As trabalhadoras da saúde são majoritariamente mulheres. Na enfermagem (enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, obstetrizes), quase 85% são mulheres[1]. Na medicina, as mulheres respondem por 45,6% dos profissionais em exercício mas entre os profissionais menores de 34 anos as mulheres já são maioria, demonstrando uma “feminilização” da profissão[2]. Além disso, farmacêuticas e suas auxiliares, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogas, fonoaudiólogas, dentistas e auxiliares, nutricionistas e terapeutas ocupacionais também são em sua maioria mulheres e cotidianamente enfrentam a epidemia colaborando em suas áreas, aprendendo novas habilidades e apoiando as colegas.
Essas mulheres, às quais acrescento e destaco as agentes comunitárias de saúde (90% mulheres) e as trabalhadoras da limpeza dos serviços de saúde (muitas vezes funcionárias de empresas terceirizadas e invisibilizadas até para receber os equipamentos de proteção individual embora, por trabalhar em contato com secreções, sejam de alto risco para adoecer), estão na linha de frente do combate à epidemia.
Elas não são heroínas nem tem nenhuma vocação ou missão que as torne distintas dos demais trabalhadores do país, mas trabalham com algo muito especial para a vida humana: o cuidado.
Quando pensamos na linha de frente da pandemia, muitas pessoas visualizam um médico, rico, branco, estudado e mestre no manejo de sofisticadas máquinas e instrumentos de combate às doenças. Queremos falar aqui, como médicas sanitaristas com larga experiência na rede pública de saúde, sobre o cotidiano das mulheres que são a maioria dos que estão todos os dias enfrentando essa pandemia nos diversos pontos do sistema de saúde.
Essas trabalhadoras não precisam apenas de palmas e reconhecimento. Elas também necessitam apoio e suporte material e emocional.
O Cofen estimou, em 05/05/2020, 10.000 casos e 73 óbitos por Covid-19 só entre as trabalhadoras de enfermagem no Brasil[3], mais do que Estados Unidos, Itália e Espanha, países fortemente afetados pela epidemia e com mais mortes notificados do que o Brasil[4]. Infelizmente esse dado não está detalhado por categoria profissional e cor da pele. Mas é legítimo supor que as trabalhadoras menos qualificadas e com menores salários estejam sendo desproporcionalmente afetadas, como tem sido o padrão dessa pandemia. Nos Estados Unidos, a população negra e hispânica, pobre e que não possuem nenhum Seguro de Saúde, tem sido desproporcionalmente vítima de mortes pela doença. Na cidade de São Paulo as mortes concentram-se desproporcionalmente na periferia da cidade, também entre a população pobre, negra, feminina que não possuem nenhum plano ou seguro de saúde privado.
O cotidiano dos profissionais de saúde na atenção primária, serviços de emergência e nos hospitais foi drasticamente alterada. Os equipamentos individuais de proteção (máscara, gorro, óculos ou “face shield”, aventais descartáveis) tem que ser colocados e retirados todo o dia, numa rotina que exige muita atenção e treinamento. Os treinamentos tem sido rápidos, precários ou inexistentes e os equipamentos escassos ou de qualidade precária, o que traz enorme aflição para os profissionais. A oferta de testes para que os profissionais possam saber se tem anticorpos ou a doença é nula, ou disponível apenas para quem tem sintomas, o que contraria recomendações internacionais de priorizar os profissionais da saúde na testagem, para poder manter essa população o mais segura possível e em condições de trabalhar para salvar vidas. Ainda assim, muitos profissionais são afastados por suspeita da doença, o trabalho aumenta para quem fica e todas estão sobrecarregadas. Os momentos de café e descanso dentro das unidades de saúde tornaram-se perigosos, os pacientes tornaram-se perigosos, a convivência com o aumento de casos de pacientes graves e com falta de ar e o risco de vida sempre presente pode ser assustadora. No entanto, poder cuidar, confortar e aliviar a dor, a febre e a falta de ar é recompensador, e essas profissionais tem dedicado seus esforços para acalmar, cuidar, visitar, educar, medicar, confortar e colocar os pacientes em contato com seus familiares, por vezes usando seus próprios celulares e carros para isso. Elas também localizam os casos, educam para o isolamento e buscam os contatos, para diminuir os casos novos. O contato com a miséria, fome, desemprego, e todas as consequências sociais da epidemia também é especialmente duro para quem sabe o quanto a vulnerabilidade afeta a saúde e está literalmente cara a cara com o problema. Além disso, a impotência para enfrentar esses problemas estruturais também cobra o seu preço para todas aquelas que são dedicadas ao cuidado e criam vínculos com os pacientes, suas famílias e as populações atendidas. Outras patologias e sofrimentos não pararam pela Covid-19, e seguem sendo também objeto de atenção e cuidado em serviços sobrecarregados e muitas vezes abandonados pelos níveis superiores de gestão.
