Por Henry Campos e Nahuan Gonçalves

As autoridades britânicas preparam-se para lançar o que já está sendo chamado de “primeiro desafio de infectar seres humanos”. Trata-se de injetar o vírus SARS-CoV-2 a pessoas sadias às quais foi previamente administrada uma vacinal experimental. Embora a informação não tenha sido ainda confirmada pela agência reguladora de produtos de saúde da comunidade britânica, Medicines and Health Products Regulatory Agent - MHRA, os atores envolvidos definem o projeto como iminente. Até mesmo o local onde serão realizados os testes já está definido – 24 leitos reservados para quarentena, na Whitechapel Clinic, na zona leste de Londres.

Supervisionado pelo conceituado Imperial College, de Londres, o projeto do estudo foi concebido e deverá ser realizado pela empresa hVivo, startup nascida na Queen Mary University of London e recentemente adquirida por uma companhia irlandesa. A startup já conduziu oito ensaios clínicos utilizando a mesma estratégia – notadamente sobre a gripe, o rinovírus, o vírus sincicial ou a bronquite crônica.

A vacina que será objeto de estudo foi concebida pela companhia americana de biotecnologia Codagenix e utiliza uma forma viva de coronavírus atenuado, construído em laboratório a partir de um software de engenharia genética. De acordo com o executivo-chefe da Codagenix, Robert Coleman, “Nós recodificamos uma parte do genoma do vírus para que ele seja lentamente reconhecido pelo hospedeiro humano. É como apresentar a estudantes de ensino médio americano o inglês Shakespeariano – eles poderão ler, mas terão grande dificuldade”. No modelo dessa nova versão de vírus criado pela Codagenix foram incorporadas centenas de códons, que serão de mais difícil reconhecimento pelas células humanas. Códons são agrupamentos de três aminoácidos ou três bases nitrogenadas de RNA mensageiro que exercem papel fundamental no processo de leitura e reconhecimento do vírus pelas células humanas. Os testes de laboratório sugerem que a taxa de replicação desse novo vírus atenuado seja de um milésimo daquela do vírus nativo, mas ele precisa ser visto pelo sistema imune como semelhante, esperando-se que estimule mecanismos de defesa. A utilização da estrutura completa do vírus, na vacina a ser estudada, pode suscitar uma resposta imune mais ampla do que aquela gerada por vacinas que só incluem segmentos do coronavírus em sua composição.

Essa estratégia de infectar voluntários permite diminuir o número de voluntários e de reduzir o período de observação. Assim é que, esse estudo britânico pretende recrutar de 100 a 200 voluntários. Eles receberão a vacina experimental um mês antes de serem, voluntariamente, infectados pelo SARS-CoV-2. Depois de infectados a eficácia pode ser medida em poucas semanas.

Embora o procedimento não seja novo e, na verdade, constitua a base para a invenção da vacinação, pelo médico britânico Edward Jenner, em 1776, e tenha sido mais recentemente utilizado na pesquisa de vacinas ou tratamentos contra a febre tifoide, cólera ou malária, o modelo proposto para estudo dessa vacina experimental britânica tem suscitados muitas críticas e questionamentos de ordem ética.

A adesão de voluntários, que se imaginava um problema, não se confirmou como tal – 38.000 voluntários se apresentaram, entre eles 2.000 britâncos. O editor da prestigiada revista médica, The Lancet, Richard Horton, declarou que esse desafio de infectar seres humanos impunha “que um tratamento de socorro estivesse disponível” e que “a dose do vírus a ser injetado, com toda segurança, fosse conhecida”: “nenhum desses dois critérios é atendido”. E concluiu: “A despeito dos seus avanços científicos, o desafio de injetar seres humanos com o SARS-CoV-2 não é eticamente defensável no estado atual do conhecimento”.

Enquanto nos Estados Unidos o National Institutes of Health – NIH dá seguimento à análise dessa proposta, a França manifestou, desde o dia 9 de julho, suas reservas, através do Conselho Científico do Instituto Pasteur, instituição que participa dos esforços para a descoberta de vacinas: “discutível por razões tanto científicas quanto éticas”. “A existência de modelos animais de infecção pelo SARS-CoV-2, ainda que imperfeitos, não impõe que se recorra a avaliar a proteção de jovens voluntários sadios , com resultados que não serão mais transponíveis aos principais alvos de proteção do que os de modelos animais”. O estudo não poderá falar de eficácia que possa ser estendida a pessoas idosas, obesos ou com patologias subjacentes. O Conselho reforça o argumento ético dos demais opositores: “Mesmo que o nível de risco seja baixo, não se pode descartar a possibilidade de ocorrerem acidentes com os voluntários, na ausência de tratamentos curativos confirmados para Covid-19. Por essa razão, o Comitê é contrário a que se recorra à infecção deliberada de voluntários sadios como etapa do desenvolvimento clínico de vacinas contra o SARS-CoV-2”.

Para ler mais: www.nature.com

                          www.pasteur.fr

                          www.ft.com

                          www.lemonde.com