O tipo de democracia de inspiração liberal, eurocêntrica e estadunidense, que é tido como modelo para países como o Brasil, é uma falsificação e não levará a um cenário de liberdade e justiça. Sob essa pesada sombra dos ideais políticos ocidentais, foi debatida na manhã de sexta-feira, 12 de novembro, o tema Cultura, Democracia e Questão Indígena, na quinta mesa dos Seminários Cultura e Democracia, promovidos pelo Instituto Cultura e Democracia e as fundações Friedrich Ebert e Perseu Abramo.

A poeta mexicana Irma Pineda Santiago e o escritor brasileiro Ailton Krenak, convidados dessa rodada dos debates, não titubearam. Lideranças indígenas reconhecidas internacionalmente em sua luta pela defesa dos povos originários da América Latina, foram explícitos ao afirmar que os países desse canto do mundo precisam adotar novo referencial simbólico e nova prática política para atingir, de fato, a democracia. Na opinião deles, os povos indígenas têm muito a ensinar sobre essa mudança.

Para Irma, a própria democracia não pode existir sem os povos originários. “Não podemos pensar em democracia se não nos pensarmos como seres mais ligados ao meio ambiente, à natureza, do que a qualquer outra coisa. A separação do homem e da natureza é uma concepção ocidental. Nós não fazemos essa distinção. Não existe para nós uma forma específica de designar a natureza, porque somos uma coisa só”, afirmou Irma, que escreve e traduz em língua zapoteca diidxazá. A impossibilidade de democracia sem os povos indígenas se dá, ao fim e ao cabo, pelo genocídio e pela destruição da natureza, negação absoluta de ideais como liberdade, fraternidade e igualdade. “Estamos em pleno processo de terricídio”, disse a poeta, que também é representante dos povos originários da América Latina no Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU.

A própria noção de igualdade, tal como inscrita no dístico da Revolução Francesa, é rejeitada por Ailton Krenak. “Democracia deveria ser o direito à diferença, não à igualdade. Num país plural como o Brasil, reclamar a igualdade seria o equivalente a endossar o extermínio”, argumentou.

Para Krenak, a democracia que se evoca nos debates é aquela preconizada pelos Estados Unidos, que a veem como um produto de quem “só sonha consigo mesmo”. “Essa maquinaria de governar o mundo substitui todas as outras formas de pensamento. Para os Estados Unidos, que diz ser a maior democracia do mundo, a democracia é uma commodity, que eles podem exportar para todos os lados. Se podem impor o seu modelo de democracia, podem impor também ditadura onde acharem que devem. Queremos uma democracia em outro universo, não nessa posição subalterna de troca de bugigangas”, disse. “Os involuntários da pátria somos aqueles que são convocados para um debate sem que as condições nos fossem dadas para participar”, completou.

A democracia que o ocidente exporta seria como algo pronto, disse Krenak, e não algo pelo qual se deve lutar e construir no dia a dia. “Evocamos a democracia como uma deusa remota de quem a gente espera um milagre. Rogamos à democracia no fundo do poço, comendo farinha d’água e pedindo democracia. Essa é uma ideia colonial de justiça e democracia. Ela não admite a diferença. O discurso social da democracia é como uma roupa folgada onde caberia todo mundo, mas onde a desigualdade está por todos os lados”.

No início dos debates, o moderador Jean Tible, professor de Ciência Política da USP, destacou que o modo de vida e os saberes dos povos originários da América Latina têm lições importantes para a esquerda política. Tible lembrou do movimento zapatista que, na primeira metade dos anos 1990, insurgiu-se contra a anexação econômica do México pelos Estados Unidos, via acordos comerciais. “Ali o México foi interpelado pela parcela esquecida da população, que bradou: ‘Nunca mais o México sem a gente’. Esse grito é um alerta e uma possibilidade de caminho para os países”, disse.

Tible recordou também como, no Brasil, a ação política da esquerda conjugada com os povos indígenas produziu aprendizados e avanços importantes. No decorrer das lutas mais recentes, pontuou, passando pelo movimento das greves iniciadas nos anos 1970, o movimento sem-terra, o movimento negro e feminista, “houve também tem o levante indígena, um ativo participante daquele momento muito especial do Brasil”. Para o professor, uma síntese a ser lembrada é a figura de Chico Mendes, que uniu as lutas trabalhistas com o saber indígena. “Os seringueiros começaram a perceber os indígenas quando suprimiram o patrão. Chico Mendes foi um branco que conseguiu ouvir a voz dos espíritos e passou a amar a floresta. Tem um encontro aí que é muito rico, importante para a gente pensar democracia e cultura no contexto do Brasil de hoje”, disse.

Uma democracia de inspiração indígena exigirá mudanças significativas e afrontará interesses poderosos, por certo. “Deveremos resistir aos megaprojetos. Queremos desenvolvimento na medida certa, que garanta dignidade sem destruição da natureza”, disse Irma. Antes dela, Tible já havia apontado o projeto da usina de Belo Monte como “um grave erro”, por se apoiar, segundo ele, numa política de morte dos povos originários.

Do ponto de vista político, seria necessário aprofundar a participação social no processo decisório de forma radical. “Nossos povos tomam decisões em assembleias comunitárias que duram por dias, às vezes, até atingirem o consenso. É um processo que significa escuta coletiva: o que vai ser decidido é decidido ouvindo as vozes”. Para Krenak, movimentos nessa direção são vistos na Bolívia e no Chile. “Os povos desses países estão dizendo que não querem mais o modelo de estado de exportação. Eles querem refundar o estado”.

Durante o debate, surgiu, de forma não prevista, um eloquente exemplo da democracia criticada por Krenak. Um dos convidados, Dário Kopenawa Yanomani, liderança indígena e conselheiro da Hutukara Associação Yanomami, não pode comparecer. Precisou se deslocar para a região do alto rio Apiaú, em Mucajaí, ao Sul de Roraima, para tentar evitar mais violência e cobrar soluções do poder público. Lá, conflitos com garimpeiros já custaram, recentemente, o assassinato de dois indígenas.

Os Seminários
Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.

Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.

Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.

As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.

Para assistir o debate desta sexta-feira, clique aqui.

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