Israel a caminho do fascismo
Entrevista com Aida Touma, deputada censurada e suspensa do Knesset por criticar massacre de Gaza, denuncia: leis cada vez mais duras eliminam liberdades; ultradireita estimula ataques armados a palestinos. Solução de dois Estados continua a ser alternativa possível
Entrevista a Giancarlo Summa | Tradução: Antonio Martins
A deputada árabe-israelense Aida Touma-Sliman é no Knesset, o parlamento unicameral de Israel, uma das cinco representantes da aliança de esquerda Hadash (Frente Democrática pela Paz e Igualdade) – que obteve 3,75% dos votos nas eleições de 2022. Com 59 anos, ela integra o birô político do Partido Comunista de Israel. Antes de ser eleita deputada pela primeira vez em 2015, foi co-editora-chefe do jornal Al-Ittihad, afiliado à Hadash. Aida também foi co-fundadora e diretora geral da organização “Mulheres Contra a Violência”, responsável pela criação dos primeiros abrigos para mulheres maltratadas na comunidade palestina em Israel. Há muitos anos, ela é uma das líderes feministas mais importantes em Israel, não apenas na comunidade palestina, e uma das fundadoras da Comissão Internacional de Mulheres por uma Paz Justa e Sustentável entre Palestina e Israel (IWC), criada sob os auspícios da ONU em 2005.
Aida é uma das vozes públicas mais fortes da comunidade palestina em Israel. Tornou-se conhecida por sua firme oposição à ocupação israelense na Cisjordânia e por condenar de maneira contundente as ações das forças armadas israelenses contra a população civil em Gaza. Como resultado dessa postura, em 16 de novembro passado, o comitê de ética da Knesset suspendeu a deputada por dois meses de suas funções parlamentares.
“Israel sempre se autodenomina como a única democracia no Oriente Médio, mas uma parlamentar que representa quase 20% dos cidadãos israelenses [a população árabe no país, observação] não tem permissão para falar. É porque levantei questões sobre a guerra, porque sou contrária à guerra e ao sofrimento dos civis de ambos os lados”, afirma a deputada. “Duas semanas antes, em um discurso na Knesset, protestei e falei sobre o sofrimento das crianças de ambos os lados da fronteira, aqui em Israel e em Gaza. Na mesma Assembleia, disseram-me que não há igualdade, não há simetria entre as crianças, que as crianças de Gaza, na prática, procuraram por isso. Parece que este comitê de ética decidiu que ou falo exatamente o que querem que eu fale, ou devo ficar em silêncio. Mas ninguém conseguirá me silenciar, e continuarei a lutar pela paz”.
Qual é sua análise geral sobre os acontecimentos em Gaza e Israel:
Antes de tudo, foi verdadeiramente chocante o que aconteceu em 7 de outubro. Nós, como muitos outros cidadãos palestinos e israelenses, não esperávamos uma quantidade tão grande de mortes de civis. Expressamos nosso pesar pelos civis israelenses e sentimos a dor daqueles que perderam seus entes queridos, mortos ou sequestrados em Gaza. O Hadash reuniu-se com representantes das famílias dos sequestrados, ouvindo histórias extremamente dolorosas. Desde os primeiros dias da guerra, destacamos a importância do retorno dos sequestrados às suas famílias e de um acordo de troca de prisioneiros. É urgente um cessar-fogo imediato e o retorno seguro dos sequestrados no menor tempo possível.
Sempre fomos e continuaremos sendo contra a guerra, contra o derramamento de sangue e contra o sofrimento da população civil. A situação atual em Gaza é terrível, com casas, escolas e hospitais bombardeados, e presença de fósforo no ar. No entanto, em Israel, ainda insistem em afirmar que o exército é o mais moral do mundo, que não faz mal aos inocentes e que não ataca hospitais. É essencial compreender que vivemos em uma situação caótica há muito tempo.
A ocupação israelense continua a oprimir o povo palestino, e enquanto isso persistir não haverá segurança para ambas as partes. Falando como palestina, sinto a dor do meu povo nos últimos 75 anos, especialmente após o colapso das esperanças de uma solução política e do fim da ocupação por meio de um acordo político-diplomático. A falta de esperança e a desesperança entre os palestinos aumentaram, especialmente com a formação do governo israelense no último ano, um governo de extrema direita com componentes que podem ser descritos como fascistas.
Ficou claro desde o início que esse governo não tinha a intenção de encerrar a ocupação ou iniciar um processo político. Pelo contrário, o governo Netanyahu adotou uma política de violência sistemática e assassinato de palestinos nos territórios ocupados e em Israel. O assassinato de civis, por qualquer motivo, não pode ser legitimado, mas é essencial compreender o contexto em que ocorreu o evento de 7 de outubro.
