A chacina do Jacarezinho e a violência policial no Brasil foram tema do programa Pauta Brasil nesta sexta-feira (14), que reuniu os especialistas Lenin Pires e Maysa Carvalhal dos Reis Novais, com mediação de Wadih Damous. Lenin Pires é antropólogo e professor do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense; Maysa Carvalhal dos Reis Novais é mestra em Direito (UFRJ), membra da comissão de segurança pública da OAB/RJ, advogada e pesquisadora do Ipea; e Wadih Damous é advogado, ex-presidente da OAB/RJ e ex-deputado federal pelo PT/RJ.

Wadih Damous abriu o programa descrevendo o cenário de terror ocorrido na semana passada, quando às 6h da manhã 200 homens da Polícia Civil, alegando estar cumprindo mandados expedidos pela justiça, invadiram a favela do Jacarezinho e tiveram como resultado 28 mortos, um deles soldado. “Do ponto de vista do espetáculo macabro, a operação não foge à regra de outras que aconteceram e acontecem no estado Rio de Janeiro, particularmente na cidade, com invasões das casas, execuções sumárias, terror e ameaças, ou seja, a face mais perversa do Estado que se abate sobre as comunidades pobres”, lamentou.

A ocorrência da operação em plena pandemia e na vigência de ordem do Supremo Tribunal Federal que proíbe este tipo de operação foi apontada como um diferencial. O STF determinou à polícia do Rio de Janeiro que não mais fizesse essas incursões e que não se mexesse em cenários que pudessem prejudicar perícia, exceto em condições de excepcionalidade. Porém, não havia excepcionalidade que justificasse aquela incursão.

Damous indagou a Maysa se é possível dizer que a polícia, quando faz este tipo de operação, se sente imbuída de uma missão higienizadora racista, considerando a história da construção social do estado do Rio de Janeiro.

A pesquisadora iniciou resgatando que ontem foi 13 de maio, o dia que o povo negro reivindica uma verdadeira abolição, reconhecendo que aquela ocorrida em 1888 não o deixou livre. “A abolição nos libertou de uma questão, mas nos tornou escravos do Estado diversas áreas de interpretação. Uma delas é o controle social punitivo pela violência e também pela segregação racial nos territórios da cidade. Não houve muitas mudanças, a persecução criminal e social no sentido da discriminação contra negros e negras denuncia que a gente não rompeu com o estigma do escravismo.”

Para Maysa, quando pensamos a tragédia do Jacarezinho e tantas outras chacinas que vivemos no Brasil é necessário enfrentar o debate por meio de algumas vertentes. Uma delas é a questão da guerra as drogas, outra a da violência policial e ainda a do genocídio dos negros.

“A política de Segurança Pública que costumeiramente chamamos de guerra às drogas é na verdade uma guerra à juventude negra e periférica do Brasil, que gera um alto custo em vidas perdidas sem reduzir taxas de crimes nem afetar mercado de drogas ilegais. Jacarezinho não pode ser visto como um ponto fora da curva, pois é um projeto de dominação, de controle social punitivo, que só tem como resultado produzir massacres”, afirmou.

Ela explicou que quando os movimentos negros reivindicam o termo genocídio é porque uma prática que submeta intencionalmente um grupo a condições materiais de vida capazes de destruí-lo, física, parcial ou totalmente, não é acaso, é estrutural. Uma prática que tem razão de ser, esse controle de corpos negros que são lidos como desviantes.

Maysa pontuou que esta foi a maior chacina desde quando estas começaram a ser contabilizadas. E que a história das chacinas do Rio de Janeiro é de massacres e execuções em massa. “É preciso falar da ilegalidade do ato, que primeiro se apresentou como operação com o objetivo de cumprir mandados de busca e apreensão, mas na verdade acabou com a morte e execução sumária de 28 pessoas, muitas delas sem apresentar resistência, em estado de rendição. Não é sobre resistência, é execução mesmo. Não é compatível com os marcos de legalidade. O direito à vida, à integridade física, a presunção de inocência foram eliminados como um todo para gerar uma cena midiática, contemplada com a coletiva de imprensa da Polícia Civil, da Secretaria de Segurança, quando um representante partiu ao ataque em vez de reconhecer seus evidentes erros”, afirmou.

“Isso obviamente é inaceitável, mas está de completo acordo com o que se tem feito da política criminal, que é tratá-la como um departamento de autoritarismo em vez de ser tratada com inteligência, concluiu”.

Uma pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que a política de drogas consumiu 5,2 bilhões de reais, em um ano, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. E continua sendo pouco eficiente, pois se traduz em efeitos letais para a população como um todo e a própria polícia, o que é inaceitável para um parâmetro democrático.

Lenin Pires resgatou que em um curto espaço de tempo se pode observar certa dinâmica na arquitetura da atuação das forças policiais, que migram do papel de instrumento manipulado por determinados grupos de poder ancorados na polícia oficial e passam a ser elas mesmas parte da política e estabelecer estratégias dentro de um momento histórico internacional que podemos chamar de neoliberalismo.

O professor citou estudo que remonta ao período em que se começaram a contar essas intervenções, de 1993 pra cá. Já em 1994, aumenta a letalidade policial em determinados espaços da região metropolitana do Rio de Janeiro, sobretudo na Zona Norte e na Zona Oeste. Na Zona Sul, quando acontece, é em territórios de favelas, onde um público hegemonizado de pobres negros vive em precariedade, sem direito, já que não têm direito à propriedade e a fazer parte da sociedade política. “A cidadania muitas vezes é definida por pagar impostos. Sujeitos que não pagam imposto, não têm propriedade, vivem à mercê da ação do Estado em variadas situações”, disse

O direito administrativo brasileiro não é codificado, afirmou o professor. “É sempre resultado da interpretação do agente, que detém o poder, não há parâmetros estabelecidos. Qualquer sujeito que está no Estado pode ser intérprete da Lei, como acontece no caso ação das polícias. Pode atuar interpretando a lei, julgar conforme a lei que interpreta e executar”, disse.

Ele concluiu que queremos chegar a 2022 ultrapassando este momento difícil da Covid-19, a despeito da irresponsabilidade de um governo negacionista que de fato tem forte interesse em abalar as estruturas da democracia. “Estamos em um embate contra a pandemia, o obscurantismo e negacionismo do governo federal. Nossa responsabilidade é olhar para esse horizonte entendendo o papel da segurança pública. Partidarizam o Estado com lógicas particularistas, econômicas e políticas. A gente percebe que isso no fundo é um grande negócio, um controle do território para fracioná-lo, alugá-lo e vendê-lo.”

 

Assista ao programa completo no link abaixo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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