O PT e sua história*
Partido que nasceu da vontade popular e chegou ao poder liderando uma ampla aliança, a trajetória do PT rumo ao Estado oferece elementos para que se formulem interpretações demasiadamente tranqüilizadoras sobre a sua história, que se estendem para seu presente e futuro. Contudo, a história do partido é complexa, com impasses e contradições, com possíveis que não aconteceram e impossibilidades que se materializaram, difícil de ser enquadrada em esquemas simples.
Partido que nasceu da vontade popular e chegou ao poder liderando uma ampla aliança, a trajetória do PT rumo ao Estado oferece elementos para que se formulem interpretações demasiadamente tranqüilizadoras sobre a sua história, que se estendem para seu presente e futuro. Contudo, a história do partido é complexa, com impasses e contradições, com possíveis que não aconteceram e impossibilidades que se materializaram, difícil de ser enquadrada em esquemas simples.
Basta citar o momento de sua pior crise, em 2005, época do escândalo chamado “mensalão”. Os que defendiam que os êxitos eleitorais do PT indicavam uma estratégia política vitoriosa e inquestionável, como se a história do partido fosse uma evolução guiada pelo bom senso, tiveram que se deparar com uma crise que poderia ter simplesmente destruído o PT no momento em que tinha mais poder. Por outro lado, aqueles que viam no partido uma mera máquina eleitoral e burocrática, como se a sua história fosse apenas decadência e desilusão, assistiram o PT ser salvo por uma inesperada e espontânea mobilização de suas bases, que pareciam ter perdido importância, e manter o apoio do eleitorado no ano seguinte.
Essa complexidade ajuda a explicar o grande número de livros (ou capítulos de livros) que tem o PT, suas ações ou integrantes como tema. O Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo produziu um guia minucioso desse material, uma bibliografia comentada publicada na revista Perseu, do mesmo centro, ao longo de seis números, o último, em abril de 2011. Abrangendo o período que vai de 1980 até 2002, tem-se ali um valioso guia, com mais de 300 referências, nos quais o PT é apresentado entre extremos que vão da exaltação ao ódio, passando por elaborações críticas, feitas a partir de trabalho intelectual sistemático.
Depois de 2002 a publicação de livros sobre o partido não foi interrompida. Pelo contrário. Talvez o livro mais recente, e, sem dúvida, dos mais importantes já publicados, é História do PT, de Lincoln Secco, professor de História Contemporânea da USP, publicado pela Ateliê Editorial em meados de 2011. Nele o PT é interpretado sob o crivo do historiador profissional, que oferece uma visão de conjunto da trajetória do partido, em fases que foram denominadas: Formação (1978-1983), Oposição Social (1984-1989), Oposição Parlamentar (1990-2002) e Partido de Governo (2003-2010). O autor, ao mesmo tempo em que investiga e apresenta aspectos fundamentais, e, em alguns casos, pouco conhecidos da história do PT, problematiza ou mesmo questiona interpretações recorrentes sobre o partido.
O pioneirismo do PT como o primeiro “partido de massas criado realmente de baixo para cima e diferente de toda a esquerda anterior” é relativizado, ao se retomar a história do PCB, fundado por trabalhadores longe dos meios políticos tradicionais e que, em seu curto período de legalidade (1945-1947), foi, ou esteve perto de ser, um verdadeiro partido de massas. Segundo Lincoln Secco, em 1978, era mesmo “difícil separar radicalmente sindicalistas do PCB e do futuro PT.” Mas o sindicalismo vinculado ao PT era contra o imposto sindical e combatia radicalmente o atrelamento ao Estado, o que o distinguia dos comunistas. Havia também a recusa do PT ao modelo político soviético, o que aparecia tanto em documentos oficiais, como no dia-a-dia dos militantes, muitos dos quais, nos anos 1980, colocavam em seus carros, ao lado do popular adesivo “oPTei”, o adesivo do “Solidariedade”, nome do sindicato que combatia o regime da Polônia, na época, integrante do mundo soviético. O apoio a Cuba guardava muitos significados.
Ao acompanhar a formação do PT em diferentes partes do Brasil, Lincoln Secco encontrou uma forte diversidade, em consonância com diferentes realidades e lutas sociais existentes. Assim, enquanto em alguns locais o operariado industrial dava o tom ao partido, em outros, a força do PT vinha dos trabalhadores rurais, ou mesmo de setores médios. Esse é um dos temas mais instigantes da História do PT, e que leva à pergunta de como foi possível convergir forças de contextos tão diversos em um projeto, que, duramente construído, ao final, mostrou-se vitorioso, embora, para muitos petistas e simpatizantes, limitado demais para o tamanho dos sonhos que o colocou em movimento. Aqui a figura de Lula parece central, ao lado da revolta e utopia que saturavam o imaginário popular, e que o PT, mais do que causa, foi consequência.
Partido que defendia o socialismo e a democracia participativa o PT impôs derrotas e dificuldades ao próprio Lula, sua grande liderança, a demonstrar que sua democracia interna, embora problemática, nunca foi apenas fachada. Em 1993, quando o Brasil fez o plebiscito para escolher presidencialismo ou parlamentarismo, Lula, e outros dirigentes, defendiam esse último, mas os militantes decidiram que o apoio do PT seria ao primeiro. Em 2002 foi o próprio Lula que teve de enfrentar prévias, pois havia os que acreditavam que seria melhor ter outro candidato à presidente, pois sua vitória parecia impossível para muitos.
Passagem fundamental do livro é a que trata da formação e funcionamento dos núcleos de base do PT, os vínculos pessoais e comunitários que criavam, e seu progressivo esvaziamento e desvirtuamento em benefício de lideranças que tiravam sua força e, em muitos casos, legitimidade, dos mandatos parlamentares ou de cargos no executivo. Houve uma progressiva profissionalização das campanhas eleitorais, dentro de uma estrutura política como a brasileira, marcada pela influência do poder econômico e por meios de comunicação pouco comprometidos com a pluralidade. Todo esse processo provocou inúmeras debilidades na vida interna do PT e colaborou para a retração de sua militância e de sua própria cultura política. Também dificultava a militância o Brasil dos anos 1990, marcado pelo desemprego, precarização do trabalho e forte avanço ideológico do neoliberalismo. É nesse contexto que o autor insere e procura explicar o “mensalão”, que teria, assim, causas que recuam para além de 2002.
Embora predomine o tom crítico e, em algumas passagens, mesmo pessimista quanto ao presente não só do PT, mas da própria esquerda brasileira, o livro não deixou de registrar os êxitos e méritos do partido, bem como a dimensão ao mesmo tempo utópica e concreta da luta dos petistas. Traz o testemunho de quem viu o poder popular no Estádio de Vila Euclides, em uma São Bernardo sitiada pelo exército; a construção cotidiana e anônima da resistência popular no campo ou nas periferias do Brasil; os encontros partidários e comícios de massa; os petistas comprometidos com as lutas populares, e que perderam a vida por isso.
Compreender a história do PT é compreender um pouco melhor a história recente do Brasil.
Janes Jorge é professor de História, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
*um extrato deste artigo foi publicado na revista CartaCapital online em 3/9/2011