Kathi Weeks em entrevista a Álvaro Briales, no El Salto Diario | Tradução: Gabriela Leite, publicada originalmente em Outras Palavras.

Kathi Weeks é autora de El problema del trabajo [2011, veja mais no site da editora espanhola]. Em sua obra, Weeks põe em jogo uma caixa de ferramentas que recorre a distintas tradições dos feminismos aos marxismos, desde a teoria literária às perspectivas das lutas políticas, úteis para uma concepção crítica do trabalho atualizada para o século XXI. Na entrevista a seguir, aborda temas como os efeitos da pandemia na ética do trabalho, os sujeitos e movimentos políticos que no presente poderiam encarnar a recusa ao trabalho, a potência das demandas pela Renda Básica Universal e de redução da jornada de trabalho, os paradoxos e debates sobre o desenvolvimento tecnológico e a automatização e a crítica ao que denomina de sistema de trabalho-e-família. Kathi Weeks é professora de gênero, sexualidade e estudos feministas na Universidade de Duke (EUA).

Na pandemia, temos acompanhado uma intensa polarização. Por um lado, há uma forte ética do trabalho como algo “essencial” em comparação com outras esferas da vida e, por outro, uma consciência da falta de sentido de boa parte dos empregos atuais. Como isso se deu no caso dos Estados Unidos, um país com uma ética de trabalho tão forte?

Sim, completamente. Se por um lado os valores dominantes valorizam o trabalho como algo central naquilo que significa ser um indivíduo de êxito e um membro digno da sociedade, durante a pandemia uma clara maioria de pessoas nos EUA insistiu que o trabalho não era algo pelo qual valia a pena morrer ou arriscar a saúde dos demais. Mesmo que isso possa significar muitas outras coisas, a interrupção da economia deveria ser reconhecida como uma expressão da recusa a essa maneira de entender e valorizar o trabalho gerador de renda. Ele também foi desmistificado de outra maneira, com o reconhecimento de que apenas alguns empregos são suficientemente úteis para serem considerados “essenciais” para a sociedade, e esses não são geralmente aqueles que têm o maior status ou salário.

Foi assim, por exemplo, que finalmente se reconheceu que os trabalhadores e trabalhadoras do comércio de alimentos realizavam um trabalho importante e socialmente útil, embora, ao mesmo tempo, fossem obrigados a se submeterem a empregos perigosos e mal remunerados. Por outro lado, ficava cada vez mais evidente que boa parte dos demais empregos, talvez a maioria, eram pouco necessários, senão totalmente inúteis, ou seja, sem sentido além de gerar benefícios e salários. E se a instituição familiar é a forma típica ou normativa de nos confinarmos aos lares, a pandemia também nos obrigou a depender ainda mais intensamente do trabalho doméstico não assalariado que se espera que seja reproduzido no dia a dia e geração após geração, apesar de ter muito pouco apoio social ou tempo descontado do trabalho assalariado. 

Você acha que a pandemia, junto a outras circunstâncias, modificou os imaginários do trabalho e, portanto, as possibilidades de demandas como a Renda Básica Universal que você analisa em seu livro?

A crise revelou com muito mais clareza as enormes exclusões e disfunções — muito mundanas e cotidianas — produzidas pelo sistema de trabalho-e-família, em parte porque a mídia foi forçada a relatar muitas das incríveis tensões que ocorriam nas casas. A questão da Renda Básica Universal recebeu um grande impulso em um período em que ficou evidente que o sistema salarial e a família, como dois dos mecanismos básicos de distribuição de renda, já não são suficientes em tempos “normais” e têm menos ainda a capacidade de garantir segurança e sustento em tempos de crise. 

Não sei quanto tempo vai durar o ímpeto desses atos de rejeição e desmistificação de empregos “produtivos” inúteis e trabalho reprodutivo não remunerado, mas certamente algo pode ser construído a partir disso, para mostrar por que precisamos de uma forma mais racional, completa e confiável de recompensar todas as formas de trabalho e distribuir renda para todas as pessoas. 

Na Espanha e na Inglaterra, nos últimos tempos, alguns setores estão tentando reabrir o debate sobre a redução da jornada de trabalho para 32 ou 30 horas. Algumas das propostas se baseiam tanto na compatibilidade com um certo produtivismo (“trabalhar menos nos torna mais produtivos”) e no familiarismo (“trabalhar menos para ficar mais tempo com a família”), justificativas criticadas em seu livro. Em suma, que requisitos básicos, do seu ponto de vista, essa demanda deve ter? 

