Por Henry Campos e Nahuan Gonçalves
Em meio à sua maior crise política, os Estados Unidos experimentam um momento cada vez mais catastrófico da pandemia da Covid-19, assistido com indiferença e imobilismo por Donald Trump, cuja atividade tem consistido unicamente em assistir aos canais de televisão e enviar declarações pelo Twitter, alardeando, sem apresentar qualquer evidência até o momento, que a eleição foi dele roubada por fraude eleitoral, denunciada sem provas apenas nos estados onde perdeu ou não tem vantagem na contagem de votos ainda em curso. Na última semana o número de novos casos diários de Covid-19 tem sido, sistematicamente, superior a 100-120 mil; 139 mil novos casos foram registrados nesta quarta-feira, dia 11 de novembro, quando a marca de mais de 65.000 hospitalizações foi atingida. Em pelo menos 44 dos 50 estados americanos o surgimento diário de novos casos quase sempre ultrapassa três dígitos e o país já responde por mais de 10 milhões de casos, ou seja, mais de um quinto dos pouco mais de 50 milhões de casos contabilizados no planeta. Por conta da saturação de leitos, em locais como Idaho, pacientes são transferidos para outras estados.
Nem mesmo a notícia de resultados promissores de uma vacina contra o SARS-CoV-2 fez vir a público ou tirou da impassividade o habitualmente falastrão mandatário norte-americano. Ironicamente, nem mesmo a titularidade da descoberta pode ser rotulada como “made in USA”, pois, os méritos da concepção da vacina, idealizada na empresa BioNTech, em Mainz, Alemanha, são atribuídos a um casal de imigrantes, os cientistas Ugur Salim e Uzlem Turechi, marido e mulher, de origem turca. Atenta à oportunidade, a empresa farmacêutica Pfizer, pelas mãos do seu executivo-chefe, o grego Albert Boula, adquiriu os direitos de comercialização da primeira vacina a reportar os resultados preliminares de fase III, recebidos pela comunidade científica com cauteloso entusiasmo, após o comunicado de imprensa da Pfizer. Possivelmente, mais um fato para aguçar o espírito raivoso de Donald Trump, que, ao longo do seu mandato, deixou sempre muito clara a sua xenofobia, em especial a sua aversão às pessoas islâmicas.
A vacina, co-desenvolvida pela BioNTech em Mainz, possibilita que instruções moleculares sejam transmitidas às células humanas, na forma de um RNA mensageiro, para que o sistema imune estabeleça como alvo a proteína espiculada do coronavírus. No comunicado à imprensa, divulgado no último dia 9, as duas empresas relataram ter encontrado 94 casos de COVID-19 entre os 45.538 participantes do estudo. Embora não tenham indicado quantos voluntários estavam em cada braço do estudo, a separação dos infectados sugere que a vacina foi efetiva na prevenção de mais de 90% dos que receberam a vacina, número bastante superior ao limite de 50% requerido pela FDA para aprovação para uso emergencial. A vacina foi administrada em duas doses, com um intervalo de três semanas entre elas. Eric Topol, cardiologista e diretor do Scripps Research Translational Institute, em La Jolla, California, acredita que a efetividade da vacina permanecerá bem acima dos 50% e que “mesmo sem conhecer ainda os detalhes, essa vacina é um avanço extraordinário, pois não tínhamos ainda segurança da eficácia de uma vacina antes do surgimento desses dados”. “Precisamos ver os dados finais, mas isso não diminui meu entusiasmo”, diz o virologista Florian Krammer, da Icahn School of Medicine, Mount Sinai Hospital, New York, ele mesmo um dos voluntários no estudo e que “espera não estar no grupo placebo”.
O que falta, segundo Topol e outros cientistas, são detalhes sobre a natureza das infecções que podem ser protegidas pela vacina – se elas são, em maioria, casos leves de Covid-19 ou se também incluem casos moderados e graves. “Quero saber o espectro de doença que a vacina previne”, ressalta Paul Offit, cientista de vacinas no Children’s Hospital of Philadelphia, Pennsylvania, que tem assento no comitê assessor da FDA que vai avaliar a vacina em dezembro. “Gostaria de ver um bom número de casos graves no grupo placebo, porque isso sugeriria que a vacina tem o potencial de prevenir esses casos”.
Não está claro também se a vacina pode prevenir a transmissão do coronavírus por pessoas assintomáticas ou com sintomas leves da Covid-19. Uma vacina bloqueadora da transmissão poderia acelerar o fim da pandemia, mas será difícil determinar se a vacina BioNTech-Pfizer ou outras que se encontram em fase final de testes podem alcançar isso, destaca o virologista Florian Krammer, já que isso envolveria a testagem rotineira de todos os participantes do estudo. “Isso não pode ser feito com 45.000 pessoas”, diz ele.
Outro ponto não conhecido é como a vacina se comporta nos diferentes grupos de participantes do estudo. “Não sabemos ainda se a vacina é eficaz na população que mais necessita” – os idosos, diz Krammer. Embora as duas empresas tenham mencionado, no comunicado de imprensa, que “42% dos participantes provinham de origens raciais e étnicas diferentes”, em função do pequeno número adicional de infecções que deverá ser registrado, é pouco provável que dados conclusivos possam ser obtidos sobre a eficácia em pessoas com mais de 65 anos e em afrodescendentes, analisa o Dr. Paul Offit.
