Tradução de Artur Araujo para artigo de Stephen S. Roach publicado por The Project Syndicate

Enquanto os mercados financeiros comemoram o “boom” associado às vacinas, a confluência de réplicas [aftershocks] epidemiológicas e políticas nos empurra de volta para um atoleiro de vulnerabilidade econômica elevada. Em termos dickensianos, para alcançar uma "primavera de esperança", primeiro devemos suportar um "inverno de desespero".

De repente, há um cenário confiável para uma recuperação econômica puxada pela existência de vacinas. A ciência moderna realizou o que certamente deve ser um dos maiores milagres de minha longa vida. Assim como a Covid-19 arrastou a economia mundial para a recessão mais aguda e profunda já registrada, uma simetria igualmente poderosa no lado positivo agora parece possível.

Queria que fosse assim tão fácil. Com a Covid-19 ainda em alta - e as taxas de infecção, hospitalização e morte agora saindo do controle (novamente) - os riscos de curto prazo para a atividade econômica fletiram decididamente para o lado negativo nos Estados Unidos e na Europa. A combinação da fadiga da pandemia e da politização das práticas de saúde pública entrou em cena precisamente no momento em que a tão esperada segunda onda da Covid-19 está próxima.

Infelizmente, isso se encaixa no roteiro da temida recessão de duplo mergulho sobre a qual alertei recentemente. Vale a pena repetir a conclusão: recuperações econômicas aparentes nos Estados Unidos deram lugar a recaídas em oito dos 11 ciclos econômicos desde a Segunda Guerra Mundial. As recaídas refletem duas condições: vulnerabilidade persistente, causada pela própria recessão, e a probabilidade de tremores secundários. Infelizmente, ambas as condições foram satisfeitas.

A vulnerabilidade é dificilmente discutível. Apesar do salto de retomada [snapback] recorde de 33% anualizados no crescimento real do PIB no terceiro trimestre deste ano, a economia dos EUA ainda estava 3,5% abaixo de seu pico anterior no quarto trimestre de 2019. Com exceção do declínio de 4% de pico a vale durante a crise financeira global de 2008-09, a lacuna atual de 3,5% é tão grande quanto a registrada nas profundezas de todas as outras recessões americanas pós-Segunda Guerra Mundial.

Consequentemente, é ridículo falar de uma economia americana que já está em recuperação. O salto de retomada do terceiro quarto não foi nada mais do que o proverbial “salto do gato morto” - um rebote mecanicista pós-bloqueio após o declínio mais acentuado já registrado. Isso é muito diferente da retomada orgânica e cumulativa de uma economia que está realmente em recuperação. Os EUA continuam em um buraco profundo.

Basta perguntar aos consumidores americanos que, compondo 68% do PIB, há muito respondem pela parcela dominante da demanda agregada dos EUA. Após uma queda sem precedentes de 18% de janeiro a abril, o gasto total do consumidor recuperou cerca de 85% dessa perda (em termos reais). Mas o diabo está nos detalhes.

A recuperação tem se concentrado no consumo de bens - duráveis ​​de altos preços, como carros, móveis e eletrodomésticos, além de não-duráveis ​​como alimentos, roupas, combustível e produtos farmacêuticos - que mais do que compensaram o que foi perdido durante o mergulho induzido pelo confinamento. Em setembro, o consumo de bens em termos reais ficou 7,6% acima do pico pré-pandemia de janeiro de 2020. A recuperação se beneficiou significativamente de um aumento nas compras online por consumidores que ficam em casa, com o e-commerce passando de 11,3% do total das vendas no varejo, no quarto trimestre de 2019, para 16,1% no segundo trimestre de 2020.

Mas o consumo de serviços, que representa mais de 61% do gasto total dos consumidores nos Estados Unidos, é um problema completamente distinto. Os serviços responderam por 72% do colapso nos gastos totais dos consumidores de janeiro a abril. Embora tenham se recuperado parcialmente desde setembro, eles recuperaram apenas 64% das perdas induzidas pelo confinamento no início deste ano.

Com a Covid-19 ainda em alta, os consumidores americanos vulneráveis ​​permanecem compreensivelmente relutantes em voltar a se engajar na interação pessoal necessária para atividades de serviços face a face, como jantares em restaurantes, compras presenciais no varejo, viagens, estadias em hotéis e atividades de lazer e recreação. Em conjunto, esses serviços representam quase 20% do total dos dispêndios das famílias com serviços.

O medo compreensível de interações pessoais no meio de uma pandemia nos leva ao segundo ingrediente do duplo mergulho: tremores secundários. Com o atual aumento exponencial dos casos de Covid-19, os confinamentos estão de volta - não tão severos quanto em março e abril, mas ainda visam uma redução parcial da atividade de pessoa a pessoa que atinge a importante temporada de festas. Precisamente no momento em que o calendário econômico normalmente espera um enorme aumento da atividade, as probabilidades de uma grande decepção sazonalmente ajustada estão aumentando.

Isso representa sérios riscos para o ainda combalido mercado de trabalho dos EUA. Sim, a taxa geral de desemprego caiu drasticamente de 14,7% em abril para 6,9% em outubro, mas permanece essencialmente o dobro da mínima pré-Covid (3,5%). Com os pedidos semanais de seguro-desemprego apenas começando a surgir no início de novembro, à medida que novos toques de recolher e outras medidas de confinamento vão sendo colocadas em prática, e que um Congresso disfuncional não consegue convergência em torno de outro pacote de ajuda, o risco de fraqueza renovada no quadro de empregos está crescendo.

As notícias sobre as vacinas são verdadeiramente extraordinárias. Embora a logística de produção e distribuição seja assustadora, para dizer o mínimo, há boas razões para se ter esperança de que o fim da pandemia de Covid-19 possa estar à vista. Mas o impacto na economia não será instantâneo, com a improbabilidade da vacinação gerar a chamada imunidade de rebanho antes de meados de 2021, no mínimo.

Então, o que acontece entre agora e o futuro? Para uma economia dos EUA ainda vulnerável, e agora nas garras de tremores secundários previsíveis, o cenário de uma recaída, ou um duplo mergulho, antes de meados de 2021 é ainda mais convincente.

Parafraseando Charles Dickens, este é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Enquanto os mercados financeiros comemoram o boom liderado pelas vacinas, a confluência de réplicas epidemiológicas e políticas nos empurra de volta para um atoleiro de vulnerabilidade econômica elevada. Em termos dickensianos, para alcançar uma "primavera de esperança", primeiro devemos suportar um "inverno de desespero".