O presente não se auto-explica sem que o passado nos desvende sua gênese (…) Sem autocrítica, nos tornamos presas do eterno retorno dos mesmos medos e mecanismos que nos controlam desde a mais tenra idade, sem sequer dispor de qualquer defesa contra eles (Jessé Souza)

Há exatos 53 anos o Brasil testemunhava uma série de manifestações populares que ficaram conhecidas por Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Estima-se que entre março e junho de 1964 mais de 500 mil pessoas tenham participado desses atos e simbolizaram no período uma resposta da população contra a chamada “Ameaça Vermelha” do comunismo no país que rivalizava com os valores tradicionais da sociedade brasileira: a família tradicional, a religião cristã e a propriedade privada. Meio século depois e uma nova ruptura democrática em curso, é possível notar que mesmo em condições históricas distintas os temas relacionados à família, à religião e à liberdade retornam ao debate público, e a tradicional topografia política esquerda-direita volta a ser utilizada pelos atores políticos em disputa como estratégia para conquistar corações e mentes (e, sobretudo, votos) dos eleitores Brasil afora.

Em recente pesquisa divulgada pela Fundação Perseu Abramo sobre as Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo (1) realizada com eleitores das classes populares que não votaram no Partido dos Trabalhadores nas últimas duas eleições, um dos resultados apontados é de que o esforço individual, combinados com a família estruturada e a importância da presença da comunidade religiosa na vida dos entrevistados constituem um todo coerente na formação social desses indivíduos. Além disso, a pesquisa também mostrou que os entrevistados tinham forte interesse pelo que entendemos como empreendedorismo – apresentando, portanto, um cenário pouco confortável para grande parte da esquerda, a quem a “luta de classes” entre burgueses e proletários tem sido encarada como pressuposto epistêmico e político – que, somados a crítica à família como modelo de reprodução dos valores capitalistas e à religião como “ópio do povo”, agora se vê obrigada a reconhecer que o empregado da classe trabalhadora é religioso e está mais próximo de querer se tornar patrão  do que sonhar com uma revolução classista.

Entretanto, embora o diagnóstico da pesquisa tenha mostrado uma certa distância entre o eleitorado idealizado pela esquerda com o encontrado nas periferias, é possível observar que os dados oferecem novas perspectivas acerca das classes periféricas a partir dos termos da própria classe. Essas informações, se bem analisadas, tornam-se item de primeira ordem para aqueles que almejam estabelecer diálogo com a população periférica, especialmente para as próximas disputas eleitorais. No entanto, se mal interpretadas, correm o risco de serem ou cooptadas por uma terminologia maldosamente enviesada (“a periferia é de direita” (2) ) ou podem ser tacitamente ignorados por aqueles a quem os pressupostos são mais importantes do que a própria experiência. Cumpre ao campo da ciência crítica a tarefa de aprofundar a interpretação acerca dos dados coletados e, na medida do possível, propor ao campo progressista fragmentos de uma nova gramática política que inclua o universo de valores das populações periféricas dentro de um projeto político de resistência ao golpe pelas vias democráticas.

Esforço e empreendedorismo: a ideologia do mérito individual sob a perspectiva de classe

Um dos resultados mais destacados pela pesquisa foi a recorrência na fala dos entrevistados quanto ao esforço individual e ao mérito. Embora parte da “direita” esteja entusiasmada com a aparente descoberta da pesquisa de que a população periférica é aderente ao discurso do mérito, é função do pensamento crítico colocar areia na engrenagem da ideologia dominante e nos perguntar em quais condições sócio-históricas esses indivíduos estão validando as suas ações e experiências cognitivas ao “esforço”.

Antes de tudo é preciso dar nome aos bois: afinal, quem são eles? Eles são aqueles a quem Jessé Souza chamou por “batalhadores brasileiros”, herdeiros indiretos de uma sociedade escravocrata e, por esta razão mesma, dominados por uma elite econômica, cultural e política que nutre e é nutrida sistematicamente por uma ilusão na qual a classe trabalhadora é vista como custo e ameaça social ao invés de ser vislumbrada como a oportunidade de novos mercados de trabalho combinados a um crescimento econômico sólido, sustentável e justo.

