Se há algo a ser celebrado para além do centenário de nascimento de Raymond Williams, é a maior circulação da tradução de suas obras nos últimos anos no Brasil. A trajetória de sua publicação no país, que começou pelo livro Cultura e sociedade, em 1969, por obra e arte da Companhia Editora Nacional, não avançou de modo significativo no século XX. Somente neste século vimos vários outros livros deste importante expoente da nova esquerda britânica sendo publicados em português, na maioria das vezes graças à Editora Unesp.

Contudo, a efeméride é também uma oportunidade para ressaltar a contribuição deste importante pensador marxista. Dentre as várias possibilidades de fazê-lo, destaco especialmente o lugar central que a noção de cultura sempre teve em suas reflexões. Ao problematizar a aura romântica que se construiu em torno da figura do escritor, por exemplo, como fruto de um gênio criador dotado de características excepcionais, constitutivas de uma habilidade específica restrita a uma elite letrada e distante da vida comum da maioria dos mortais, Williams contribuiu decisivamente para democratizar a nossa concepção de arte e cultura. E fez isso destrinchando o processo histórico em que, ao longo do século XIX, literatos e artistas construíram essa concepção romântica como estratégia para fazer frente ao avanço do desenvolvimento industrial e ao aprofundamento das relações capitalistas de produção que ameaçavam transformar tudo em mercadoria, inclusive a literatura. Ao desvelar esse processo, desconstruiu o “mito do artista romântico”, removido do pedestal em que até hoje muitos insistem em mantê-lo, até mesmo para restringir de forma elitista o acesso à cultura que, à rigor, nada tem de extraordinária, é, antes, comum, faz parte do cotidiano de qualquer um de nós.

Quem, por acaso, continua tendo dificuldades para reconhecer este princípio fundamental esgrimido por Williams, pode experimentar, por exemplo, ler Os supridores (Todavia, 2020), de José Falero. É uma demonstração cabal do seu argumento e está longe de ser a única. Evidencia o quanto as periferias são capazes de produzir literatura da melhor qualidade.

Mas se fosse o caso de indicar um texto de Williams que sirva como porta de entrada para a sua obra, não resta dúvida de que o melhor a fazer é começar pelo ensaio “A cultura é algo comum”, de 1958 (Recursos da esperança, Ed. Unesp, 2015). Trata-se de um manifesto em defesa de uma concepção de cultura e de educação essencialmente democrática, elaborado a partir de um paralelo com a própria trajetória de vida do autor. Afinal, o filho de um trabalhador ferroviário pode se tornar professor/intelectual/escritor, tal como qualquer indivíduo oriundo da classe trabalhadora – por mais que as classes dominantes no Brasil considerem isso abominável e criem todos os obstáculos possíveis para que trajetórias similares se viabilizem.

A certa altura desse texto, cuja leitura é muito prazerosa, Williams confronta vozes que insistem em questionar as razões pelas quais recursos públicos deveriam subsidiar a produção artística e cultural, já que, dizem essas mesmas vozes – que tão bem conhecemos -, não se deve apoiar o que não gera lucro. A resposta do pensador socialista é lapidar, ao afirmar que uma nação não é uma empresa. O parlamento, por exemplo, não dá lucro. É mantido porque o julgamos tão indispensável para a democracia quanto a cultura e a educação. Por isso os recursos públicos devem subsidiá-las.

Resta saber quantos de nós acreditamos verdadeiramente na democracia. Eis uma pergunta que Williams também não deixa sem resposta ao encerrar tão instigante ensaio: “Quem então acreditaria na democracia? A resposta é bem simples: as milhões de pessoas na Inglaterra que ainda não têm acesso à democracia, onde trabalham e vivem”.

São muitas as razões para celebrar e ler Raymond Williams num país cuja democracia é ainda tão frágil, sofrendo golpes sucessivos a cada período de poucas décadas. E é também urgente e necessário.

Denilson Botelho é  professor do Departamento de História da Unifesp.

 

 

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