Ao tomar posse em janeiro de 2003, o governo Lula encontrou o Ministério da Cultura num estado de fragilidade institucional e isolamento político. As políticas de caráter privatista conduzidas ao longo dos oito anos de mandato, do governo precedente, produziram uma atrofia num mecanismo de governo que ainda não se consolidara frente ao conjunto do Estado. Sua criação ainda recente, durante o período da Nova República – além do trauma brutal do período Collor que quase o destruiu – e a ausência de um projeto consistente que orientasse sua ação terminou por rebaixá-lo a uma espécie de balcão onde os produtores culturais carimbavam autorizações para captar recursos, servindo-se das leis de Incentivos Fiscais. Seu aparato central, em Brasília, não contava – e não conta ainda – com uma musculatura institucional compatível com suas atribuições. Está aquém das estruturas de algumas das suas próprias vinculadas: a Biblioteca Nacional, o IPHAN e a FUNARTE. Resulta daí um quadro anômalo que repercute em indesejável descoordenação das ações, ainda não superado.

Mesmo para os mais críticos opositores do governo Lula, é inegável que o Ministério da Cultura, dirigido por Gilberto Gil, ao longo dos últimos três anos e meio ocupou um novo e importante espaço político. Não apenas no que diz respeito à introdução de novas políticas públicas ou à implementação de antigas, algumas delas abandonadas no período anterior, mas também, um relevante espaço simbólico no imaginário do país que se materializou em iniciativas como o Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, a retomada do Projeto Pixinguinha e a adoção do mecanismos dos Editais regionais pela FUNARTE, a implantação dos Pontos de Cultura, a instituição do Sistema Nacional de Museus, os programas Doc. TV e Revelando Brasis, na área do Áudio Visual, a Política Nacional de Patrimônio Imaterial no IPHAN, a Conferência Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura, todas elas presididas por uma lógica sintetizada em duas palavras-chave: descentralização e participação.

Para que o MinC possa corrigir as anomalias de sua estrutura burocrática, adquira a potência institucional adequada para gerir com coerência o conjunto das vinculadas; para construir mecanismos de planejamento estratégico e democrático das ações projetadas para curto médio e longo prazo é necessário um esforço político, no âmbito do governo e na sociedade, para consolida-lo como mecanismo de Estado – a exemplo do Ministério da Educação – que atue defendido institucionalmente dos contingenciamentos políticos e financeiros que têm marcado sua atuação, desde que foi criado. Para tanto, torna-se indispensável superar o desequilíbrio atual entre os recursos financeiros que lhe são destinados pelo Orçamento Geral da União, algo próximo a 0,7% e o que o MinC deve buscar de fontes extra-orçamentárias quando autoriza a captação de recursos para investimento em projetos culturais, por meio das Leis de Incentivo. Desse descompasso no acesso aos recursos resulta uma grave distorção – pulveriza a aplicação dos investimentos sem um fio condutor que lhe dê coerência e, assim a converta em Política Pública. Ao se debilitar o papel indutor da esfera pública para cumprir suas atribuições e por em prática o programa de governo escolhido pelos cidadãos, produz-se um esbulho da fonte primária de legitimidade de qualquer governo: o voto depositado na urna. Para alcançar esse objetivo é necessário investir no debate político a na aprovação da PEC 15O em tramitação na Câmara Federal que estabelece a dotação, progressiva, até 2% do OGU para custear as atividades do Ministério da Cultura.

Ao oferecermos, em 2002, para o debate do país o documento “A Imaginação a serviço do Brasil” que organizava o conjunto de propostas para as Políticas Públicas de Cultura do novo governo, defendemos a constituição do Sistema Nacional de Política Cultural (Pág. 18, A imaginação a serviço do Brasil) inspirado no Sistema Educacional ou no Sistema Único de Saúde. A experiência de três anos e meio de governo nos permitiu enriquecer e aprimorar a proposta. Definiu-se o SNC como um “sistema de articulação, gestão, informação e promoção de políticas públicas de cultura, pactuado entre os entes federados e a sociedade civil, com controle social”. E fixou-se como objetivo do SNC, com base no texto constitucional: “implementar uma política pública de cultura democrática e permanente, pactuada entre os entes da federação e a sociedade civil, de modo a estabelecer e efetivar o Plano Nacional de Cultura, promovendo o desenvolvimento com pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”. Se o primeiro mandato do Presidente Lula significou em todos os campos da vida nacional a recuperação do papel ativo do espaço público – na contramão das concepções neoliberais que o antecederam – o segundo mandato que postulamos se propõe a consolidar institucionalmente as conquistas democráticas e republicanas que alcançamos convertendo-as em novos direitos incorporados ao quotidiano dos cidadãos.

A consolidação do SNC trata de um significativo avanço na cultura política da sociedade e na gestão do estado brasileiro. Não apenas no sentido de democratizar – ampliando o acesso – e republicanizar – universalizando novos direitos culturais – as políticas públicas de cultura, mas também, no sentido superar as concepções anacrônicas sobre o lugar da cultura na construção do país, herança do passado escravocrata. A consolidação do SNC e sua capilarização, em todos os estados e municípios, significará que a sociedade e o estado brasileiro, tardiamente, se tornaram capazes, de dispensar como uma velharia inútil, as concepções que entendem cultura como adorno ou como privilégio para desfrute de uma elite cultivada. Significa o reconhecimento do êxito da experiência de participação popular estimulada durante o primeiro mandato do Presidente Lula, por meio das Conferências Nacionais. Significa a compreensão madura do papel da esfera pública – sem exclusão do mercado – no estímulo ao gênio criador do nosso povo, como matriz dos valores que desejamos difundir no presente e no futuro para modelar o impulso inventivo dos nossos filhos, sem perdermos os laços com as matrizes que nos definem como essa complexa civilização construída nos trópicos, que Sérgio Buarque de Holanda um dia definiu como Civilização Brasileira.

*Hamilton Pereira (Pedro Tierra)
é Presidente da Fundação Perseu Abramo e Secretário Executivo da Comissão de Cultura do Programa de Governo.

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