Entrevista a Isaías Dalle
O Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil traz, entre suas propostas emergenciais, uma de importância óbvia: garantir alimentação de qualidade para as crianças em idade escolar, na forma de merenda – ou cesta básica entregue em casa enquanto durar a pandemia. Ser óbvia, no entanto, não garante que os governos municipais, estaduais ou o federal estejam dando a devida importância ao tema.
Nesta entrevista, Artur Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo, conta como um projeto colocado em prática na cidade de São Paulo durante a prefeitura de Fernando Haddad (2013-2016) garantiu merenda saudável para as crianças da rede municipal e ainda gerou emprego e renda para agricultores familiares que produzem alimentos no município. A prefeitura estimulou a produção – crédito, assistência técnica – e ainda garantia a compra de parte dessa produção justamente para o fornecimento de merenda.
Artur foi secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, pasta responsável por este e outros programas de alimentação e emprego na capital paulista. Integrante do NAPP (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas) Trabalho e ex-presidente nacional da CUT, Artur destaca que a economia solidária, sobre a qual se assenta essa proposta de merenda saudável, pode ser alternativa central, com peso e escala comercial, para compor um novo modelo de desenvolvimento, sem prejuízo das grandes empresas interessadas no crescimento do país.
Acompanhe:
O Artur vai falar com a gente sobre uma proposta emergencial que se refere à alimentação dos estudantes, tanto aqueles que ainda não voltaram às aulas e aqueles que neste momento, fevereiro e março, estão retornando. A imprensa já nos conta que muitos estão encontrando as escolas sem merenda, uma situação lastimável que havia sido superada em anos anteriores. Existe uma alternativa que foi aplicada, entre outras experiências na administração petista em São Paulo, de fazer um trabalho junto aos agricultores familiares que atuam no território, estimular a produção e garantir que a prefeitura adquira essa produção para justamente fornecer alimentos para os alunos das escolas públicas. Conte como essa experiência pode ajudar a superar esse problema muito grave que é a desnutrição e a falta de alimentação para as crianças.
Eu acho que a primeira constatação é justamente essa: como é que pode você morar no país que é o segundo, e às vezes o primeiro, em produção de alimentos, e nós temos crianças, pessoas, passando fome. Uma situação que beira o absurdo, um risco permanente de desabastecimento, seja pela falta de alimento, seja pelo encarecimento de alguns desses produtos básicos da alimentação. Nós assistimos nos últimos meses a quantidade enorme de alimentos com índices acima da inflação. A primeira constatação é esta, de que nós não podemos permitir que o país que tem esse potencial tenha crianças sem alimentação. O grupo fez então a proposta, que é, primeiro, cumprir a lei: existe uma legislação, feita Inclusive durante os governos Lula e Dilma, de garantia de que trinta por cento da alimentação escolar seja fornecida pela agricultura familiar. E na cidade de São Paulo uma coisa que fizemos foi justamente a introdução na legislação para garantir orgânicos na merenda escolar. Não é falar em bolacha com água ou aquela substância que todos sabemos aqui que chegou a ser distribuída nas escolas de São Paulo.
Ração humana.
Ração humana, exatamente. Naquela época, nós trabalhamos com a perspectiva primeiro de garantia de compra de no mínimo trinta por cento da alimentação da agricultura familiar. Por exemplo, garantia de compra de arroz orgânico para as crianças na cidade de São Paulo. Parece pouco, mas se você fala de um milhão de crianças, nós estamos falando de dois milhões de refeições por dia. E já está mais que comprovado que investir na agricultura familiar, investir em produtos orgânicos, na produção agrícola como direito à alimentação saudável, traz sim, renda e emprego. Infelizmente o governo só enxerga o agronegócio. Fazem propagandas bonitas na televisão, mas não colocam comida na mesa do trabalhador nem na mesa das crianças.
O agro é pop.
O agro é pop e as crianças estão morrendo de câncer, sofrendo de obesidade por conta da utilização de comidas com agrotóxico, dos venenos. O mundo inteiro está discutindo que planeta, que modelo de desenvolvimento nós queremos ter no futuro. ‘Ah, mas apareceu esse vírus...’ É coisa nossa, o vírus não aparece do nada, você joga milhões e milhões de toneladas na atmosfera todos os anos, e acha que isso não vai ter nenhuma consequência? Nós temos que mudar significativamente, profundamente, transformar o modelo de produção e de consumo que nós temos no país. Isto está fadado a não dar certo, como já não está dando, como o capitalismo já não deu, como a concentração de capital não deu, como a financeirização da economia não deu. Deu pra 1% da população, mas uma hora os 99% vão dizer: ‘Pode parar’.
Espero que sim.
Parece filme de ficção. A gente está quase vivendo um limiar. As pessoas estão morrendo e daqui a pouco você está vendo urgente se estapear por conta de vacina. Ou a gente reconstrói com um mínimo de civilidade, cuidar dos Objetivos do Milênio, ou então vamos pensar em cuidar do planeta quando ele não existir mais.
São Paulo que é uma selva de pedra, uma das cidades mais poluídas do mundo. Mas ela tem nas franjas do seu mapa, algumas regiões de mata ainda, como Engenheiro Marsilac, por exemplo, e lá nessas franjas existem pequenas propriedades, lavouras, e foi lá que a prefeitura foi buscar esses agricultores familiares, deu apoio para que eles produzissem e ainda garantiu que uma parte da produção já estaria vendida para a própria prefeitura e para as crianças nas escolas. Isso gera emprego também. É uma saída que apresenta dois resultados positivos, não é Artur?