Questão igualmente pendente é a duração da imunidade conferida pela vacina. Com base em dados sobre a resposta imune em estágios iniciais do estudo, é provável que muitos participantes do estudo ainda tenham níveis sanguíneos altos de anticorpos protetores, aponta o Dr. Rafi Ahmed, imunologista na Emory University, Atlanta, para quem “a principal questão é sobre o que acontece com esses níveis de anticorpos seis meses, ou mesmo três meses depois”. Essa pergunta tem chance de ser respondida se o estudo prosseguir mais tempo. Embora pouco seja conhecido sobre a efetividade da vacina a longo prazo, é pouco provável que o seu emprego seja proscrito por essa razão. Estudo recente da Rockfeller University, New York, mostra uma evidência indireta que pode fortalecer a ideia de que uma proteção mais duradoura possa ser proporcionada pela vacina. O estudo, liderado pelo Dr. Michel Nussenzweig, diretor de imunologia molecular da Rockfeller, publicado no início do mês, é o dado mais forte até o momento, mostrando que pessoas recuperadas da COVID-19 produzem uma resposta muito mais rápida e eficaz se forem contaminadas novamente, inclusive melhorando a qualidade dos anticorpos protetores, embora não seja claro quanto tempo dura a memória do sistema imunológico. Nussenzweig acredita que a defesa imunológica oferecida pelas células de memória T e B pode durar anos, o que explicaria o pequeno número de reinfecções registradas até agora.
Enquanto a nova vacina suscita essas e outras questões, como a necessidade de conservação à temperatura de 80º negativos, o que torna complexa a logística de armazenamento e distribuição, no mesmo dia do comunicado de imprensa sobre a vacina BioNTech-Pfizer , 9 de novembro, a FDA autorizou, para uso emergencial, um anticorpo monoclonal, agente terapêutico a que já havíamos nos referido antes neste espaço como sendo uma alternativa de tratamento bastante promissora. Essa autorização passou praticamente sem divulgação na imprensa americana, com exceção da rede de televisão CNN que, na noite do último dia 10, fez breve alusão ao fato.
Anticorpos monoclonais são moléculas produzidas em laboratório, atualmente por técnicas de engenharia genética, para servir como anticorpos substitutos que podem restaurar, aumentar ou reproduzir a resposta imune de ataque a células. O anticorpo que recebeu, da FDA, a autorização para uso emergencial (Emergency Use Authorization -EUA) foi desenvolvido pelo laboratório farmacêutico Eli Lilly com a identificação LY-CoV555 e a posterior denominação de bamlanivimab. A autorização para uso emergencial destina-se ao tratamento de Covid-19 leve a moderada em pacientes adultos e pediátricos com resultado de pesquisa viral direta positiva para SARS-CoV-2, com idade igual ou superior a 12 anos, peso maior do que 40 kg e que apresentam alto risco de progressão para Covid-19 severa e/ou hospitalização. O alto risco de progressão para Covid-19 severa e/ou hospitalização é definido para pacientes adultos que apresentem um dos seguintes critérios: índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 35 kg/m2; doença renal crônica; diabetes mellitus; depressão do sistema imune; uso de imunossupressor; 65 anos de idade ou mais; 55 anos de idade ou mais e doença cardiovascular ou hipertensão ou doença pulmonar obstrutiva crônica ou outra doença respiratória crônica. Pacientes pediátricos devem ter de 12-17 anos de idade e IMC maior ou igual ao percentil 85 para sua idade e sexo; anemia de células falciformes ou doença cardíaca adquirida ou congênita ou alterações do neurodesenvolvimento (ex., paralisia cerebral) ou dependência médica relacionada (traqueostomia, gastrostomia, ventilação com pressão positiva não decorrente da Covid-19) ou asma, doença reativa das vias respiratórias ou outra doença respiratória que requer medicação de controle diária. O uso de bamlanivimab não está autorizado para uso em pacientes já hospitalizados por COVID-19 ou que requerem oxigenoterapia pela infecção pelo coronavírus ou aumento do fluxo da oxigenoterapia por outras comorbidades.
O anticorpo bamlanivimab deve ser administrado tão cedo quanto possível após a testagem positiva para SARSCoV-2 e dentro dos 10 primeiros dias de início dos sintomas, em dose única de 700 mg por via endovenosa, em infusão por 60 minutos. Essas recomendações têm por base estudos clínicos, de fase 2 (452 voluntários), publicado no New England Journal of Medicine em 11 de novembro, e de fase 3 (465 voluntários), liberado pelo FDA em 9 de novembro. Os resultados mais expressivos foram a redução significativa de hospitalizações e idas aos serviços de emergência, bem como o desaparecimento da carga viral no grupo tratado com o anticorpo monoclonal por volta do décimo primeiro dia pós-tratamento. Este último achado sugere que o uso deste agente terapêutico tem uma capacidade potencial significativa de redução da transmissão do novo coronavírus.
O anticorpo bamlanivimab não fez parte do coquetel de agentes similares administrado a Donald Trump em sua curtíssima internação no Walter Reed Hospital no início de outubro passado, sendo desconhecido o resultado da testagem ou determinação da sua carga viral por ocasião da alta hospitalar.
Para saber mais:
https://doi.org/10.1101/2020.07.09.20148429
www.fda.gov/media/143605/download
www.fda.gov/medwatch/report.htm