No domingo, 18 de fevereiro de 2024, o presidente Lula deu uma entrevista em uma coletiva de imprensa em Adis Abeba, após sua participação da 37a. Cúpula de Chefes de Estado e Governo da União Africana e logo antes de embarcar de volta para o Brasil.

Na última pergunta, uma jornalista perguntou sobre a questão da UNRWA e Lula deu a resposta que pode ser lida ao final desta página: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/entrevistas/entrevista-coletiva-do-presidente-lula-durante-visita-a-etiopia

Chamou a atenção da mídia e redes nacionais, talvez não tanto da mídia internacional, o seguinte trecho: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe um nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus.”

Bastou mencionar “ele”, Hitler, para que os disparos em direção a Lula começassem, especialmente da parte do governo israelense. Acusações de antissemitismo e de banalização do Holocausto vieram de todos os cantos, inclusive de nossa oposição, em especial a evangélica, mas não somente.

Mas também muitos o defenderam, explicaram os pormenores de suas palavras, algo que, nos dias atuais, infelizmente escapa da capacidade interpretativa da grande maioria das pessoas.

Chama muito a atenção, no entanto, que o texto inteiro tenha sido resumido a essas duas frases acima reproduzidas. Num texto de quase página inteira, apenas duas linhas foram objeto de análise e, principalmente, crítica.

E as demais? Não significam nada?

Vejamos:1

“Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente? E qual é o tamanho do coração solidário dessa gente, que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio! Porque não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um exército, altamente preparado, e mulheres e crianças.”

Logo de cara, Lula menciona o anúncio dos cortes financeiros para Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, conhecida por sua sigla em inglês: UNRWA.

Criada em 1949, após a Guerra da Palestina de 1948 e da Nakba, esta agência é a salvaguarda para a sobrevivência de palestinas e palestinos que se encontram refugiados e espalhados por Egito, Jordânia, Líbano e Síria, além da própria Faixa da Gaza. Por esse motivo, é um alvo certo do governo israelense em seu intento de destruir a sociedade palestina.

As alegações a que Lula se refere em sua fala não foram provadas pelo governo israelense, quem as fez. Mesmo assim, as pessoas acusadas foram afastadas sem julgamento prévio e os cortes foram mantidos, gerando dúvidas sobre a possibilidade da agência continuar seus trabalhos.

Na sequência, Lula faz uma afirmação muito direta sobre a existência de um genocídio e não uma guerra em curso na Faixa de Gaza. Mais explícito impossível!

Refere-se às principais vítimas, mulheres e crianças, às quais talvez devêssemos somar os milhares de homens civis e idosos. Os mesmos homens que normalmente são os alvos oficiais do exército israelense, porque segundo este são os “terroristas” do Hamas. Mulheres e crianças ficaram na verdade reduzidas a efeitos colaterais, vítimas de homens que as usam como escudos humanos.

Imagine a cena: “filho, vai na minha frente para eles atirarem em você, eu ver de onde está vindo e evitar o tiro”.

Ou talvez, falando para a família: “Eles estão vindo, vocês fiquem aqui enquanto me escondo nos túneis.”

Soaria hilário, não fosse trágico.

Esses mesmos homens aparecem em incontáveis vídeos levantando escombros para tentar salvar suas filhas e filhos, carregando mulheres grávidas e idosos.

Esses são os “terroristas carniceiros desumanos nazistas” do Hamas.

Para terminar este parágrafo inicial, Lula deixa claro que há uma enorme desproporcionalidade entre as forças dos dois lados, Israel fazendo parte dos top 20, enquanto as forças de Gaza por óbvio nem aparecem no ranking (https://worldpopulationreview.com/country-rankings/military-strength-index-by-country).

Este fato em si já comprova que o genocídio é o resultado mais esperado de um conflito desigual como esse.

Olha, se teve algum erro nessa instituição que recolhe dinheiro, puna-se quem errou, mas não suspenda a ajuda humanitária para um povo que está há quantas décadas tentando construir o seu Estado. O Brasil não apenas afirmou que vai dar contribuição – eu não posso dizer quanto porque não é o presidente que decide, é preciso ver quem é que cuida disso no governo, para saber quanto é que vai dar – como o Brasil disse que vai defender na ONU a definição do Estado palestino ser reconhecido definitivamente como Estado pleno e soberano.

Danos na sede da UNRWA na Cidade de Gaza sofridos durante a campanha militar de Israel na Faixa de Gaza. Foto: Karam Hassan/Anadolu

Aqui Lula menciona dois temas ligados por décadas de história: criação do Estado Palestino e a UNRWA.

Primeiro, é necessário salvar a vida do povo palestino. Para isso a UNRWA tem que continuar funcionando plena e totalmente.

Segundo, é necessário reconhecer definitivamente junto à ONU o Estado Palestino pleno em todos os seus direitos e soberano sobre seu território e seu povo.

Diz tudo, mais uma vez de forma simples e direta, afirmando aquilo que muitos países simplesmente não querem entender e estão deixando de fazer: a inação global está matando um povo que luta por sua afirmação há 75 anos!

É importante lembrar que em 2010 Brasil foi o primeiro país a reconhecer o Estado palestino. É2 preciso parar de ser pequeno quando a gente tem que ser grande. O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe um nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus. Então não é possível que a gente possa colocar um tema tão pequeno. Você deixar de ter ajuda humanitária. Quem vai ajudar a construir aquelas casas que foram destruídas? Quem vai restituir a vida de 30 mil pessoas que já morreram? 70 mil que estão feridos? Quem vai devolver a vida das crianças que morreram, sem saber porque estavam morrendo? Isso é pouco para mexer com o senso humanitário dos dirigentes políticos do planeta?

