O Observatório da Coronacrise recebeu nessa quarta-feira, dia 15 de julho, os médicos Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, e Arthur Chioro, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-ministro da Saúde, para discutir o tema “A experiência do Comitê Científico do Consórcio Nordeste”. A mediação foi de Artur Araújo, secretário executivo do Observatório da Crise do Coronavírus.
Para Nicolelis a experiência no comitê nesse momento é única. Trata-se de um momento histórico porque no auge do negacionismo científico não só no Brasil, mas no mundo, um grupo de governadores resolveu apostar na ciência para auxiliá-los na tomada de decisão. O comitê é um órgão consultivo, que oferece suas opiniões e recomendações de forma independente, sem nenhum tipo de ingerência, e a decisão operacional cabe ao gestor de cada estado. “A experiência permite interagir com profissionais de dezenas de áreas e permitiu a criação de uma plataforma com mais de 2 mil colaboradores, o Projeto Mandacaru, cuja flor é o símbolo da busca pela vitória nessa guerra. Desde o primeiro momento manifestei que se tratava de uma guerra biológica, como a invasão de um inimigo pela costa do Brasil, que se tornou o evento mais trágico da história do Brasil, depois do genocídio dos séculos 16 e 17 dos colonizadores europeus”. Segundo o cientista, as perspectivas são muito tristes, os números de hoje devem dobrar até o fim do ano no mínimo. A pandemia expôs todas as fragilidades do país e o comitê tem o reconhecimento da imprensa internacional, além de servir de modelo para o Panamá.
O ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro, avalia que o consórcio e o comitê científico expressam uma resposta política vigorosa dos governadores de reafirmar o seu compromisso com a cidadania, uma visão republicana da gestão pública, uma valorização da comunidade científica, e uma visão democrática, quando conclamam diferentes segmentos da sociedade a contribuir nesse momento delicado. Segundo seu diagnóstico: “O mundo estava profundamente doente. Os sistemas nacionais de saúde no mundo vinham sofrendo ataques da lógica da austeridade fiscal. O sistema de ciência e tecnologia vinha sendo bombardeado a partir da mesma lógica. Essa restauração da ordem conservadora, a partir das décadas de 1980 e 1990, no mundo, numa perspectiva absolutamente insustentável, nos levou a essa situação”. O momento dramático exigente de lideranças que entendam uma perspectiva de guerra, que exige a unidade de esforços, a conclamação em torno de um objetivo comum, priorização de recursos etc., “temos talvez o mais despreparado presidente da história da República”, diz o sanitarista.
Para Chioro se o consórcio já era uma iniciativa absolutamente louvável transformou-se numa espécie de autoridade sanitária paralela junto aos governos dos estados, secretários estaduais e municipais de saúde porque vivemos a ausência do ente que teria a responsabilidade na perspectiva do pacto federativo de fazer a coordenação do sistema nacional de saúde. Segundo ele, o “Ministério da Saúde está literalmente entregue a um intendente, um general – com todo respeito às Forças Armadas –, que vem com a responsabilidade muito concreta de fazer o que os antecessores (Mandetta e Teich) não deram conta: organizar a capacidade de resposta e apoio do governo federal para que os municípios e estados pudessem organizar e executar na ponta a tarefa de enfrentamento da pandemia. Alguém especialista em logística não foi capaz de, passados 60 dias, organizar qualquer tipo de suporte para que estados e município, a rede nacional de laboratórios pública pudesse honrar a necessidade diária de 70 mil exames de RT-PCR, fundamental para o diagnóstico da doença”. Chioro conclui que a lógica de militarização no Ministério da Saúde está em guardar o posto para segurar o impeachment do presidente, muito provável se consideramos o tamanho da crise social que o país está vivendo, pois a sociedade exigirá um governo de reconstrução nacional, além da manutenção da lógica da política econômica sobre o ministério.
Provocado a falar sobre a onda negacionista que avança no atual momento, Nicolelis considera que a batalha da comunicação hoje é tão ou mais importante para ganhar a guerra quanto a batalha sanitária. “O negacionismo científico, o movimento antivacina, é um inimigo letal. Não é apenas uma disputa intelectual, filosófica. No caso da pandemia, no Brasil, onde o negacionismo tem muito de sua origem nos EUA, ele se manifestou de várias maneiras, uma delas foi com o uso da cloroquina. No Brasil há pandemônio e a pandemia. Há a disputa sanitária científica para combater o vírus, é preciso lidar com o pandemônio institucional, porque não há recursos suficientes para ficar em casa, por exemplo, e a batalha da comunicação”. Segundo o cientista, boa parte do tempo é usada para desmentir desinformação, mais ainda do que fornecer informação real. As fake news não ocorreram somente nas eleições brasileiras e do Trump, elas se transformaram no modus operandi de um movimento que tem ramificações inclusive nas áreas de saúde e ciências. “O interesse econômico penetrou até na ciência e corrompeu certos setores”.
Para Chioro, a centralização da política de saúde, como foi no país até 1988, seria desastrosa, pois a heterogeneidade regional no Brasil exige uma arquitetura de gestão muito peculiar. Em nenhum lugar do mundo se estabeleceu autonomia administrativa entre os três entes federados e a delegação da construção política a partir de um processo de pactuação. “Imagine se fosse tudo federal neste momento, o desastre que estaríamos vivendo?” Afinal graças ao modelo em vigor no Brasil foi possível que os governadores assumissem a frente nesse processo.
Assista ao Observatório da Coronacrise na íntegra: