Artigo originalmente publicado em FMI - F&D Magazine, com tradução de Artur Araújo para o Observa BR.
Milhões de infecções, centenas de milhares de mortes e confinamentos generalizados. Em apenas seis meses, a pandemia de Covid-19 mudou nosso mundo dramaticamente. À medida em que nos adaptamos, estamos aprendendo sobre o vírus - especialmente a possibilidade de que a imunidade transitória possa expor as pessoas a ondas do vírus - e sobre os efeitos de longo prazo nos pulmões, coração, rins e cérebro entre aqueles que se recuperam.
Apesar dessas incógnitas, a Covid-19 expôs várias desigualdades bem conhecidas e profundamente persistentes. Pessoas com comorbidades, como doenças cardiovasculares e respiratórias e diabetes, têm maior risco de complicações com a Covid-19, e esses fatores de risco afetam desproporcionalmente aqueles que estão em desvantagem socioeconômica.
As mulheres carregam o fardo de cuidar de doentes e crianças, correm alto risco de violência doméstica durante quarentenas e confinamentos e são afetadas por interrupções no acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, bem como pela perda de empregos no setor informal.
Esta pandemia também revelou a desigualdade entre países ricos e pobres. Em sua maior parte, os países ricos têm sistemas de saúde mais bem financiados e podem congelar temporariamente suas economias e injetar bilhões de dólares em pacotes de estímulo econômico. No entanto, a maioria dos países pobres tem sistemas de saúde subfinanciados e com pessoal insuficiente, sistemas de água e saneamento fracos, grandes populações, dívidas crescentes, desemprego colossal e capacidade fiscal limitada para alívio econômico.
Para piorar as coisas, outra pandemia pode atacar a qualquer momento, mesmo enquanto lutamos com a crise atual. Além das iminentes pandemias globais, há também a ameaça de eventos climáticos extremos e desastres naturais, bem como de crises econômicas recorrentes, todas com efeitos devastadores nas comunidades e nos sistemas de saúde.
Durante todas essas crises naturais e humanas, o sistema de saúde de um país é sua primeira linha de defesa e, se o sistema não for resiliente, será sobrecarregado e entrará em colapso, exacerbando o impacto na saúde e aumentando a desigualdade. Países como Alemanha, Nova Zelândia, Coréia do Sul, Taiwan Província da China e Vietnã - todos os quais conseguiram controlar a Covid-19 melhor do que outros - demonstraram resiliência em seus sistemas de saúde.
Sistemas de saúde resilientes
Margaret Kruk, professora de Saúde Pública de Harvard, define a resiliência do sistema de saúde como “a capacidade dos atores da saúde, das instituições e das populações de se prepararem e responderem com eficácia às crises; manterem funções essenciais quando uma crise chegar; e, com base nas lições aprendidas durante a crise, se reorganizarem se as condições assim o exigirem ”(Kruk e outros 2015). Diante de uma crise, um sistema de saúde resiliente pode lidar com o choque, continuar a fornecer serviços e retornar ao funcionamento normal assim que a crise se resolver, proporcionando resultados de saúde positivos em tempos bons e ruins.
No entanto, um sistema de saúde não funciona em um silo; opera em um contexto socioeconômico e político, claramente refletido pelos efeitos sanitários diretos e indiretos de pandemias e de outros choques sobre as populações vulneráveis. Um sistema de saúde resiliente pós-Covid-19 também deve abordar essas vulnerabilidades e desigualdades e responder de forma sustentável a uma série de crises no futuro.
Com base na literatura crescente e nas experiências dos países com o Ebola e com a Covid-19, podemos delinear cinco grandes características de um sistema nacional de saúde resiliente.
Primeiro, deve estar vigilante. Os países devem fortalecer seus sistemas de vigilância de doenças existentes para coletar e analisar rotineiramente informações em serviços de saúde públicos e privados a fim de prevenir ou reprimir surtos. Vários sistemas simples e eficazes de vigilância de doenças foram desenvolvidos e adaptados em locais com poucos recursos. Por exemplo, no início da década de 1980, o virologista T. Jacob John estabeleceu um novo sistema no sul da Índia usando um conjunto padronizado de sintomas (que hoje seria chamado de “vigilância sindrômica”) para detectar e limitar surtos de doenças (John e outros, 1998). Esse sistema nacional de vigilância também deve aumentar sua capacidade de monitorar rotineiramente tais eventos em países e regiões vizinhas e em todo o mundo, o que requer capacitação e diplomacia.