Este é o parágrafo que despertou a maior atenção.

Mas por que tanta comoção, se Lula já começou sua resposta falando em genocídio?

Porque ousou trazer à tona o nome de Hitler – e tudo o que normalmente lhe é associado – ao mencionar o que está acontecendo com o povo palestino.

Sobre isso, muito já foi falado. Recomendo este texto bem didático: http://valterpomar.blogspot.com/2024/02/o-governo-de-israel-deveria-aprender.html?m=1

Um comentário interessante foi feito por Arnesa Buljušmić-Kustura, sobrevivente do cerco a Sarajevo e pesquisadora sobre genocídio. Disse ela: “A única questão que levanto com os comentários é que Lula está claramente se esquecendo de outros genocídios que ocorreram depois do Holocausto (Bósnia, Ruanda, Sudão etc.). Fora isso, não há nada de errado com este comentário. É uma comparação justa baseada nas ações e atitudes de Israel.”

Sigamos para a segunda parte do trecho.

Lula questiona, mais uma vez diretamente, o que é preciso que ocorra para que o senso humanitário dos governantes seja despertado.

De fato, a classe política está cada vez mais distante da realidade social – tema para outro texto – e não escuta nem mesmo os apelos de suas próprias populações para que algo seja feito para evitar mais vítimas desta guerra.

Repetindo a pergunta feita: o que é preciso fazer para despertar a humanidade da classe política?

Ousando dizer: o que precisamos fazer para reconectar a política e o povo?

Então, sinceramente, ou os dirigentes políticos mudam o seu comportamento com relação ao ser humano, ou o ser humano vai terminar mudando a classe política. O que está acontecendo no mundo hoje é falta de instância de deliberação. Nós não temos governança! Eu digo todo dia: a invasão do Iraque não passou pelo Conselho de Segurança da ONU. A invasão da Líbia não passou pelo Conselho de Segurança da ONU. A invasão da Ucrânia não passou pelo Conselho de Segurança da ONU. E a chacina de Gaza não passou pelo Conselho de Segurança da ONU.

Cuidado! Aqui podem dizer que Lula está chamando por uma revolta popular!

Mas dentro do contexto da resposta, significa o que foi dito acima: a classe política está distante da população. Isso faz com que oportunistas tomem seu lugar, os pequenos Hitleres da história. Se a classe política não mudar, essa desconexão só irá aumentar. Mas isso também é tema para outra ocasião.

Junto a isso, ele lembra que atualmente falta uma governança global e cita exemplos de conflitos que foram decididos unilateralmente e tiveram consequências graves para suas populações e para o mundo.

É importante mencionar que o mundo atual sofre com uma constante insegurança e ameaça de conflitos, estando a ONU paralisada nas suas deliberações.

Segue no parágrafo seguinte.

Aliás, as decisões tomadas pelo Conselho não foram cumpridas e tampouco foi cumprida a decisão penal tomada agora no processo da África do Sul. O que nós estamos esperando para humanizar o ser humano? É isso que está faltando no mundo. O Brasil continua solidário ao povo palestino. O Brasil condenou o Hamas, mas o Brasil não pode deixar de condenar o que o Exército de Israel está fazendo na Faixa de Gaza.”

Continua a apontar o dedo para a inoperância da ONU e de suas decisões. A situação palestina é a grande prova – mas não a única – da falta de um mecanismo que faça suas decisões serem aceitas e, principalmente, tornem-se realidade.

Mas o que mais chama a atenção do texto todo está aqui: “O que nós estamos esperando para humanizar o ser humano? É isso que está faltando no mundo.”

Se há uma frase que deveria ser utilizada para resumir este texto, é exatamente essa!

Necessário explicar porquê?…

Como adendo ao texto, além das reações, é importante também analisar o que as “não-reações” têm a dizer.

O silêncio de grande parte da mídia estrangeira, mesmo a alternativa, significa algo?

Talvez por estar em português, língua de menos acesso mundial, o que ficou conhecido ao redor do globo foi o trecho utilizado pelo governo israelense – e replicado pela extrema direita mundial – para fazer seu barulho.

Algumas vozes se somaram a Lula, apoiando aquilo que Israel criticou, alguns governos se juntaram a suas condenações após alguns dias, houve quem dissesse que ele ousou finalmente dizer aquilo que ninguém tivera coragem antes.

Mas sempre mantendo o foco na frase tão divulgada.

Sobre o resto do texto, quase nada.

Hitler ainda chama mais atenção do que a ideia de humanidade, quase noventa anos após sua morte e o fim da Segunda Guerra Mundial. Mesmo este texto repete seu nome algumas vezes!

Noventa anos após um genocídio levado às últimas consequências, por que ainda assistimos a outros genocídios?

Noventa anos após a caída dos primeiros regimes fascistas da história, por que assistimos ao retorno destas forças?

O silêncio pode dizer algo, a dissonância entre povo e poder também.

Há algo errado e precisamos parar e pensar.

1 Será usada a formatação do link oficial. Foram feitas pequenas correções, algumas mencionadas ao longo do texto.

2 Na transcrição oficial está escrito “Eu”, ao invés de “É”, mas não dá sentido à frase.