Depois da rotina difícil no trabalho, muitas dessas trabalhadoras pegam transporte público, no qual são expostas ao vírus, e chegam em casa para passar por outra situação muito difícil. Por estarem expostas durante o turno de trabalho, são potenciais transmissoras para suas famílias. Muitas têm pais idosos, parceiros e parceiras em situação de risco. Elas precisam ser disciplinadas, chegar e ir direto ao banho, botar a roupa para lavar e não abraçar e beijar quem elas amam. Essa rotina, por semanas e meses, acaba por ser muito difícil de cumprir e traz muita ansiedade. As trabalhadoras da saúde precisam todo o dia lembrar que não podem beijar, abraçar ou ter relação sexual com seus companheiros ou companheiras, nem abraçar e beijar seus filhos e pais, e quando isso acontece elas sentem muita culpa. Contaminar quem você ama pode ser pior do que ter a doença para muitas.
Elas também têm que lidar com a limpeza da casa e o cuidado de familiares idosos ou doentes e das crianças que não vão à escola sem estarem afastadas do trabalho. A divisão do trabalho doméstico com os homens que vivem na casa muitas vezes segue a tradicional divisão de gênero na qual a responsabilidade recai majoritariamente ou exclusivamente sobre a mulher.
As trabalhadoras da saúde, em sua maioria, têm prazer em seu trabalho e cuidar pode ser muito gratificante. No entanto, a necessidade de valorização dessas trabalhadoras, apoio para equipamentos individuais de proteção em quantidade necessária e treinamento adequado, oferta ampla de testagem para elas e seus familiares, carga de trabalho compatível, apoio e oferta de suporte emocional e suficiente número de trabalhadoras para a demanda crescente são cruciais. É muito duro para todas as profissionais de saúde desse país assistir às revoltantes cenas de agressividade contra elas como a que houve em Brasília, quando protestavam justamente pelas mortes de profissionais da enfermagem, ou quando são agredidas em transporte público por serem profissionais do cuidado. A pandemia agudiza desigualdades e injustiças pré-existentes: é crucial repensarmos o cuidado como responsabilidade de todos e todas e valorizarmos as trabalhadoras mais vulneráveis, as pobres, as negras que enfrentam com a determinação e força habitual essa pandemia, mas necessitam muito maior atenção, respeito e cuidado para podermos oferecer um cuidado integral a toda a nossa população.
[1] http://www.cofen.gov.br/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem_31258.html
[2] https://pebmed.com.br/proporcao-de-mulheres-e-jovens-na-populacao-medica-cresce-no-brasil-demografia-medica-2018
[3] http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br
[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/brasil-ja-perdeu-mais-profissionais-de-enfermagem-para-o-coronavirus-do-que-italia-e-espanha-juntas.htm
Núcleo de Acompanhamento das Políticas Públicas para as mulheres (NAPP Mulher). Texto de Ana Flávia de Oliveira e Eleonora Menicucci. Agradecimento: Ana Emilia Leal e Stephanie Pereira