São esses dois os principais, mas tem um terceiro. Ele trabalha com a contenção da especulação imobiliária. Muita gente não sabe que existe agricultura familiar em São Paulo. O grande problema é que na disputa orçamentária precisamos ter muitos recursos para garantir que esse desenvolvimento local possa segurar a especulação imobiliária. Tem que jogar peso, fazer investimento. Se não a pessoa é compelida a ir embora, vai para a cidade tentar arrumar emprego – também não vai achar – então ela vende lá a propriedade, aí o outro do lado também vende, o outro também e aí se constrói um prédio e já era.
Eu diria que a grande sacada também é em relação às pequenas empresas e mesmo às cooperativas de trabalhadores rurais, cooperativas de economia solidária. A grande questão numa cidade como São Paulo, ou numa cidade de médio para grande porte, o poder de compra da prefeitura é um negócio assustador do ponto de vista de política de desenvolvimento local. Nós fizemos uma legislação própria em que estava sendo mais favorecida a produção local nas subprefeituras onde você tinha o IDH menor. Havia pessoas que olham aquilo e diziam ‘que absurdo, vocês estão usando o Estado para poder ajudar os microprodutores locais’. Ora, na França tem um negócio chamado Carrefour que não pode botar um grande supermercado no centro de Paris. E por que não? Pra proteger aqueles locais pitorescos, em que as pessoas vão comer, tomar café, o pequeno comércio.
Você falava em produção local, com a prefeitura municipal garantindo a compra dessa produção. Imaginemos isso em escala nacional: várias prefeituras pelo Brasil inteiro fazendo isso, vários governos estaduais fazendo o mesmo, sob a coordenação de um governo federal simpático a essa ideia, também estimulando esse tipo de arranjo produtivo local. Isso me lembra entrevista do economista Guilherme Mello, que dizia que o PT deposita muita esperança, muita expectativa nesse projeto de arranjos produtivos locais a partir das cidades e estados para garantir uma nova forma de trabalho, e isso gerará espaço para o trabalho da economia solidária. Fale um pouco sobre isso.
O Plano tem muita proposta boa, especialmente aquelas relacionadas com digamos a macroeconomia e o necessário financiamento do estado brasileiro. Além disso, investimento em ciência, tecnologia e indústria é absolutamente essencial para quem quer ter um país disputando do ponto de vista da economia global.
Mas há quem acredite, como eu, como o Paul Singer e o próprio Guilherme Mello, que há também todo um outro caminho a ser explorado que é o da economia solidária como alternativa real. Não é essa invenção liberal chamada empreendedorismo no sentido que eles querem dar. Estamos falando de outra coisa, estamos falando de economia solidária: transformar o que é a produção local de uma ou mais pessoas num consórcio onde elas possam ter mais força e mais poder de disputar inclusive com médias e grandes empresas. Porque se não fizer isso, as grandes vão comprar as pequenas, como já estão fazendo. Primeiro, claro, tem de aprimorar técnica e profissionalmente, ter garantias de formação. Para isso nós temos que ter política pública de fomento à organização por meio de cooperativas, garantindo esses conceitos de gestão coletiva, solidária. Eu acredito nisso, mas tem de ser uma política de baixo para cima, com apoio dos municípios, dos estados e do governo federal. Quando a gente fala de apoio nós estamos falando de dinheiro, de recursos. Estamos falando de dinheiro do BNDES, de usar o S de social do BNDES, usar mecanismos que garantam a um pequeno proprietário de um pequeno negócio, que não tem como chegar no banco e pedir dinheiro emprestado, acesso a crédito. Fortalecer o trabalho local, o desenvolvimento local através de instrumentos que possam gerar emprego e renda. Você pode e deve ter indústria e tecnologia, mas sem abrir mão de uma economia solidária. Não como exemplo lateral, mas com centralidade do modelo de desenvolvimento.
Não é um arremedo, um puxadinho, mas um projeto estratégico que pode inclusive ter escala. Obrigado Artur pela entrevista. Quer acrescentar algo?
Nós estamos realizando um esforço muito grande de não ficar preso só ao passado, a um legado – mas o legado tem que ser explicitado por que todos os dias, porque se está tentando destruí-lo da pior forma, mentindo. No entanto, não é só de legado que as pessoas vão viver. ‘Eu quero saber que você vai fazer para resolver minha vida’. Então eu acho que tem uma questão que é fundamental, que é o legado para poder resgatar a história e colocar os pingos nos ‘is’, porque nós fomos duramente atacados desde a época da ação penal 470, eu acho que isso está claro, o objetivo era destruir o partido. Mas não pode ficar só no legado, temos que pensar para frente, pensar em saídas pensar, em propostas, e nessa hora também não dá para ficar na defensiva. E por quê? Porque na defensiva a gente já viu que não vai... Não vai mudar o modelo de desenvolvimento e de produção, não vai mudar a estrutura tributária, não vai mudar a estrutura de poder, não vai mudar a estrutura de classe. Devemos construir um novo modelo e garantir que as pessoas acreditem nesta nova proposta e votem. E que a gente tenha maioria, porque também não adianta ganhar eleição se não tem maioria no Congresso.
Você acredita que esse pode ser um documento, uma plataforma, que os sindicalistas podem usar para discutir o futuro do país, do trabalho, do emprego, com suas bases?
Eu acho que sim, eu espero que inclusive a gente possa aperfeiçoá-lo através desse debate, levando essa discussão para a porta das empresas, mas principalmente aos locais de moradia. O debate vai aprimorando e vai trazer novas propostas.