Em segundo lugar, deve ter capacidade de pronta resposta. A resposta precoce é uma característica definidora dos sistemas de saúde da Alemanha, Nova Zelândia, Coréia do Sul e Taiwan Província da China, bem como em estados como Kerala, na Índia - todos os quais conseguiram controlar Covid-19 de forma eficaz.
A capacidade de resposta exige preparação, o que pode levar anos de planejamento e investimento, muito antes de uma pandemia chegar. Cingapura e Taiwan Província da China responderam ao surto mortal de SARS de 2003 com planos de resposta elaborados e exercícios anuais em hospitais, enquanto na Coreia do Sul, após o surto de MERS de 2015, o governo investiu pesadamente em protocolos operacionais padrão e incentivou suas empresas biomédicas a pesquisar e desenvolver ferramentas de diagnóstico rápido. Os países podem ter planos e protocolos de preparação para emergências, mas estes precisam estar alinhados com indivíduos e equipes dedicados com autonomia de decisão para responder rapidamente, bem como com investimentos para fortalecer a infraestrutura de saúde e com uma força de trabalho e procedimentos para aquisições de emergência e para reposição de em caso de escassez.
Terceiro, deve ser flexível e adaptável. A equipe de hospitais em vários países foi transferida para alas de Covid-19. Em janeiro e fevereiro, quase 3 mil trabalhadores de saúde no Camboja foram treinados e destacados para implementar a detecção rápida e rastreamento de contato. Na China, hospitais-abrigo Fangcang foram montados rapidamente em fevereiro de 2020 - locais de grande escala, como estádios e centros de exposições, foram convertidos em hospitais temporários para isolar e cuidar de pessoas com sintomas de Covid-19 leves a moderados e para reduzir a carga sobre os hospitais. Em todo o mundo, os hospitais mudaram alguns de seus serviços de saúde para fóruns virtuais, como consultas por telefone e vídeo. Essas práticas mostram o potencial de uso flexível dos recursos existentes - sejam a força de trabalho ou as unidades de saúde - e a adaptação a uma situação em rápida mudança.
Quarto, é tão resiliente quanto as comunidades que atende. As equipes distritais de saúde pública devem engajar e envolver os líderes locais e voluntários da comunidade em funções estruturadas durante emergências; a extensão dos papéis durante tempos normais pode melhorar a governança participativa. Na Tailândia, mais de 1 milhão de voluntários de saúde em aldeias monitoraram comunidades para identificação de Covid-19. Em Kerala, mais de 300 mil jovens voluntários foram treinados e mobilizados pelo governo para prestar serviços sociais às comunidades locais durante o confinamento e para apoiar famílias em quarentena (OMS 2020). Os líderes locais e voluntários têm a confiança de suas comunidades e, quando as equipes distritais de saúde fazem parceria com essas partes interessadas, podem garantir uma comunicação bidirecional e persuadir as comunidades a adotarem o comportamento recomendado.
Quinto e mais importante, os sistemas de saúde resilientes devem ser equitativos. Pessoas em países ricos e pobres sem cobertura de saúde eficaz têm lutado para fazer o teste e buscar tratamento a tempo para Covid-19 e outras emergências de saúde. A cobertura universal de saúde, independentemente do status socioeconômico, localização geográfica, gênero, idade ou condições pré-existentes, é necessária agora mais do que nunca (OMS 2010). Os países devem investir na cobertura universal de saúde, especialmente expandindo a cobertura do seguro saúde e fortalecendo os serviços de atenção primária à saúde, para garantir a detecção precoce e a resposta à Covid-19 e outras doenças infecciosas. Isso evitará que as unidades de saúde secundárias e terciárias sejam sobrecarregadas e interrompam a prestação de outros serviços essenciais de saúde. Mais importante, a cobertura universal de saúde evitará que as famílias caiam na pobreza durante essas emergências de saúde pública.
Os governos também terão que fortalecer três áreas transversais para garantir a resiliência do sistema de saúde. Em primeiro lugar, uma abordagem governamental multissetorial é urgentemente necessária, por meio da qual mecanismos sejam construídos e ativados para que os formuladores de políticas de saúde trabalhem em estreita colaboração com suas contrapartes em outros setores públicos relevantes, incluindo educação, assistência social, finanças e comércio e meio ambiente.
