mudança em direção ao neocolonialismo tardio na Palestina/Israel tal qual na África do Sul e no Brasil.
A continuação do colonialismo de povoamento direto na Palestina e o genocídio em Gaza
Os Acordos de Oslo foram o resultado de uma prolongada resistência anticolonial palestina. Desde a década de 1950, os refugiados palestinos desenvolveram diversas estratégias de resistência durante o exílio, concentrando-se principalmente no estabelecimento de alianças com estados e nações árabes no Sul Global. O objetivo era desafiar o colonialismo de povoamento israelense e preparar o caminho para o retorno. A resistência armada surgiu na década de 1960 sob a liderança da OLP, influenciada pelas revoluções argelina, cubana e chinesa.
Após a derrota dos Estados Árabes na guerra de 1967, a luta armada palestina conheceu tanto vitórias, como na Batalha de Karameh em 1968, e derrotas, como na Guerra Civil Libanesa (1975-90). Na década de 1980, houve uma decadência da resistência armada, o que levou ao surgimento do movimento popular nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO), conhecido como Intifada, em 1987. A utilização de estratégias de desobediência civil, exemplificada pela recusa em cumprir as obrigações fiscais israelense, apresentou a Israel novos obstáculos que se estendiam para além do confronto com guerrilheiros armados ou da gestão da exploração do trabalho palestino. A revolta palestina por autodeterminação não poderia ser suprimida pela simples repressão coerciva ou por medidas limitadas de bem-estar econômico. As demandas palestinas por autodeterminação precisavam ser endereçadas.
Os líderes palestinos da Intifada participaram do início das negociações diplomáticas para a paz no Oriente Médio, iniciadas na Conferência de Madrid em 1991. No entanto, a criação de um canal secreto entre a OLP e Israel, facilitado por negociadores noruegueses, levou aos Acordos de Oslo em 1993. Este acordo causou a alienação dos líderes da Intifada pela antiga liderança no exílio. Consequentemente, os acordos não conseguiram articular as reivindicações da Intifada, servindo assim como um mecanismo para a liderança da OLP consolidar a sua autoridade.
Oslo não marcou o fim da segregação legal e do domínio direto dos colonos israelense na Palestina, mas sim o início de um período de transição supostamente destinado à formação de um Estado da Palestina. As negociações nunca alcançaram este objetivo. Os acordos resultaram numa reorganização do controle colonial sobre os TPO, permitindo aos israelenses terceirizar a administração e a pacificação das populações colonizadas à AP, mantendo ao mesmo tempo o controlo irrestrito de todo o território que pretendiam colonizar (GORDON, 2008). A implementação de barreiras e postos de controle em Gaza e na Cisjordânia intensificou ainda mais a segregação dos não-cidadãos palestinos na sequência dos Acordos de Oslo.
O estabelecimento de paradigmas neoliberais para a construção do Estado palestino foi facilitado pela permanência dos Protocolos de Paris (1994), que foram supervisionados por Instituições Financeiras Internacionais (IFI). Um número considerável de palestinos optou pela construção de um Estado neoliberal como a abordagem mais racional para alcançar a libertação nacional (KHALIDI; SAMOUR, 2011). No entanto, estes esforços facilitaram ativamente o crescimento da mão-de-obra palestina precária, a tomada do território palestino e um aumento nas medidas de segurança coordenadas por israelenses e palestinos.
O território desde o Rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo permaneceu sob a soberania exclusiva do Estado de Israel, que exerce controle sobre todos os palestinos através de um regime de apartheid. Portanto, Oslo significou mais um aborto da transição neocolonial para os palestinos após décadas de luta anticolonial, tal como a Nakba, em 1948.
As profundas contradições de Oslo explicam por que não houve transição para o neocolonialismo tardio na Palestina em comparação com a África do Sul e o Brasil. O fim do apartheid sul-africano e da ditadura brasileira foram marcados por contradições que levaram à continuação do poder das elites colonizadoras nestes países. No entanto, também significaram a conclusão da segregação legal e da dominação direta pelos colonos. A universalização do sufrágio e de outros direitos fundamentais permitiu a progressão em direção a um sistema democrático liberal em ambos os países, permitindo aos colonizados manter a luta por seus objetivos políticos através de formas antes inacessíveis.
Embora o neocolonialismo signifique a permanência do colonialismo em novas formas indiretas, também envolve a partilha de poder com os colonizados. Esta é exatamente a limitação da contribuição de Claro para a compreensão da situação do apartheid neoliberal na Palestina. Na África do Sul, existe um potencial para a população colonizada, como os movimentos socialistas, ascender ao governo através de eleições democráticas e defender alterações nas políticas externa e interna.
Embora ainda enfrente desafios internos em superar a segregação da população negra através do mercado neoliberal e ocasionalmente alinhar-se com o imperialismo dos EUA, o apoio do governo sul-africano liderado pelo ANC aos palestinos fornece uma prova clara da posição distinta que os nativos sul-africanos gozam em relação aos palestinos.
O neocolonialismo impõe restrições à soberania jurídica de um Estado pós-colonial, mas significa um contexto material de resistência do colonizado distinto do colonialismo direto. Por exemplo, a aliança entre as administrações supremacistas de Jair Bolsonaro e Benjamin Netanyahu exemplificou a robustez da solidariedade entre autoridades colonas na promoção da expropriação da população colonizada em seus países, levando à intensificação do genocídio em ambas as nações. No entanto, a transição para o neocolonialismo permitiu aos brasileiros expulsar Jair Bolsonaro do poder através do voto popular e frustrar um novo golpe de estado através de meios democráticos.
Outra ilustração da importância da transição para o neocolonialismo nas colônias de povoamento é a prevenção de um governo fascista Africâner na África do Sul. Os palestinos carecem dos mesmos meios que os subalternos brasileiros e sul-africanos para conter a violência estatal genocida e avançar um projeto nacional-popular.
Portanto, os casos palestino/israelense, brasileiro e sul-africano demonstram que é crucial analisar a transição para o neocolonialismo tardio para compreender como o poder de eliminação é avançado em contextos de colonização de povoamento. A transição para o neocolonialismo tardio no Brasil e na África do Sul constitui uma condição distinta para o Estado colono usar o poder soberano contra a população racialmente subalterna de forma desimpedida.
O genocídio em Gaza mostra que o poder de eliminação de um regime de colonialismo de povoamento opera sem impedimentos sob uma dominação colonial direta que prejudica as capacidades de resistência dos palestinos. Assim, a mudança para o neocolonialismo, mesmo dentro do quadro neoliberal do neocolonialismo tardio, implica uma alteração significativa no processo colonial que permite ao colonizados resistirem de forma mais sólida.
Como salienta Ajl (2023), a existência de uma democracia liberal não significa o fim do colonialismo de povoamento. Tampouco da execução do poder de eliminação pelo Estado colono. No entanto, os casos examinados ilustram como as pessoas colonizadas se tornam menos susceptíveis às ambições e ansiedades dos colonos – uma vez ocorrida a mudança para o neocolonialismo.[i]
*Bruno Huberman é professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autor de A Colonização Neoliberal de Jerusalém (EDUC). [https://amzn.to/3KtWcUp]
Publicado originalmente no Research Bulletin de Janeiro-Abril de 2024 do Agrarian South: Journal of Political Economy.
Bibliografia
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Nota
[i] Quero agradecer a Luccas Gissoni, Max Ajl, Karim Eid-Sabbagh, Freedom Mazwi, Lucas Koerner e Paris Yeros pelos comentários ao manuscrito deste artigo.