Os moradores das periferias brasileiras sofrem, portanto, duplamente: tanto pela ausência das funções sociais do Estado como pela incapacidade de um mercado de trabalho formal para absorvê-los. Sem a presença social do Estado e de um mercado formal de qualidade, o batalhador se vê entregue à própria sorte, dependente exclusivamente do próprio vigor físico, psíquico e moral para garantir seu próprio sustento, levando-o a acreditar que todo sucesso ou fracasso que ele tiver durante a vida estará ligado antes de mais nada ao seu esforço próprio.

Neste sentido, a fala de uma das entrevistadas explicita o drama dos fracassos individuais provocados pelos obstáculos sociais internalizados pela ideologia do esforço:

Têm algumas pessoas que eu conheço que, por exemplo, queriam fazer faculdade, mas o máximo que conseguiram foi um curso técnico, e aí tipo elas se arrependem por não ter tentado, corrido atrás (Gênero feminino, 17 anos, branca).

“Correr atrás” é também um dos argumentos mais utilizados pelos batalhadores para justificar a ética profissional empreendedora dessa fração de classe. Alheios aos postos de trabalho qualificados (devido a carência de um capital cultural e social específicos, dentre outras), a população periférica recorre a toda e qualquer possibilidade de ganhar dinheiro, de preferência de forma honesta (3). É por este caminho que conseguimos compreender aquilo que a pesquisa da FPA designou por “empreendedorismo”, isto é, um modo de trabalho mais flexível e aparentemente mais autônomo do que o regime assalariado – e que, dentre as muitas expectativas geradas, cria a possibilidade de deixar patrimônio e herança para a família. Para além da discussão semântica, há de se levar em conta que a vontade dessas pessoas em ter um negócio próprio é consoante ao seu horizonte cultural de classe, no qual a ausência de postos de trabalho formais acabam por empurrar essas pessoas para a informalidade com vistas ao empreendedorismo – e embora o pensamento crítico se esforce em desvencilhar a experiência do “bico” do “microempreendimento”, deve-se reconhecer que a vitória de João Doria nas periferias tem algo a ver com o triunfo dessa nova gramática política empreendedora em disputa.

Família e religião: alicerces e soluções para os problemas individuais e coletivos

Outro resultado levantado pela pesquisa da FPA diz respeito a grande importância dada pelos entrevistados à família e às comunidades religiosas. Segundo relatório divulgado, a família é considerada “a base da vida”, traduzida por expressões superlativas como “é tudo, é o que faz valer a pena” e “é o porto seguro, o que mantém a gente na linha”. Embora pareça trivial afirmar que a família é a “base” do corpo social, é dever da perspectiva sociológica crítica interpretar qual importância desse grupo social no contexto periférico do capitalismo hodierno, em que as oportunidades de vida ficam sumariamente circunscritas a uma radical minoria da população. Essa desigualdade de oportunidades, embora evidente do ponto de vista material, tende a ser obscurecida no dia a dia por meio de uma violência simbólica que busca naturalizar as posições desiguais dos indivíduos dentro da estrutura social – o que equivale a dizer que o comportamento dos indivíduos dentro das classes é precedido por uma matriz de percepções, julgamentos e ações pré-reflexivas que, incorporados pelo processo de sociabilidade familiar, interiorizam e exteriorizam os valores específicos de uma situação de classe de modo a tornar sua posição social justificada, formando aquilo que Pierre Bourdieu designou por habitus de classe.

Neste contexto, a família torna-se mais do que apenas um grupo social e assume também a tarefa de transmitir, por meio dos afetos, os estímulos necessários para que os seus consigam, de um lado, suportar os desafios e humilhações de uma vida economicamente injusta e, por outro, emular uma dignidade que consiga, de alguma forma, responder à injustiça social. É essa dupla função que, quando bem-sucedida, nos faz ter a noção de família como um “porto seguro” que faz “tudo valer a pena”, porque é ela que nos traz pela primeira vez a noção de que somos dignos. Dignidade, neste sentido, é o estado moral pelo qual os indivíduos são capazes de reconhecer que a vida deles vale a pena independente de qualquer revés ou dificuldade.