[…] Por um lado, acho que é claro que é preciso pensar em termos de reformas que sejam oportunas e inteligíveis, o que implica apelar para termos que nos são familiares e que provavelmente têm algum tipo de significado imediato para as pessoas. Nessa lógica, defender a exigência de redução da jornada de trabalho evocando a eficiência no ambiente de trabalho ou em nome dos valores familiares pode ser uma forma viável de garantir níveis mais elevados de apoio. Por outro lado, existem limitações profundas para esse tipo de pragmatismo político de curto prazo. 

Como quais?

Em primeiro lugar, não estou convencida de que funciona moderar suas próprias demandas para inspirar um apoio passivo, mas sim que o ativismo apaixonado e a militância são necessários para levar adiante um grande projeto de reforma. Em segundo lugar, há muito a ser dito sobre quem pode ser excluído por causa dessas justificativas e suas possíveis consequências não intencionais. É aqui que considero o argumento “mais tempo para a família” particularmente fraco. Falamos como se todos tivessem uma “família”, mas para muitos de nós esse é um mito perigoso, pois não a temos ou não queremos ter, ou que não deveríamos ter ou querer dedicar esse tempo a ela. Eu não gostaria que se perpetuasse a mitologia da família que ignora a violência que ocorre dentro das famílias e que torna invisível o trabalho economicamente fundamental que é feito dentro delas com pouco apoio, sob o disfarce do amor romântico. Apresentar a exigência de redução da jornada de trabalho em termos de tempo de vida, como única justificativa possível, parece-me uma formulação mais aberta, inclusiva e menos prescritiva. 

Por fim, diria que uma demanda política radical que se preze também exige um horizonte, algo além, algo mais do que as concessões possíveis que somos capazes de conquistar no curto prazo. Para que a campanha pela redução da jornada de trabalho também seja um processo de aprendizagem, um laboratório, para o cultivo de outros desejos e demandas além. Como negociar a relação entre as considerações práticas de curto prazo e o horizonte radical de longo prazo é uma questão de estratégia e tática que está sempre em debate e que aparecerá de maneiras diferentes de acordo com cada lugar e época. 

Se tomarmos como referências históricas para a rejeição do trabalho as formas de sindicalismo revolucionário do final do século XIX e início do século XX, ou o caso do operaísmo e feminismo italiano dos anos 1970, talvez no século XXI seja mais difícil ver um assunto tão delimitado que levante essas demandas. Nesse sentido, quais movimentos políticos você acha que incorporam, ou poderiam incorporar, a crítica ao trabalho assalariado hoje? 

Acho que você tem toda a razão em não pensar hoje nas lutas contra ou para além do trabalho em termos de um sujeito político único ou delimitado. Pelo contrário, tendo a pensar que a maioria dos movimentos sociais e campanhas ativistas são influenciados e contribuem para as críticas ao trabalho assalariado e não assalariado. E se não forem, devem ser. Uma vez que o sistema de produção e reprodução do trabalho-e-família nos afeta em quase todos os aspectos de nossas vidas, parece, portanto, relevante para tantas lutas. 

Eu penso assim: na medida em que o alvo de nossa crítica política e de nosso ativismo é o capitalismo racial, ocupacional, colonial e heteropatriarcal, então o trabalho — incluindo o trabalho doméstico e comunitário não assalariado, trabalho reprodutivo e de cuidado — é a via pela qual a maioria de nós mergulha e se conecta com esse sistema (e estar desempregado em uma sociedade que distribui meios de subsistência principalmente por meio do trabalho assalariado não o isenta disso). Se isso for verdade, então o trabalho deve ser algo que esses movimentos deveriam abordar — e frequentemente o fazem. 

Em que casos você observa isso? 

Por exemplo, o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos aborda os ataques do capitalismo racial, desde a divisão racial do trabalho até a lacuna racial na riqueza e a falta de apoio para suas casas e comunidades. O abolicionismo penal desafia o sistema industrial carcerário como uma forma de tratar, prender e silenciar populações supérfluas que o sistema capitalista de trabalho-e-família não consegue integrar. O movimento da greve feminista internacional se concentra em rejeitar e tornar visível a dependência do capital da exploração do trabalho feminizado e não-assalariado que o abastece de trabalhadores e consumidores no dia a dia e geração após geração. 