Após esses ataques e as cenas horríveis a que testemunhamos, com civis mortos e reféns, a maioria da sociedade reagiu pedindo vingança. Parece que a lógica e a razão foram suspensas. A sociedade israelense sofreu um trauma significativo, sentindo pela primeira vez em décadas uma falta de segurança em seu próprio Estado. Quase todas as famílias têm vínculos com pessoas que foram mortas ou sequestradas. Até mesmo o mito da segurança das forças armadas israelenses sofreu uma rachadura.
O governo Netanyahu anunciou que o objetivo da guerra em Gaza é eliminar o Hamas. Mas antes da guerra, houve manifestações massivas contra Netanyahu, contestando sua tentativa de limitar os poderes da Corte Suprema, considerada um ataque às bases democráticas do país.
A situação na Cisjordânia já era violenta antes da guerra e piorou após 7 de outubro. Sob pretexto da guerra, mais de 186 palestinos foram mortos, alguns por colonos e outros pelo exército israelense, que quase todas as noites entra em vilarejos e cidades palestinas. Quinze comunidades beduínas foram “eticamente limpas” do Vale do Jordão desde o início da guerra devido às ameaças e ataques constantes dos colonos. Nos últimos meses, pelo menos 2.500 palestinos foram presos na Cisjordânia e mantidos em condições muito difíceis.
Uma nova realidade está sendo criada minuto a minuto, fortalecendo o papel dos colonos israelenses. A anexação e o colonialismo estão sendo implementados conforme planejado antes da guerra. Com a justificativa da guerra e da necessidade de uma situação de emergência, a coalizão de extrema direita que apoia Netanyahu está tentando promulgar leis antidemocráticas e semi-fascistas. Por exemplo, estão autorizando o porte de armas em locais públicos, facilitando muito para civis obterem armas. A distribuição de armas está ocorrendo como se estivessem distribuindo sorvete. As ameaças da polícia e dos ministros aumentaram, indicando que os cidadãos palestinos de Israel que ousarem se manifestar contra a guerra ou em apoio a Gaza serão transferidos para Gaza.
Recentemente, o chefe da polícia afirmou que qualquer pessoa que queira mostrar solidariedade a Gaza é mais do que bem-vinda: ele a levará pela mão, a colocará em um ônibus e a enviará para Gaza. Postar uma foto no Facebook com uma bandeira palestina é motivo para prisão. Eu mesma fui suspensa de meu cargo no parlamento e meu colega de partido, Ofer Cassif, também foi suspenso por criticar as ações militares de Israel contra a população de Gaza. As críticas e o desacordo não são tolerados.
Antes da guerra, a análise indicava que a revisão judicial conduzida pelo governo no último ano visava definir a ocupação como uma situação colonial, removendo os últimos obstáculos que a Suprema Corte poderia impor. Agora, a guerra está sendo usada como cobertura para alcançar esse objetivo. O governo israelense está explorando os legítimos sentimentos de raiva e dor para realizar os planos que tinha desde o início – ou seja, liquidar a questão palestina e bloquear qualquer possibilidade de encerrar a ocupação.
As pessoas estão pedindo respostas sobre o funcionamento do governo e do exército, mas estão sendo informadas de que estão em guerra. Isso significa que os debates sobre as responsabilidades de como a sociedade israelense chegou a este ponto e punir os responsáveis pelos erros que levaram a 7 de outubro estão sendo adiados até depois da guerra. Netanyahu sabe que sua vida política e sua posição de primeiro-ministro só continuarão enquanto a guerra persistir, e isso o preocupa. O que acontecerá é imprevisível. O retorno de uma Intifada, que representava resistência popular pacífica em massa, não pode ser previsto. Teme-se mais uma onda de violência e opressão. Parece que o governo Netanyahu quer levar todo o Oriente Médio a uma nova ordem, um novo equilíbrio.
A ONU e a comunidade internacional têm sido até agora impotentes para deter a guerra e os massacres de civis em Gaza. Os Estados Unidos e a União Europeia continuam a apoiar o governo de Israel, embora com algumas ressalvas em questões humanitárias. O que as forças progressistas do mundo podem fazer?