No entanto, quando a experiência familiar é mal sucedida ou desestruturada, é na comunidade religiosa que a experiência de dignidade pode ser reinventada. Este é um caminhos possíveis para explicar o crescimento exponencial nas últimas décadas das igrejas evangélicas, sobretudo pentecostais, nas periferias brasileiras. Como afirma o sociólogo Gedeon Alencar, a inovação do pentecostalismo frente às outras religiosidades é o seu discurso “de pobres para pobres”(4), no qual a privação econômica é reificada em provação espiritual e a exclusão social é reinterpretada como inclusão no Reino de Deus. Essa leitura de classe, portanto, provoca nos pentecostais um “sentido” para a sua posição de classe, o que corrobora a não apenas uma dignificação dessas pessoas como traz consigo toda espécie de estímulos psicoafetivos que incentivam a ética racional de trabalho, a disciplina de vida ascética e o raciocínio prospectivo (a capacidade de projetar um futuro), ainda que em situações humilhantes e adversas.

Mas não é apenas no discurso que reside o sucesso do pentecostalismo: é na prática que ele ganha a sua real dimensão dignificadora. Como a pesquisa da FPA também destaca, a ausência de equipamentos de lazer nas periferias acabam por transformar as igrejas em uma das principais atrações do tempo livre, aproveitando o tempo ocioso dos membros para realização de trabalhos comunitários. Tal constatação fica latente, inclusive, na fala de um dos entrevistados pela pesquisa:

Tudo aquilo o que você me perguntou antes de família, lá na igreja é a verdadeira família: aquela te liga, que chega no domingo senta no chão almoça, janta, que fala dos problemas. Que se você estiver passando por um problema, uma situação difícil, ele vai, não meu irmão, a gente vai te ajudar. Vamos vê o que a gente faz,a gente vai te ajudar, se você estiver precisando de uma cesta básica todo mundo corre. Cada um traz um açúcar, um café, um exemplo, é isso, para mim família é isso é a religião (Gênero masculino, 41 anos, branco – faixa de renda 2).

Esforço, família e religião: o que essas palavras têm a dizer para a esquerda?

Como já afirmava Niklas Luhmann, cada indivíduo é um sistema psíquico determinado estruturalmente por sua própria história seletiva veiculada a partir da comunicação. Em outras palavras, significa dizer que através da linguagem todo indivíduo passa por dois níveis de experiência: uma na vida que vivemos e outra na vida que comunicamos. Na vida que comunicamos, acabamos por selecionar arbitrariamente algumas palavras e códigos incorporados na relação com o outro na tentativa de expressar socialmente nossa própria subjetividade.

Baseado neste raciocínio, o mais interessante dos resultados obtidos na última pesquisa da FPA, a meu ver, é observar quais termos as periferias paulistanas se comunicam – e, conforme a pesquisa bem demonstra, as palavras relacionadas ao esforço, a família e a igreja detém uma carga valorativa importante para essas pessoas. Essa é uma informação valiosa para qualquer campo político (e não por acaso a enorme repercussão na mídia que a pesquisa causou tanto em veículos de direita como de esquerda). Contudo, ela também serve de “alerta vermelho” para aqueles intelectuais de uma suposta “esquerda progressista” que se propõem a criticar o avanço de uma nova direita a partir de uma narrativa na qual uma “onda conservadora” invadiu sorrateiramente os lares das periferias das cidades, afogando as classes populares nas águas da alienação contaminadas pela meritocracia, o fundamentalismo neopentecostal e no modelo de família tradicional brasileira.