O problema do trabalho é que não funciona e falha com a maioria de nós: porque não há empregos suficientes, porque paga tão pouco que você não consegue se sustentar, ou porque você trabalha tantas horas que não tem tempo para viver. Os sindicatos são um espaço importante na política pró e contra o trabalho, mas outros tipos de organização, movimento e ativismo também estão assumindo os problemas relacionados ao trabalho, desde que estes não se limitem a uma classe social ou a determinados setores da economia. 

Nos discursos sobre a libertação do trabalho há uma tensão histórica que, entre outros elementos, depende de como concebemos a possibilidade de uma apropriação (ou não) da mudança tecnológica no sentido emancipatório, de tomar “as forças produtivas” no sentido clássico. No entanto, em seu livro, você não aborda a questão tecnológica em profundidade. Como você considera essa relação entre a libertação do trabalho e a dimensão tecnológica hoje? 

Suspeito da forma como a tecnologia figura em alguns debates recentes. Porque acho que temos uma tendência notavelmente teimosa de pensar na tecnologia como algo em si, como se nem sempre fosse um produto e instrumento das relações sociais, como ferramentas humanas que podem assumir uma miríade de formas e ter usos muito diferentes. Portanto, quer celebremos a tecnologia por nos libertar do trabalho ou a acusemos de roubar nossos empregos, há uma sensação de que “ela” tinha o controle, e não o Estado e o capital. Enquanto estivermos mantendo a atenção nas questões do desenvolvimento tecnológico, e não nas questões mais importantes — como a qualidade e a quantidade do trabalho assalariado e a distribuição da renda; como a organização, distribuição e valor do trabalho assistencial não assalariado; como quem está tomando as decisões de investimento e com que propósito — acho que corremos o risco de ficarmos distraídos ou desorientados. 

Isso também acontece em alguns debates sobre a Renda Básica Universal? 

Sim. Alguns argumentam que um aumento dramático no desemprego em tecnologia na era digital é um dos motivos pelos quais devemos manter uma renda básica. Outros respondem a isso argumentando que os trabalhadores serão deslocados em alguns setores da economia, mas outros empregos irão absorver muitos deles. Só não acho que nosso apoio à demanda de renda básica deva depender desse debate. 

Existem problemas muito mais fundamentais e urgentes nos quais devemos nos concentrar no que diz respeito ao trabalho assalariado como um sistema de alocação de renda: disparidades de gênero e raça nos salários e no desemprego; a enorme quantidade de trabalho reprodutivo e de cuidado não remunerado em famílias e comunidades realizado desproporcionalmente por mulheres, sem o qual não haveria economia de trabalho assalariado; as taxas aterrorizantes de lesões, doenças e mortes no local de trabalho, incluindo o enorme tributo que o estresse crônico de empregos mal remunerados exerce sobre a mente e o corpo da força de trabalho; sem falar na margem permanente de desemprego que não é considerada um fracasso, mas um sinal da saúde das economias capitalistas. 

Se essas questões são tão importantes quanto no contexto do debate sobre a renda básica, o foco na tecnologia ou, neste caso, no desemprego tecnológico, parece-me uma forma de contornar ou evitar abordar algumas das falhas mais básicas e de grande alcance do sistema salarial. 

O debate atual sobre os rumos do desenvolvimento tecnológico está se tornando fortemente polarizado devido às condições da emergência climática e da crise energética. Por um lado, há uma oposição entre alguns marxistas e defensores do Green New Deal que tendem a apoiar fortes investimentos em tecnologias verdes e, por outro lado, propostas como a do decrescimento ou do ecofeminismo que defendem uma forte redução de infraestruturas tecnológicas e de complexidade dos sistemas sociais atuais. Que implicações você acha que esses debates podem ter para atualizar ou qualificar os termos clássicos da libertação do trabalho? 

Acho que está muito claro que pedir uma redução no trabalho assalariado é consistente tanto com o decrescimento quanto com o crescimento verde, ambas abordagens que eu de alguma forma apoiaria. Há dois pontos que gostaria de acrescentar sobre como as políticas de mudança climática e destruição ambiental se relacionam com as políticas contra e além do trabalho que defendo.

