Democracia em questão
Boaventura de Sousa Santos, ao discorrer sobre as concepções hegemônicas e contra-hegemônicas da democracia, em A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (Intrínseca), conta que o debate a partir dos anos 1980 demonizou as experiências que afrontavam a democracia liberal, cuja característica principal é um politicismo de costas para os compromissos sociais. A democracia se restringiria à defesa das “regras do jogo” e dos “procedimentos formais”, com respeito à periodicidade eleitoral e à vitória do candidato mais votado em pleitos competitivos. A democracia seria um regime “em que governantes deixam o poder quando perdem as eleições”, na síntese de Adam Przeworski, em Crises da Democracia (Zahar). Embora pareça um truísmo, a assertiva não é uma obviedade quando a cadeira presidencial é ocupada por representantes da extrema-direita (Trump, Bolsonaro).
No início do atual século, no entanto, outras modalidades de democracia trouxeram à tona o pluralismo e a diversidade. Boaventura cunhou o conceito “demodiversidade” para designar os experimentos ensaiados pelos governos progressistas da América Latina, à época: Brasil, Venezuela, Argentina, Equador, Bolívia e Uruguai. As inúmeras discussões publicizadas então não estiveram à altura do significado histórico daqueles Estados colocados em movimento na direção de um novo status quo. Na década seguinte, a noção de democracia que prevaleceu no continente latino-americano foi de baixa ou baixíssima intensidade, até se confundir “com a antidemocracia”. O fascismo social já ameaçava se tornar um fascismo político. A democracia que foi uma bandeira revolucionária no século XIX, e passou a ser um slogan publicitário no século XX, desceu a ladeira do autoritarismo bronco no século XXI.
A participação e a soberania popular foram classificadas, de modo pejorativo, como práticas “populistas” quanto mais se consolidava a novíssima razão do mundo, com os valores do livre mercado e do hiperindividualismo. O regime democrático, antes um ambicionado objeto de desejo para a regulação e a emancipação sociais, que apontava a necessidade de condições estruturais para que se realizasse, aos poucos deixava entrever as antinomias no estágio neoliberal do capitalismo e, mesmo, grandes incompatibilidades. O que o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, denominou de “fundamentalismo de mercado” cobria com o pensamento único totalitário a cobiça das elites do poder no mundo globalizado.
As condições assinaladas por Barrington Moore, em As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia (Edições 70), para a constituição de sociedades sob a égide da democracia, tais como o papel do Estado no projeto de modernização para a inclusão das classes agrárias e a relação dos setores rurais com os setores urbanos, cederam lugar às críticas provenientes:
a) dos enfants terribles porque consideraram que o importante não era saber se um país estava ou não preparado para a democracia, mas partir do princípio de que é a democracia quem prepara o país para um futuro com menos desigualdades e mais justiça social;
b) do establishment porque, com base no Consenso de Washington, reputou indesejáveis as possibilidades redistributivas da democracia, uma vez que a igualdade não deveria ser o ideal perseguido pelos governos nacionais, a desigualdade sim era o motor do crescimento.
A concentração (e ocultação) de riquezas, bem como o aumento exponencial de desigualdades regionais (Norte/Sul) e sociais (interclasses) era justificada pela ideologia da meritocracia, que condenava os pobres pela pobreza, e pelas “políticas de choque” que para fomentar e, posteriormente, debelar turbulências desenvolvem “políticas extraordinárias” para “suspender algumas ou todas as normas democráticas e, por fim, levar a cabo a lista de desejos das corporações o mais rápido possível”, sublinha Naomi Klein, em Não Basta Dizer Não (Bertrand Brasil). Golpes institucionais, crises econômicas e desarranjos do mercado têm cumprido esta função desde os anos 1970 (Chile, Rússia), com muito sucesso. A democratização ou seu revés, a ditadura, transcorrem à revelia das variações centradas na atuação do campesinato ou no ritmo da urbanização. Quer à esquerda, quer à direita.
A concepção hegemônica de democracia foi desenhada com as cores do enaltecimento da institucionalização mais do que da mobilização e, da apatia política, mais do que do engajamento político. Com o confronto entre projetos programáticos substituídos pelos embates eleitorais despolitizados, pois personalizados. Com o pluralismo transfigurado nas subdivisões no ninho dos poderosos (vide “terceira via”). Mas não evitou a deterioração da democracia liberal; aprofundou sua desqualificação a ponto de fazer corrente o mote “não me representa”, em referência à política partidária convencional. Nascia a antipolítica.
Assim, entre nós, abriram-se as portas das patologias aos moldes dos deputados federal Daniel Silveira (PTB/RJ) e estadual Rodrigo Amorim (PSL), que gozam em fotos com a placa quebrada da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada por milícias organizadas. Para não mencionar os inomináveis membros da famiglia que habita o sinistro condomínio “Vivendas da Barra da Tijuca”, no Rio de Janeiro. Ou o famigerado parlamentar Arthur do Val (Podemos/SP), cognome “Mamãe Falei”, que expôs o nojento sexismo mesclado com o nauseante racismo social ao comentar que “as refugiadas ucranianas são fáceis porque são pobres”. A visão elitista de democracia celebrada por décadas cevou o iliberalismo na onda crescente do neofascismo, que hoje se esparrama nos dois hemisférios como um câncer.
O sistema de representação, sobretudo em sociedades com desigualdades abissais, não contempla as carências e as reivindicações do povo. Aliás, o encarecimento absurdo das campanhas à captura dos eleitores tende a excluir, dentre outros segmentos como os indígenas e os afrodescendentes, as mulheres – que perfazem a maioria da população. Na Câmara dos Deputados, a sub-representação da presença feminina é de 15%. Apenas um estado é governado por mulher. Três estados não possuem nenhuma deputada federal. Elas comandam 12% das prefeituras e 16% das vagas nas Câmaras de Vereadores. 17% dos municípios não elegeram nenhuma vereadora em 2020. O impeachment, sem crime de responsabilidade, da primeira mulher eleita presidenta é um símbolo do patriarcalismo na política brasileira. Que o vice usurpador e indecoroso tenha composto, na sequência, um governo lesa-pátria com ministérios formados só por homens – confirma a motivação subjacente do golpismo misógino in extremis contra Dilma Rousseff. E contra o Brasil.
O procedimentalismo, as igualdades formais e os direitos cívicos e políticos não chegam para materializar as potencialidades socializantes da democracia junto às camadas que mais poderiam se beneficiar da igualitarização. “Daí a necessidade de conceber a democracia como a gramática social que rompe com o autoritarismo, o patrimonialismo, o monolitismo cultural, o não reconhecimento da diferença; tal gramática social implica um enorme investimento nos direitos econômicos, sociais e culturais”. Se a diferença inferioriza, temos o direito de ser iguais. Se a igualdade descaracteriza, temos o direito de ser diferentes. “Nas sociedades contemporâneas estruturadas pelos três grandes tipos de dominação moderna, capitalismo, colonialismo e patriarcado, a democracia contra-hegemônica precisa ter intencionalidade anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal”, conclui Sousa Santos.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
— Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.