Por Mariana Mazzucato, Henry Lishi Li e Els Torreele para Project Syndicate. Tradução de Artur Araújo.
Apesar de toda a esperança desencadeada pelos anúncios de eficácia demonstrada por várias vacinas candidatas contra Covid-19, ainda há um longo caminho a percorrer para cumprir a promessa de uma "vacina popular" universal e disponível gratuitamente. Na situação atual, os interesses nacionais e privados estão se sobrepondo ao princípio da justiça sanitária
Anúncios recentes de eficácia demonstrada em ensaios de vacinas contra a Covid-19 trouxeram esperança de que um retorno à normalidade está à vista. Os dados preliminares para as novas vacinas de mRNA da Pfizer / BioNTech e da Moderna são altamente encorajadores, sugerindo que sua aprovação para uso de emergência está próxima. E as notícias mais recentes sobre a eficácia (embora com uma taxa ligeiramente inferior) de uma vacina da AstraZeneca e da Universidade de Oxford alimentaram o otimismo de que ainda mais descobertas estão a caminho.
Em tese, a chegada de uma vacina segura e eficaz representaria o início do fim da pandemia de Covid-19. Na realidade, não estamos nem no final do início da entrega do que é necessário: uma "vacina para o povo" que seja distribuída de forma equitativa e disponibilizada gratuitamente a todos que precisam.
Com certeza, o trabalho para criar vacinas em questão de meses merece elogios. A humanidade deu um salto tecnológico monumental. Mas o trampolim foram décadas de investimento público maciço em pesquisa e desenvolvimento.
A maioria das principais vacinas candidatas prepara as defesas do sistema imunológico contra as espículas proteicas virais [peplômeros, spike proteins], uma abordagem que se tornou possível como resultado de anos de pesquisa no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Mais recentemente, a BioNTech recebeu US$ 445 milhões do governo alemão e a Moderna recebeu US$ 1 milhão da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations e mais de US$ 1 bilhão da US Biomedical Advanced Research and Development Authority e da US Defense Advanced Research Projects Agency. A vacina AstraZeneca-Oxford recebeu mais de £ 1 bilhão (US$ 1,3 bilhão) de financiamento público.
Mas, para que os avanços tecnológicos se traduzam em Saúde para Todos, as inovações criadas coletivamente devem ser administradas com foco no interesse público, não para o lucro privado. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata de desenvolver, fabricar e distribuir uma vacina no contexto de uma pandemia.
Nenhum país agindo sozinho pode resolver esta crise. É por isso que precisamos de vacinas que estejam universal e gratuitamente disponíveis. Entretanto, o atual sistema de inovações prioriza os interesses dos países de alta renda em relação aos de todos os outros e os lucros em detrimento da saúde pública.
O primeiro passo em direção a uma vacina do povo é garantir total transparência dos resultados dos ensaios clínicos, o que permitiria avaliações de segurança e eficácia independentes e tempestivas. A publicação de dados preliminares escassos por meio de comunicados de imprensa corporativos é destinada aos mercados financeiros, não à comunidade de saúde pública. Essa prática abre um mau precedente.
Enquanto os preços das ações das empresas farmacêuticas sobem, os profissionais de saúde e o público ficam duvidando dos resultados relatados. À medida que surgem mais detalhes sobre as falhas no desenho e implementação dos ensaios clínicos da vacina da AstraZeneca-Oxford, surgem também os apelos por ciência aberta e compartilhamento imediato de protocolos e resultados.
Além disso, perguntas críticas sobre as principais vacinas candidatas permanecem sem resposta. Reagindo à pressão política e econômica em países de alta renda, as empresas farmacêuticas estão forçando a conclusão dos processos de testes e a aprovação de suas vacinas candidatas. Por consequência, projetaram seus ensaios clínicos de fase três para fornecer a leitura positiva mais rápida possível, ao invés de abordar questões mais relevantes, tais como se a vacina previne infecção ou apenas protege contra a doença.
Também não está claro quanto tempo a proteção vai durar; se uma determinada vacina funciona igualmente bem em jovens e idosos, ou em pessoas com comorbidades; e como as principais candidatas se comparam entre si (o que é crítico para a definição de estratégias eficazes de vacinação).
Além disso, os interesses nacionais - especialmente os dos países desenvolvidos - continuam sendo o fator dominante na distribuição da vacina. Embora a plataforma de compra e distribuição internacional COVAX represente um importante passo à frente, seu impacto está sendo reduzido por enormes acordos bilaterais de compra antecipada por países ricos que podem apostar em várias vacinas. Por exemplo, os países de alta renda já compraram cerca de 80% das doses das vacinas Pfizer / BioNTech e Moderna que estarão disponíveis no primeiro ano.
Ao todo, os países ricos reservaram para si 3,8 bilhões de doses de diferentes fabricantes de vacinas, em comparação com 3,2 bilhões (o que inclui cerca de 700 milhões de doses para COVAX) alocados a todo o resto do mundo. Em outras palavras, os países de alta renda pré-encomendaram doses suficientes para cobrir suas populações várias vezes, deixando o resto do mundo com potencialmente muito poucas doses para cobrir até mesmo suas comunidades de maior risco.
Ao mesmo tempo, como a corrida da vacina está focada principalmente nos mercados ocidentais, alguns candidatos dificilmente são viáveis fora do contexto de um país desenvolvido. A vacina Pfizer / BioNTech deve ser mantida a -70ºC, que é mais frio do que um inverno antártico. A distribuição dessa vacina criará desafios logísticos caros e complexos, especialmente para países de baixa e média renda. Embora outros candidatos - como a vacina AstraZeneca-Oxford - sejam estáveis em temperaturas mais altas, chama muito a atenção que tais características óbvias de discriminação de mercado estejam embutidas no primeiro produto a atingir o estágio de aprovação.
Além do interesse nacional, estão à espreita interesses privados ainda mais restritos, que decorrem de um modelo de inovação biofarmacêutica hiperfinanceirizado. O modelo de negócios para o desenvolvimento futuro de vacinas já está sendo avaliado, agora que a pandemia revelou o potencial de lucro inesperado para os investidores. Mas enquanto eles se beneficiam dos preços das ações em alta vertiginosa, do aumento dos ganhos de capital e da venda instantânea das ações de uma empresa no mesmo dia em que esta anuncia resultados preliminares promissores em um ensaio clínico, fornecer uma vacina para o povo tornou-se uma preocupação menor.
A crise da Covid-19 é um teste perfeito para sabermos se uma abordagem de inovação e produção mais voltada para a saúde pública prevalecerá nos próximos anos. Enquanto a Pfizer segue o modelo de maximização do valor para o acionista, a AstraZeneca pelo menos se comprometeu a não lucrar com sua vacina “durante a pandemia”. No entanto, apesar de todo o investimento público que garantiu essas inovações, o processo permanecerá opaco, deixando a dúvida se a AstraZeneca está realmente pronta para priorizar a saúde pública em vez do lucro e para oferecer sua vacina a preço de custo.
Embora as notícias recentes sobre vacinas tenham trazido esperança, também expuseram o modelo de negócios falido da indústria farmacêutica, lançando dúvidas sobre as possibilidades de fornecimento de uma vacina popular e de se atingir a Saúde para Todos.
Mais do mesmo [business as usual] pode nos permitir superar minimamente esta crise. Mas existe uma maneira melhor de fazer as coisas. Antes que a próxima pandemia chegue, devemos reconhecer as vacinas como um Comum [commons] da saúde global e começar a reorientar o sistema de inovação para parcerias público-privadas simbióticas governadas pelo interesse público.