Joseph E. Stiglitz, Achal Prabhala, Felipe Carvalho

Tradução de Wilson Jr para artigo publicado no Project Syndicate.

A proposta da Organização Mundial do Comércio de renunciar aos direitos de propriedade intelectual sobre produtos farmacêuticos relacionados à pandemia ainda está definhando, devido à oposição de países ricos, cujas empresas estão colhendo lucros de monopólio. Felizmente, um projeto de lei de saúde pública no Brasil aponta o caminho para uma solução promissora de baixo para cima.

NOVA YORK - A Organização Mundial do Comércio deveria se reunir semana passada para considerar uma proposta que vem definhando no ano passado: uma renúncia temporária de propriedade intelectual farmacêutica durante a pandemia para permitir que os países pobres façam muitos dos mesmos testes, tratamentos, e vacinas que os países ricos tiveram durante a pandemia. Ainda assim, em um lembrete cruel da urgência do problema, a reunião da OMC foi adiada, devido ao surgimento da variante Omicron, detectada por cientistas na África do Sul (embora precisamente onde ela se originou ainda não esteja claro).

Há um consenso quase unânime de que vacinar o mundo inteiro é a única maneira de acabar com a pandemia. Quanto mais alta a taxa de vacinação, menos chances o vírus terá de adquirir mutações perigosas. Antes de se tornar rapidamente a variante global líder, o Delta foi detectado pela primeira vez na Índia, onde menos de 3% da população havia sido vacinada. Hoje, a África tem as taxas de vacinação mais baixas do mundo, com apenas 7% dos africanos tendo sido totalmente vacinados.

Há uma razão simples pela qual os países mais pobres não têm vacinas suficientes: não há doses suficientes para todos. As doações não resolveram o problema, porque nenhum país tem vacinas excedentes na casa dos bilhões que são necessários. A filantropia também ficou aquém. A COVID-19 Vaccine Global Access (COVAX) facility, um consórcio internacional que prometeu enviar dois bilhões de doses de vacinas a países pobres até o final de 2021, despachou apenas 25% desse montante.

O mundo não está fabricando tantas vacinas quanto poderia. Todas as empresas em todos os países que têm capacidade para produzir vacinas deveriam estar fazendo isso. Mesmo assim, depois de pagar a Moderna, Johnson & Johnson e Pfizer / BioNTech para desenvolver suas vacinas, os governos dos Estados Unidos e da Alemanha não estão dispostos a exigir que essas empresas compartilhem sua tecnologia com fabricantes em outros países.

A menos que esses governos mudem de posição, as empresas continuarão a explorar o lucrativo poder de monopólio concedido a elas pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) da OMC, criado quando a organização foi formada em 1995. De acordo com Diretor Geral da OMC Ngozi Okonjo-Iweala, a proposta de renúncia ao TRIPS está “ emperrada. Embora o número de países ricos que se opõem a ela tenha diminuído, ainda há oposição suficiente para impedir uma solução.

Mas enquanto a OMC vacila, o Brasil resolveu o assunto por conta própria, dando-nos o que temos de mais perto de uma saída desta crise. Em abril, o senador brasileiro Paulo Paim propôs um projeto de lei que permitiria ao país contornar as barreiras erguidas pelo TRIPS. A legislação aproveita o fato de que, como nos explicou o estudioso do direito comercial Frederick Abbott, “o artigo 73 do acordo TRIPS, que abrange a proteção dos interesses de segurança, já confere a cada governo autoridade para tomar qualquer medida que considere necessária para resolver a pandemia COVID-19, incluindo a suspensão dos direitos de propriedade intelectual.”