“Após 7 de outubro, os Estados Unidos mudaram sua posição em180 graus, passando da recusa em apoiar o governo Netanyahu para abraçar esse governo e apoiá-lo militar e financeiramente. O governo Biden alinhou-se a Israel sem reservas reais sobre os meios ou objetivos de Netanyahu. Biden não apenas deu luz verde para o governo israelense anunciar a guerra, mas tornou-se um parceiro desta guerra, movendo dois grupos de porta-aviões americanos para o Oriente Médio para enviar uma mensagem clara a toda a região. Vimos até mesmo o secretário de Estado Antony Blinken participar nos primeiros dias das reuniões do gabinete de guerra presidido por Netanyahu. Esta é uma parceria ativa que continua a longa aliança estratégica entre o governo norte-americano e Israel, o verdadeiro parceiro no Oriente Médio e o sujeito que compartilha os interesses dos EUA na região. Apenas o fato de Biden estar em plena campanha eleitoral, e a raiva e o protesto do movimento em favor dos palestinos em seu país, podem talvez fazê-lo mudar de posição em relação a esta guerra. Está claro que as demonstrações e protestos em massa em todo o mundo são fundamentais para pressionar Biden e outros líderes ocidentais a interromper a guerra, especialmente quando milhares de crianças e mulheres de Gaza foram mortas e a crise humanitária se tornou dramática. É necessário evitar a todo custo uma guerra regional, que poderia eclodir se os fatos prosseguirem como Netanyahu está planejando. A contribuição mais importante das forças progressistas é aumentar a pressão sobre os líderes de seus países para que revejam o apoio ilimitado à guerra. A palavra de ordem deve ser uma só: ‘Parem a guerra’. Em seguida, será necessário ajudar na reconstrução de Gaza, mas, acima de tudo, não esquecer que, sem uma solução política para a questão palestina e sem pôr fim à ocupação, estaremos apenas esperando a próxima explosão”.
Já se passaram 30 anos desde o primeiro acordo de Oslo, o histórico aperto de mão entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat nos braços abertos de Bill Clinton. Após Gaza, ainda faz sentido falar em solução política, em dois Estados?
Os massacres iniciados em 7 de outubro e a guerra em Gaza são um ponto de virada histórico; o que está sendo feito nestes dias moldará os cenários seguintes. Enquanto houver esse governo de extrema direita, o futuro de Israel provavelmente será reocupar Gaza e permanecer lá. Nós, do Hadash, pelo contrário, sempre insistimos que não há solução militar para o conflito, mas é necessário iniciar negociações reais para alcançar a afirmação efetiva dos direitos dos palestinos, assim como de todos os outros povos do mundo, de terem o direito de estabelecer seu próprio Estado, de pôr fim à ocupação, de serem livres da ocupação e de acabar com a violência cometida contra a sociedade palestina.
A solução de dois Estados foi originalmente proposta pelo Partido Comunista em Israel. Fomos os primeiros a levantá-la, mas fomos atacados tanto por israelenses quanto por palestinos. Depois, até alguns anos atrás, era a única solução de esperança da qual todos falavam. Mas a situação real no terreno piorou em vez de melhorar. A ocupação da Cisjordânia, após a guerra de 1967, deveria ter sido um status temporário, mas os governos subsequentes de Israel, especialmente os de Netanyahu, mostraram querer transformar a ocupação em uma situação colonial permanente. Eles querem criar um grande Estado de Israel. E que os palestinos não sejam cidadãos, mas apenas residentes, com poucos direitos. Trata-se de um regime de apartheid, que já existe há alguns anos na Cisjordânia. E estão tentando estabelecê-lo cada vez mais também em Israel, para os palestinos como eu, que são cidadãos de Israel. Quando se fala em um Estado único, está se falando de uma solução que já existe: um estado de apartheid, porque o mundo não é capaz de garantir a segurança dos palestinos com base em todos os direitos humanos e nas leis internacionais que falam de ocupação.
Continuamos a acreditar que o povo palestino tem o direito à autodeterminação, e o povo palestino decidiu querer seu próprio Estado e concordou com um Estado nas fronteiras de 1967, com Jerusalém como capital. Apoiamos esse projeto. Acreditamos que, embora essa solução pareça estar cada vez mais distante, ainda é a opção mais importante. Quais são as alternativas? Guerra permanente? Sabemos que há cada vez mais vozes que dizem claramente que não querem encontrar soluções diplomáticas. Acreditamos que todos os povos sob ocupação têm o direito de resistir à ocupação, de se libertar da ocupação. Não somos nós que decidimos quais são os métodos de resistência que o povo palestino decide adotar. Esperamos que a resistência exclua ataques contra civis. Mas não somos nós que decidimos como o povo palestino quer resistir. E enquanto houver opressão, mais opressão haverá, mais resistência haverá. Por isso, pedimos desde o primeiro dia para parar a guerra e pedimos a libertação humanitária pelo menos de todas as crianças e mulheres sequestradas. Pedimos ao mundo para iniciar imediatamente um corredor humanitário. E para levar ajuda a Gaza, que está enfrentando uma situação catastrófica. Também estamos alertando que os planos de evacuação, a limpeza étnica do norte de Gaza, empurrando a população para o sul ou, como foi declarado no início, para o Sinai, são um crime. O mundo precisa acordar e tentar parar esta guerra louca, que corre o risco de degenerar em um conflito regional que ninguém saberia como gerenciar ou parar”.