Até recentemente, muitos especialistas profetizavam um futuro urbano. A pandemia deixou este futuro menos claro. O coronavírus causou a morte de centenas de milhares de citadinos. Tanto aquelas pessoas ricas que têm uma segunda residência como os trabalhadores migrantes deixaram as cidades para o interior. Nas cidades dos Estados Unidos, os maiores protestos anti-racistas de uma geração foram combatidos pelo Estado com níveis chocantes de violência e crueldade. Essas emergências duplas - o novo coronavírus e a violência de estado racista - destacaram a brutalidade da desigualdade urbana contemporânea.
A reação à pandemia revela que as estruturas que sustentam as cidades desiguais são alteráveis.
As cidades estão sendo de novo retratadas como ameaças à saúde pública e à ordem social. Alguns comentaristas acreditam que haverá um êxodo em massa das cidades, uma tendência que seria acelerada pelo home office e o trabalho à distância, e o fato de que, cidades grande e densas já não são mais viáveis. Outros urbanistas argumentam que as cidades podem ser redimidas através de pequenas alterações dos ambientes urbanos, como a introdução de calçadões, a mudança de códigos de zoneamento ou a implementação de tecnologias, propiciando "cidades inteligentes".
Ambas estas posições são incorretas. Em vez de nos perguntarmos se as cidades vão continuar a existir, deveríamos perguntar, à luz da pandemia, para quem e para que existem as cidades.
Não há uma relação simples entre a urbanização e as doenças infecciosas. Estudiosos rastrearam como interações nas periferias urbano-rural criam novas vulnerabilidades às doenças. Porém, um estudo publicado em 2017 que examinou 60 países, descobriu que, no geral, os ônus das doenças infecciosas caem com a urbanização. É fato que as epidemias devastam as comunidades urbanas marginalizadas de tempos em tempos. Entretanto, as cidades também levaram a novas políticas sanitárias, reformas habitacionais e movimentos sociais que ajudam seus habitantes a combater e sobreviver as doenças.
Boa parte da preocupação sobre as cidades durante a pandemia do coronavírus se concentra no temor de que a densidade populacional possa aumentar o risco de contágio. Mas densidade e superlotação não são as mesmas coisas. A superlotação é resultado da desigualdade e da crise habitacional e não é um fator inalterável da vida urbana.
Se as projeções sobre o fim da urbanização são uma distração, o argumento oposto - que as cidades podem continuar como antes, somente com algumas opções a mais para jantar ao ar livre - é igualmente errônea. Tanto a pandemia e as lutas travadas nas cidades americanas expõe um fato inescapável sobre a vida urbana: as cidades privatizadas, financeirizadas e altamente desiguais não funcionam para a maioria dos seus habitantes. As cidades ainda têm futuro, mas neste futuro n’ao cabe mais o tipo de centro urbano que se desenvolveu predominantemente mundo afora.
Em lugares como Londres e Nova Iorque, o modelo de desenvolvimento que predominou nas últimas décadas servem às necessidades das elites, empresas poderosas e investidores ricos. Estas cidades estão inundadas com residências de luxo, prédios de escritórios caros, novos distritos empresariais e equipamentos para a chamada "classe criativa" e áreas aspiracionais como o parque "High Line" em Nova Iorque. O espaço urbano foi otimizado para a extração de aluguel, especulação imobiliária e gentrificação. Os governos buscam a obtenção do lucro privado e priorizam os gostos da classe média, e são aplaudidos pelos urbanistas por isso - enquanto permitem a deterioração dos serviços sociais, das instituições públicas e a intensificação das desigualdades.
Mesmo antes da pandemia, este paradigma já era um desastre. A intersecção de uma série de crises fez com que, exceto para os ricos, a vida urbana já era cada vez mais difícil. As moradias se tornam inacessíveis e inseguras. A informalidade do trabalho aumentou, os salários estagnaram, fazendo com que muitos trabalhadores fossem incapazes de manter um padrão de vida adequado. Apesar das pretensões de multiculturalismo, a estrutura do poder branco perpetua desigualdades racializadas em quase todos os aspectos da vida econômica e política, incluindo moradia, saúde e segurança pública.
É este modelo urbano que se mostrou altamente vulnerável à pandemia do Covid-19. Os trabalhadores essenciais e mal-pagos como as enfermeiras e as funcionárias de supermercado já não conseguem morar nos bairros centrais, ameaçando setores econômicos e sociais chave. O auto-isolamento é impossível em moradias superlotadas, o que ajuda a espalhar o vírus. As áreas periféricas são desproporcionalmente afetadas pela poluição do ar, que se traduz em altas taxas de mortalidade nas comunidades negras de baixa renda.
Para muitos da classe trabalhadora, o custo e precariedade do dia-a-dia tornam a quarentena um luxo que eles mal podem se permitir. Portanto, bairros predominantemente operários em cidades extremamente desiguais – como Newham em Londres e Bronx em Nova Iorque - foram duramente atingidas pelo coronavírus. Comunidades urbanas exploradas e desprovidas sofreram com epidemias anteriores e agora carregam o maior ônus da crise atual.
Se a pandemia é uma prova de estresse para as cidades moldadas pelo capitalismo financializado, elas foram terrivelmente reprovadas. Mas nada disso é inerente à vida urbana. É o resultado de arranjos políticos e econômicos que podem, com suficiente pressão política, ser modificados.
As cidades precisam mudar radicalmente - mas não da maneira que estão promovendo os céticos da densidade ou os urbanistas profissionais. Pelo contrário, elas devem ser mais igualitárias, mais democráticas e mais capazes de servir às necessidades humanas atuais. O desenvolvimento urbano deve focar na provisão do bem-estar social, na infraestrutura de saúde, nos serviços municipais, no transporte público descarbonizado, na igualdade racial e assegurar moradias para todos. A única solução às crises urbanas que enfrentamos é promover um novo rumo para as cidades que reverta as desigualdades que esta pandemia expõe.
As respostas emergenciais ao coronavírus revelam que é possível fazer mudanças rápidas. Em bairros no mundo inteiro, surgem redes de apoio mútuo que coordenam tudo: desde a compra de alimentos e produtos essenciais à greves de aluguel. Algumas cidades agiram rapidamente para acolher os sem-teto, evitar os despejos, re-ajustar padrões de trânsito e prestar cuidados de saúde essenciais. A reação à pandemia mostra que é possível alterar as estruturas que mantém as desigualdades urbanas - e que estas podem ser alteradas mais rapidamente do que supúnhamos.
À medida que as cidades começam a mudar como resposta à pandemia, é essencial que não retornemos à trajetória anterior. A ameaça concreta não é que a vida urbana desapareça, mas que a desigualdade e a injustiça do status quo urbano persista.
(Artigo de David Madden, sociólogo e co-diretor do Programa Urbano na London School of Economics, para o The Guardian. Este artigo foi traduzido por Julia Felmanas)