Se essa opção já está disponível, por que tantos países ainda aguardam que a OMC lhes conceda permissão formal? A resposta é que, desde a criação da OMC, os países ricos punem os países em desenvolvimento por fazerem o que têm o direito de fazer de acordo com as próprias regras da organização. Quando a África do Sul, Brasil, Índia e Tailândia procuraram anular os monopólios de medicamentos antirretrovirais inacessíveis durante a crise do HIV/AIDS, os Estados Unidos e a União Europeia os levaram a julgamento - às vezes literalmente. Essa história criou um efeito assustador.

A atual proposta de isenção, portanto, funcionaria como uma promessa dos grandes de não intimidar os outros durante o recreio. A resposta do Brasil representa outra opção: as vítimas de bullying podem assumir o controle de suas próprias circunstâncias. A nova legislação atraiu apoio de todo o espectro político, sendo aprovada pela Câmara e pelo Senado com grande maioria. Entre outras coisas, o projeto de lei buscava estabelecer uma cláusula permanente para anular monopólios de PI sobre tecnologias essenciais necessárias para lidar com emergências de saúde (começando com a pandemia COVID-19). E proporcionaria a transferência de know-how de vacinas - algo como um manual de instruções de fabricação - para fabricantes de produtos farmacêuticos alternativos.

Em setembro, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro sancionou o projeto de lei, mas não antes de usar seu poder de veto para remover ou revisar cláusulas cruciais, incluindo aquelas que especificam quando e como a lei entraria em vigor e aquelas que exigem que as empresas farmacêuticas compartilhem seus conhecimentos. como, dados e material biológico. Um mês depois, o Senado brasileiro recomendou acusar Bolsonaro de “crimes contra a humanidade” por causar perdas desnecessárias de vidas na pandemia. Mas as acusações não incluíam a destruição do projeto de lei de PI - um ato que poderia levar a ainda mais perdas desnecessárias de vidas.

A lei voltou ao Senado, o que pode anular os vetos de Bolsonaro. Mas o Senado perdeu seu prazo para retificar a legislação e, em seguida, falhou em definir outro. Agora deve agir rapidamente para eliminar a incerteza criada pelos cortes do Bolsonaro, bem como resistir às resistências de associações da indústria farmacêutica dos Estados Unidos e da Europa, cujos líderes tentaram matar a lei, ameaçando até cortar o fornecimento de vacinas se o Brasil cumprisse.

Os legisladores brasileiros devem ficar de olho no prêmio. Eles elaboraram uma lei que desmantelaria os monopólios farmacêuticos que estão bloqueando uma solução para a pandemia. Há uma lição aqui para todos - tanto para aqueles que pedem uma renúncia à OMC quanto para aqueles que se opõem a ela. Assim como vai o Brasil, outros vão. Quanto aos países mais ricos do mundo e às instituições em dívida com eles, resta saber quanto de sua credibilidade eles estão dispostos a sacrificar a serviço de permitir que as empresas farmacêuticas desfrutem de seus lucros de monopólio por um pouco mais de tempo.

Estamos lutando uma guerra em duas frentes: uma contra a COVID-19, a outra contra as empresas farmacêuticas cujos lucros dependem de preços altos e produção restrita. Mais cedo ou mais tarde, perceberemos, como o Brasil já percebeu, que não podemos vencer na primeira frente sem vencer na segunda.

 

Joseph E. Stiglitz: Ganhador do Prêmio Nobel de Economia e Professor da Universidade de Columbia, é ex-economista-chefe do Banco Mundial (1997-2000), presidente do Conselho de Consultores Econômicos do Presidente dos Estados Unidos e copresidente da Comissão de Alto Nível sobre Preços de Carbono. Ele é membro da Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional das Companhias e foi o autor principal da Avaliação Climática do IPCC de 1995.

Achal Prabhala: Ex-bolsista da Fundação Shuttleworth, é coordenador do projeto AccessIBSA, que faz campanha pelo acesso a medicamentos na Índia, Brasil e África do Sul.

Felipe Carvalho: Coordenador da Campanha de Acesso dos Médicos Sem Fronteiras no Brasil e na América Latina.