Na quarta-feira, 29 de julho, o Observatório da Coronacrise recebeu os médicos Henry de Holanda Campos, professor e ex-reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e presidente do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM); e Denise Herdy, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em Educação nas Profissões da Saúde e membro do Conselho Diretor da ABEM; e a odontóloga Ana Estela Haddad, professora da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora adjunta do NAP Escola da Metrópole, Instituto de Estudos Avançados da USP e ex-diretora de Gestão da Educação no Ministério da Saúde (2005-2012). Os três especialistas foram convidados a discutir a educação nas profissões da saúde na pandemia e contou com mediação da economista Elen Coutinho, diretora da Fundação Perseu Abramo.

É consenso entre os professores que a pandemia encontrou o Brasil totalmente despreparado para enfrentá-la, na saúde, o fim da carreira de agentes sanitários, o vazio deixado pelo fim do programa Mais Médicos e a falta de uma ação coordenada no país, como uma federação. O cenário econômico é de restrições com a EC 95, que estipulou o teto de gastos, pondo em risco a sustentabilidade do sistema de saúde, e no plano político atitudes de abuso de autoridade e violência institucional.

O médico Henry Campos considera o maior problema neste momento no ensino a falta uma política de orientação para retomada das atividades. Isso traz para o ensino de saúde vários dilemas, primeiro é voltar ou não voltar. “Precisamos voltar resta saber quando. Não há consenso sobre indicador de que a pandemia esteja sob controle”. Menciona o artigo “As universidades nunca serão as mesmas depois do coronavírus”, que prevê várias mudanças, entre as quais o redirecionamento das atividades presenciais para atividades online, aumento de custos por aluno, no caso das escolas privadas, mensalidades e taxas, com a conseqüente maior conscientização do elitismo no ensino superior (que no Brasil já existe, devido ao ensino privado no país ser muito forte), redução no número de estudantes internacionais, reorganização no direcionamento das universidades para atuação mais relevante nas comunidades às quais serve, nos planos local, regional, nacional (isso faz parte de um mandato que a escola tem quando se instala em determinado localidade), fortalecimento das relações horizontais com melhor compreensão do processo de ensino e aprendizagem como uma via de mão dupla e maior atenção às necessidades dos estudantes, dos docentes e dos trabalhadores saúde, incentivo às áreas básicas do conhecimento em saúde com realce para o trabalho de forma articulada e intersetorial, ênfase no trabalho interdisciplinar e cooperativo. O professor chama a atenção para o fato de que são “todas essas premissas que nós pregamos e exercitamos de 2013 a 2016, quando a educação nas profissões da saúde no Brasil chegou a ser modelo no mundo e hoje nos encontramos à deriva”.

Quanto à implantação de educação a distância, Henry aponta a iniquidade no acesso digital como um dos maiores problemas. Lembra que nas universidades federais em torno de 60% são alunos de baixa renda, a grande maioria sem acesso à internet, a infraestrutura de TI precisa ser melhorada, há entre os docentes de maneira geral falta de familiaridade com a tecnologia. Questiona, muito pertinentemente, o que de fato é possível fazer a distância no ensino das profissões de saúde e alerta para a necessidade de planejamento e precauções em relação às atividades presenciais.

A professora Denise Herdy lembra em sua explanação as restrições impostas pela reforma trabalhista, com a pejotização das profissões da saúde, poucos vínculos empregatícios formais, redução de direitos, o que gera falta de perspectiva profissional. Do ponto de vista da educação, o país tem diretrizes curriculares de graduação na área da saúde bem definidas e muito adequada à realidade de saúde do país. Ao mesmo tempo houve uma ampliação acelerada de escolas de medicina, 342, um quase abandono de escolas estratégicas que foram instaladas em localidades, nas quais havia necessidade de ampliar o sistema de saúde. Conta que hoje há 35 mil vagas no primeiro ano do curso de medicina, mas com concentração em São Paulo, Minas e Rio e na residência são 26 mil vagas no primeiro ano, com 15% na medicina de família, o que é pouco em termos do que se pretendia. “Assiste-se a uma desqualificação das universidades públicas, dos centros de pesquisa e produção tecnológica o que compromete a confiança da população nessas instituições estratégicas e basilares no país”, constata. A pandemia exige um aprendizado acelerado. “Os profissionais de saúde são educadores por natureza, de pessoas, de famílias, de comunidades... É explícita a intersetorialidade entre saúde e educação, mas ao mesmo tempo a pandemia nos traz a necessidade de integração com outros setores. Portanto, não podemos pensar no retorno às atividades educacionais sem pensar na segurança de trabalhadores e dos alunos, sem pensar no transporte”. Lembra ainda que os docentes da área de saúde são profissionais de saúde. “Então, tiveram suas vidas muito impactadas com a covid, pois, ao mesmo tempo em que tinham de se organizar nas instituições em que trabalhavam mantiveram o apoio e o acompanhamento dos alunos”.

Ana Estela Haddad fala sobre o contexto em que o processo educacional acontece e que a pandemia nos impõe, traduzindo como um apocalipse digital e sanitário. Retoma no debate o questionamento sobre o quanto é possível realizar remotamente na educação de saúde. Lembra o quanto a vivência, a relação na comunidade, o espaço de atendimento às pessoas são determinantes no processo de formação do profissional. “Tudo isso está em xeque, por um lado, mas, por outro, está recolocando uma série de temas na saúde pública que foram muitas vezes relegados, como a saúde coletiva, a epidemiologia, a vigilância e saúde, hoje estão na ordem do dia e se colocam como centrais no aprendizado”, diz. A biossegurança é toda repensada neste momento. Na odontologia todo o atendimento eletivo foi suspenso, permanecendo só o emergencial. Então, relata que tudo teve de ser redimensionado e requereu muito esforço da Associação Brasileira de Ensino Odontológico para a elaboração de um documento com diretrizes para o retorno às atividades práticas, clínicas. “Com a tragédia vem o desafio da superação”. Na área da educação, da ciência e tecnologia, vimos os setores públicos, as universidades públicas, o setor de saúde, o SUS, extremamente engajados, reagir de forma articulada e de certa forma substituírem o papel de coordenação no nível federal pelas políticas públicas. “O que está sustentando são políticas públicas estruturantes construídas ao longo de décadas”.

Assista abaixo o programa na íntegra.

O Observatório da Coronacrise é o programa do Observatório da Crise do Coronavírus (clique aqui para acessar), iniciativa da Fundação Perseu Abramo para monitorar a crise sanitária e econômica gerada pela pandemia e promover esforços no sentido de atenuá-la e até de superá-la.