A parceria com o setor privado de saúde é a segunda tarefa transversal. Em vários países de renda baixa e média, as instituições privadas são o primeiro ponto de contato de saúde e fornecem a maior parte dos serviços. Este setor não pode ser ignorado e deve ser mantido de forma sustentável sob supervisão pública.
Terceiro, uma comunicação clara, consistente, transparente e oportuna é necessária, envolvendo vários canais, incluindo vozes confiáveis para a audiência interna (departamentos do setor estatal) e externa (público em geral). Esses canais de comunicação devem incluir e incorporar feedback. Uma boa comunicação construirá a confiança do público no governo e incentivará a adesão ao comportamento necessário para interromper a transmissão e controlar os surtos.
Fazendo acontecer
O financiamento é fundamental para se alcançar os cenários acima descritos em áreas transversais de um sistema de saúde resiliente. Os governos devem aumentar os recursos financeiros domésticos para o sistema público de saúde por meio de mecanismos como realocação de orçamento, reforma e gestão tributária e impostos sobre luxo e produtos adictivos, bem como via colaboração com os setores privado e filantrópico. Em 2013, um ano após a introdução de impostos sobre o consumo de álcool e tabaco, as Filipinas geraram US$ 1,2 bilhão, o que possibilitou a inscrição de mais 45 milhões de cidadãos na cobertura universal de saúde.
Os governos também podem fazer uma diferença substancial ao reduzir as ineficiências em seus gastos com saúde. Isso pode ser alcançado por meio de estratégias como a reforma de estruturas de incentivo e pagamento para lidar com o uso excessivo de serviços, controlar margens de lucro excessivas em medicamentos e promover medicamentos genéricos, compra conjunta de medicamentos e combate à corrupção.
Os países mais pobres que sofrem com choques econômicos terão dificuldade em levantar dinheiro para o financiamento interno da saúde, razão pela qual precisamos urgentemente de uma resposta global coordenada. Países mais ricos, doadores e agências multilaterais devem aumentar a assistência ao desenvolvimento. Instituições como o Banco Mundial e o FMI deram os primeiros passos com maior financiamento de emergência, alívio da dívida e apoio à suspensão do serviço da dívida. O apoio futuro, além do financiamento de emergência incondicional, deve apoiar o amplo fortalecimento e resiliência do sistema de saúde e proteger os gastos sociais e as redes de segurança para os mais vulneráveis.
A governança é a chave para uma resposta eficaz visando sistemas de saúde resilientes em face da Covid-19 e futuras emergências de saúde pública. Uma governança eficaz exige uma liderança comprometida com todos os partidos políticos e estruturas que reflitam responsabilidade e transparência, bem como mecanismos para autonomia de tomada de decisão e incentivos para funcionários de saúde pública em todos os níveis de governo.
O compromisso mundial com a cooperação em vacinas e terapias contra a Covid-19 começa com o apoio coletivo da Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar de suas deficiências, nenhuma outra agência internacional tem sua capacidade técnica, normativa e de convocação para reunir os países na mesma mesa para garantir o acesso equitativo aos bens públicos globais para emergências de saúde pública. Com o recente anúncio dos EUA de se retirar da OMS e ameaças ao financiamento geral, a cooperação internacional, conforme demonstrado na Assembleia Mundial da Saúde em maio de 2020, é mais relevante do que nunca (Sridhar e King 2020).
Como disse a ex-presidente da Libéria Ellen Johnson Sirleaf: “O coronavírus em qualquer lugar é uma ameaça para as pessoas em qualquer lugar”. Nenhum governo pode resolver completamente a crise da Covid-19 sozinho; é preciso cooperação e solidariedade globais.
Genevie Fernandes é pesquisadora em Governança Global de Saúde e em Saúde Respiratória na Universidade de Edimburgo.
Referências:
John, T. J., R. Samuel, V. Balraj, and R. John. 1998. “Disease Surveillance at District Level: A Model for Developing Countries.” Lancet 352 (9121): 58–61.
Kruk, M. E., M. Myers, S. T. Varpilah, and B. T. Dahn. 2015. “What Is a Resilient Health System? Lessons from Ebola.” Lancet 385 (9980): 1910–12.
Sridhar, D., and L. King. 2020. “US Decision to Pull out of World Health Organization.” BMJ 370:m2943.
World Health Organization (WHO). 2010. “Health Systems Financing: The Path to Universal Coverage.” Geneva.
———. 2020. “Responding to COVID-19—Learnings from Kerala.” Geneva.