Ainda, o pobre é alienado por votar em um candidato que se autoafirma trabalhador bem-sucedido e que acredita no mérito individual? Ou, o pobre tem “voto de cabresto” ao votar no candidato indicado pelo pastor? Nada mais inócuo do que esse tipo de interpretações. Quando as esquerdas se colocam a fazer uma análise desse tipo elas não percebem que estão, na verdade, reiterando a velha lógica classista que produz uma espécie de classe média “esclarecida”, cuja tarefa seria a de salvar os “bons selvagens” da periferia das malvadezas do capitalismo e do obscurantismo religioso. Ao terem essa postura, contudo, esses “esclarecidos” acabam por evidenciar uma completa ignorância da estrutura de classes, sobretudo no que diz respeito àquilo que os moradores das periferias julgam em suas vidas como valioso e pertinente. Um exemplo dessa miopia ideológica surge quando a esquerda usa da estratégia de reclamar a constitucionalidade do Estado laico como forma de disputa de narrativas e votos da periferia: esse é o típico argumento de quem ignora o contexto social no qual as igrejas evangélicas estão inseridas e sua função social como principais provedoras da dignidade moral e social aos mais carentes, atribuindo sentido e noção de pertencimento aos sujeitos que compõem as camadas mais vulneráveis da população. Nada parece ser mais inverossímil, neste sentido, do que um discurso aberto contra essa instituição.

Talvez a atual conjuntura esteja obrigando a esquerda progressista a olhar mais uma vez pela lente analítica das classes e se perguntar até que ponto o seu discurso é verossímil com a realidade vivida no cotidiano da população periférica. Para além de toda análise que aponta que o campo progressista precisa melhorar sua comunicação na disputa de valores entre os mais pobres, é preciso reconhecer que antes de tentar politizar a moral das periferias faz-se necessário descobrir qual narrativa consegue ter lastro de verossimilhança consoante à vida prática dessas pessoas – e é por este caminho que entram em cena o esforço, a família e a religião.

No dia a dia da periferia, a escassez de oportunidades no mercado e a má qualidade dos serviços públicos reproduzem a desigualdade social histórica dessas populações, obrigando-as a “se virar”, “correr atrás”, “não deixar a peteca cair”. O esforço para essas pessoas é mais do que uma terminologia ideológica, é imperativo prático: afinal, “Deus ajuda quem cedo madruga”. E o que seria da vida dessas mulheres e homens de Deus sem o incentivo e a proteção comunitária, o “porto seguro”, da família e da igreja?  E como esperar que eles venham aderir a uma agenda política que não evidencia ou não relaciona esses aos aspectos pré-reflexivos que constituem a dignidade social dessas pessoas?

A principal riqueza dos dados da pesquisa FPA foi, portanto, conseguir mapear o universo de valores pré-reflexivos compartilhados por um grupo de eleitores que não estão, ou nunca foram, seduzidos pela propaganda progressista. Além da necessária autocrítica, cabe agora a esquerda produzir uma narrativa ao mesmo tempo crítica e verossímil, de modo a produzir sentido para aqueles a quem ela se propõe representar. É neste caminho que se esconde o tesouro da nova gramática política das classes populares. Vamos escavar?

Referências bibliográficas:

ALENCAR, Gedeon. Protestantismo Tupiniquim: hipóteses sobre à (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.
LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2015.
SOUZA, Jessé.  A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
______________. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

Sociólogo pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

[et_pb_Highlight_Foo_Notes_2 admin_label=”Notas de rodapé”] [et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2 text=”Os resultados da pesquisa estão disponíveis em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/Pesquisa-Periferia-FPA-040420172.pdf”] [/et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2][et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2 text=”http://www.huffpostbrasil.com/kim-kataguiri/pesquisa-feita-por-fundacao-do-pt-mostra-que-a-periferia-e-de-di/”] [/et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2][et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2 text=”Sobre a narrativa do “pobre honesto”, ver Jessé Souza em A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.”] [/et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2][et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2 text=”De acordo com os dados do Censo do IBGE, 91,7% dos pentecostais ganham até três salários mínimos, sendo as maiorias compostas por negros (57,4%) e por pessoas com ensino fundamental incompleto (42,3%).”] [/et_pb_Highlight_Foo_Notes_Item_2] [/et_pb_Highlight_Foo_Notes_2]

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