O primeiro ponto é que acho importante reconhecer que o “produtivismo” — isto é, a celebração do trabalho duro individual, da produtividade e da autodisciplina que está no cerne da ética moderna do trabalho — está intimamente ligado ao consumismo em sociedades do capitalismo avançado. Supõe-se que os bens e serviços de consumo são nossa recompensa, a gratificação adiada para o final do trabalho, por todo o sacrifício digno de nossa força de trabalho. A ética do trabalho e o consumismo são as duas faces da mesma moeda, a engrenagem que move o sistema econômico. Ao questionar uma dessas faces, também desafiamos a outra.

Como funciona esse desafio?

Mais que imaginar que menos tempo de trabalho nos dará apenas mais tempo para fazer compras, acredito que nos dará mais tempo para cultivar prazeres e passatempos mais satisfatórios e sustentáveis. Nesse sentido, a redução da jornada de trabalho e a Renda Básica Universal poderiam ajudar a sustentar uma redução do trabalho que teria um duplo benefício na perspectiva de uma política de decrescimento. 

O segundo ponto que quero acrescentar é um aviso sobre duas armadilhas em que muitas vezes parecemos cair quando imaginamos o futuro: ou o imaginamos como algo muito próximo do modelo atual (ou em um progresso linear em relação ao que temos agora) ou confiamos em um padrão de tempo passado como um retorno a algum período anterior da história. Infelizmente, ambas as formas parecem inadequadas em relação a como a mudança social ocorre, como a história se move. Aqui quero apenas destacar que não acho que devamos escolher entre robôs ou chácaras; entre a produção industrial hipertecnológica e a produção artesanal, em pequena escala. Eu simplesmente quero que nos lembremos e tenhamos plena consciência da utilidade e das limitações de nossas visões do futuro, limitações que não são nossa culpa, mas a consequência dos horizontes estreitos de qualquer perspectiva situada. 

Na mesma linha, e em relação às demandas utópicas que você trabalha em seu livro, após ler sobre propostas de “automação total”, como aquelas defendidas por setores influentes da esquerda britânica, por exemplo, vejo que surge o problema de um utopismo talvez “perigoso”. Por exemplo, Aaron Bastani argumenta em Fully Automated Luxury Communism [Comunismo de Luxo totalmente Automatizado, em tradução literal, sem edição no Brasil] que uma crise tão crucial como a do lítio, fósforo ou níquel poderia ser resolvida pela mineração de asteróides, que por sua vez dependeria de espaçonaves movidas a oxigênio. Desse modo, como você acha que o materialismo “científico” do pensamento ambiental atual condiciona e influencia a forma que nossas utopias podem assumir de nos libertarmos do trabalho assalariado? 

O que há na exploração espacial que domina a imaginação de algumas pessoas? Como pesquisadora de estudos de gênero, sinto a necessidade de especificar que essas pessoas não são geralmente mulheres. Devo dizer que a exploração do espaço não me diz nada. Concordo que a evocação da mineração de asteróides e espaçonave soa mais como um exemplo do deus ex machina típico do gênero narrativo de progresso tecno-utópico: uma solução milagrosa para um problema persistente que deveria dar um final feliz à história. Dito isso, eu não descartaria os usos potenciais da “automação” para reduzir as cargas de trabalho de humanos e animais. Mas certamente a tecnologia — poderíamos nos referir a isso como tecnologia “apropriada” ou “responsável” — deve ser concebida, desenvolvida e julgada como parte de um ecossistema natural e social maior, não como se fosse de alguma forma um fenômeno antinatural ou não social.

Tampouco quero simplesmente negar a imprevisibilidade do futuro da criatividade humana ou as novas ideias que poderíamos ter para me distanciar ou refutar os defensores do status quo que reduzem essa criatividade à invenção heróica de um empresário que não consegue construir nada além de mais uma ratoeira lucrativa. Mas minha reação mais imediata à sua pergunta é que talvez devêssemos abordar o luxo comunista a partir de um registro diferente: o luxo da ociosidade, da amizade, do ar puro e da comunhão com a natureza, como coisas que poderíamos desfrutar se dispuséssemos de mais tempo fora do trabalho. Parece-me que a questão não é realmente a nossa capacidade de produzir mais ou o mesmo nível de riqueza social e econômica, mas como podemos nos apropriar dela e transformá-la na verdadeira riqueza da igualdade e da liberdade.