O Observa BR: caminhos da reconstrução e transformação do Brasil discutiu na última sexta-feira, 2 de outubro, a política de abastecimento e o combate à carestia e à fome no Brasil. Para isso recebeu o deputado federal Elvino Bohn Gass, que é agricultor e professor de História; o agricultor assentado João Paulo Rodrigues, cientista social e membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Frente Brasil Popular; e a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco, integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroecologia e do Fórum Brasileiro de Soberania Alimentar e Nutricional. A mediação foi do economista Carlos Henrique Árabe, diretor da Fundação Perseu Abramo.

João Paulo Rodrigues iniciou o debate afirmando que a pandemia deve ser sucedida por uma crise alimentar, econômica e do mundo do trabalho que deve aumentar a fome em todo o planeta, e que entende que não há como discutir seriamente esse problema sem enfrentar a concentração, monopólio e redes de especulação no agronegócio em nível mundial; os problemas ambientais que diminuem a produtividade do agronegócio e que são fruto do modelo produtivo adotado pelo setor; e a ausência do Estado como regulador.

Essa crise alimentar que nós estamos vivendo agora não é conjuntural, ela veio para ficar, por isso ela é tão grave”. Segundo ele, a crise deve perdurar no Brasil por conta do modo de produção agrícola adotado, baseado no modelo agroexportador, na exportação de commodities – e que trata outras culturas, como a do arroz, que não é uma commodity, sob a mesma lógica – e na concentração do controle do sistema produtivo em poucas empresas transnacionais que controlam todo o mercado de sementes, de soja e toda a distribuição em grandes redes varejistas de supermercados, onde João Paulo afirma estar a tragédia maior.

Fora isso, nós temos uma ausência completa do Estado na organização de políticas públicas”. João Paulo elencou algumas das importantes políticas abandonadas após o golpe de 2016, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), além da política agrícola consolidada a partir da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Também chamou atenção para importância de se democratizar o acesso à terra, com uma política de Reforma Agrária.

Para João Paulo, a crise não é conjuntural porque existe um problema real de escassez de produção agrícola. “Nós temos quatro caixinhas onde guardamos a alimentação brasileira”. A primeira é o agronegócio, que produz basicamente soja (para exportação), cana-de-açúcar (principalmente para produção de etanol), gado (sobretudo para exportação), eucalipto e milho. A segunda é a da agricultura familiar, em torno da qual vivem cerca de 50 milhões de brasileiros e que produz mais de 3 mil tipos de alimento, mais de 70% do que se come no país, apesar da ausência de terras no último período, do fim da assistência técnica, um aumento da inadimplência e o apagão das políticas públicas nos últimos anos. A terceira é a do Estado, sobretudo em torno da Conab, que foi destruída. “E, por fim, o que eu acho mais perverso, a caixa do mercado e das grandes transnacionais que atuam nas redes de supermercados”, essa sim responsável por toda a tragédia que estamos vivendo.

Diante desse quadro, João Paulo entende que a esquerda deve se posicionar e lutar pelo “fora Bolsonaro”, porque não há saída com o atual governo; para que os agricultores que estão no campo tenham acesso a políticas públicas e para que sua produção chegue aos grandes centros; e por soberania alimentar.

A antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco iniciou sua participação afirmando que é impossível dissociar a fome e a carestia das questões agrária e ambiental, e que o golpe de 2016 não só interrompeu o desenvolvimento do país como o fez caminhar para trás, a começar no que diz respeito à segurança alimentar. Segundo ela, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) já mostra que o acesso pleno à alimentação já retrocedeu a um nível menor que o registrado em 2004 e a insegurança alimentar grave, que é a manifestação da fome, também cresceu no país, que registra mais de 10 milhões de domicílios em que reina a fome.

A antropóloga explica que os dados mostram que a fome é mais acentuado no Norte e no Nordeste, nos domicílios chefiados por mulheres e por pessoas negras. “A manifestação da fome no Brasil é uma expressão de classe, de gênero, de raça, ou seja, ela é manifestamente a demonstração de um país onde reina o patriarcado e o racismo, e onde a origem escravocrata ainda marca sua história de forma bastante desumana”.

Maria Emilia lembra também que estamos na contramão da construção da soberania alimentar, que mesmo uma importante política como o Pronaf em algumas de suas modalidades empurrou famílias de pequenos agricultores para a produção de commodities e que decisões como a do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de retirar a proteção de áreas de manguezais e restinga não são só um contrassenso do ponto de vista ambiental, mas também é um retrocesso na política alimentar, uma vez que retira de inúmeras famílias de comunidades tradicionais os meios de reprodução de sua existência e diminui também a diversidade de alimentos disponíveis.

Estamos em um momento de vulnerabilidade total do abastecimento interno, não só por políticas equivocadas, como também pela inação do Estado”. Segundo ela, a concentração da produção de grãos na cultura da soja e do milho, e a expansão do agronegócio precisam ser lidas em um contexto de expansão desenfreada e também do deslocamento geográfico da produção de alguns alimentos, o que nos leva a exportar soja e importar feijão da China, por exemplo. Essa inação do Estado se expressa também na ausência de estoques reguladores dos preços, que permitam ao Estado intervir em momentos como o que vivemos, de alta nos preços de itens da cesta básica.

Como nesse momento nós não temos uma atenção ao abastecimento interno, tudo é voltado para exportação, inclusive com subvenção, e sem estoque estratégico de alimentos, nós vivemos uma situação dramática, o que acentua mais ainda o flagelo da fome”.

Elvino Bohn Gass iniciou sua participação desmistificando a inflação do preço dos alimentos e afirmando a necessidade de articulação da política agrícola, de segurança alimentar e de trabalho e renda, que garanta que o agricultor mantenha seus ganhos e que a sociedade em geral tenha acesso a alimentos de qualidade.

Segundo ele, para que os pequenos agricultores produzam a um preço que não seja proibitivo para a população em geral, é necessário que existam políticas públicas que garantam mecanismos de produção com subsídios, juros baixos, assistência técnica e extensão rural, o direcionamento das compras públicas. Não existe mais Ministério do Desenvolvimento Agrário, plano específico para a agricultura familiar elaborado junto aos agricultores, nem políticas de distribuição ou de economia solidária.

Para garantia da segurança alimentar, o deputado defende que precisaríamos de uma política de abastecimento, como a que era encampada pela Conab, que mantenha estoques, controle preços e garanta a distribuição de alimentos, agindo como regulador dos preços e dos ganhos dos agricultores, de modo que haja um equilíbrio e ninguém se prejudique.

Um terceiro ponto apontado pelo deputado como fundamental é a manutenção e ampliação do acesso a emprego e renda de trabalhadores e trabalhadoras. Com o golpe de 2016, foi interrompida a bem sucedida política de aumento real do salário mínimo, retrocesso ampliado pelo aumento do desemprego e pela desvalorização do Real em relação ao Dólar, que também diminuiu o poder de compra da população em geral, aumentou o preço dos insumos agrícolas e tornou o mercado externo mais atraente para os produtores rurais, diminuindo a oferta e pressionando os preços no mercado interno.

Um bom exemplo disso é a recente alta no preço do arroz. O Brasil consome cerca de 12 milhões de toneladas de arroz por ano e tem uma produção muito próxima à autossuficiência, entretanto, a desvalorização do Real e a completa inexistência de uma política interna de abastecimento levou os produtores a exportarem cerca de um milhão de toneladas, o que agora obriga o país a importar arroz a um preço mais alto.

Assista ao programa na íntegra: