A invasão do nosso Capitólio
Artigo de Marcelo Zero
A invasão do Capitólio por milícias da extrema-direita, algumas delas armadas, embora chocante, é apenas a culminação de um longo processo de ataque à democracia e suas instituições que começou com ascensão do celerado ao poder.
A última vez que o Legislativo norte-americano sofreu ataque dessa forma foi em 1814, na guerra contra a Inglaterra. Os exércitos ingleses entraram em Washington e queimaram boa parte da cidade, inclusive o prédio do Capitólio da época, obrigando o presidente James Madison e os legisladores a fugir da cidade.
Dessa vez, o ataque não veio de um inimigo externo. Veio do próprio presidente Trump, que insuflou as milícias a marcharem contra o Capitólio, alegando, sem nenhuma base fática, como fez Aécio Neves no Brasil, que a eleição fora fraudada.
Pois bem, em primeiro lugar, é necessário dar nome aos bois.
Trump é fascista. Não é simplesmente “autoritário” ou “populista”, categoria vazia de real significado.
Sei que muitos relutam em usar esse conceito, dadas às singularidades históricas do fascismo e do nazismo. Mas, em sentido lato, o chamado trumpismo, assim como o bolsonarismo, têm inquietantes similitudes com aqueles fenômenos políticos históricos.
A mobilização de milícias armadas, o recurso “goebeliano” às reiteradas e sistemáticas mentiras, o discurso de ódio contra supostos inimigos internos, a estratégia de enfrentamento permanente, a identificação de adversários como inimigos a serem eliminados, o moralismo conservador expresso na luta contra corruptos, pedófilos etc., o credo num ideal de pureza racial e cultural, o nacionalismo xenófobo, o darwinismo social, o racismo, o culto à antipolítica e, sobretudo, o desprezo à democracia e suas instituições e a valorização da força como instrumento legítimo de ação política e mesmo “jurídica”, constituem quadro comum que perpassa momentos históricos diferentes e sociedades distintas.
Dê-se o nome que se quiser dar, protofascismo, ur-fascismo (Umberto Eco), fascismo neoliberal, neofascismo etc., o fato evidente é que Trump, Bolsonaro e outros fazem parte, mutatis mutandis, da mesma turma de Mussolini e Hitler.
Em segundo, o fascismo não está em retirada, não foi debilitado. Embora Trump, de fato, tenha saído bastante chamuscado do episódio da invasão e enfrente, agora, relativo isolamento até mesmo dentro de seu partido, o trumpismo e o neofascismo norte-americano continuam fortes. O desastrado putsch de Hitler, em 1923, levou-o à cadeia, mas depois passou a ser comemorado com uma grande data nacional da Alemanha.
As análises que falam de “estertores” do supremacismo branco não têm o menor amparo nos dados.
É preciso considerar que Biden ganhou as eleições de forma apertada, muito mais apertada do que o previsto. As recentes vitórias dos democratas nas eleições para o Senado no estado da Georgia, saudadas por incautos como mudanças paradigmáticas, também se deram por margens extremamente estreitas. Isso demonstra que a extrema-direita ainda tem muito apoio popular, nos EUA.
O mesmo ocorre no Brasil, onde Bolsonaro, apesar do governo desastroso em todas as esferas, mantém boa popularidade.
Asim sendo, os EUA, como o Brasil, continuarão divididos e muito polarizados. Embora, no curto prazo, Biden possa ganhar alguma trégua dos republicanos moderados, em razão do choque causado pela invasão do Capitólio, a tendência é a de que a extrema-direita, associada ou não à Trump, mantenha-se mobilizada e passe a fazer feroz oposição ao governo dos democratas.
Afinal, o combustível do neofascismo é o mesmo do fascismo clássico: a profunda crise econômica, social e política.
A correlação entre os dois fenômenos verifica-se até mesmo em meras mudanças conjunturais. Nas eleições de 1928, com a hiperinflação extinta e a economia alemã voltando a crescer, Hitler, que fora a grande sensação política nos anos de crise, teve menos de 3% dos votos. Já nas eleições de 1932, com a economia alemã sentindo muito os efeitos da debacle de 1929, o partido nazista obteve quase 37% dos votos, abrindo o caminho para que Hitler chegasse ao poder.
O problema, para Biden, é que a crise atual, iniciada em 2009, foi agravada pela pandemia e não será superada tão cedo. Ele corre o risco, portanto, de fazer um governo decepcionante, muito aquém das expectativas geradas.
O legado destrutivo de Trump é a herança de Biden. Segundo o Gallup, apenas 10% dos eleitores republicanos acreditam na imprensa e têm confiança no processo eleitoral. É o que dá, quando se aposta na antipolítica. Na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, os nazistas chamavam a imprensa de Lügenpresse (imprensa mentirosa) e Hitler se referia aos políticos e legisladores como “galinhas cacarejantes”. Qualquer semelhança com Trump e Bolsonaro não é mera coincidência. É método. Nesse contexto, os vilões de hoje poderão se converter nos heróis de amanhã.
A superação do perigo neofascista passa não apenas pelo enfrentamento desse legado destrutivo, mas, sobretudo, pela superação do neoliberalismo e da acumulação capitalista financeirizada, modelo que levou o mundo à presente crise e que o mantém na crise.
Ao contrário do que dizem nossos analistas ligados ao “mercado”, essa ubíqua hipostasia, o perigo à democracia não é gerado por políticas econômicas “populistas”, mas sim pelas políticas supostamente “racionais e sólidas”, que geram desigualdade, desemprego, extinção de direitos, corrosão do Estado de Bem-Estar, ressentimento, medo e, em última, descrença nas instituições democráticas.
Trump e a invasão do Capitólio eram coisas inimagináveis, antes da crescente falência do neoliberalismo. Tornaram-se dolorosas realidades.
Alguns argumentam que, na realidade, esses regimes da extrema-direita, como o de Trump e o de Bolsonaro, são formas políticas bastante funcionais para o capitalismo em crise. Como aconteceu na Alemanha na década de 1930, eles mantêm o “inimigo principal” (a esquerda, os sindicatos e os movimentos populares) na defensiva, afastando, dessa forma, a ameaça de mudanças que comprometam os interesses maiores das classes dominantes.
As classes dominantes da Alemanha acabaram apostando suas fichas no nazismo, com o intuito de conter a “ameaça comunista”. Até o colapso causado pela guerra, esse foi um matrimônio bastante feliz. Brecht chegou a afirmar que o fascismo era a “verdade” do capitalismo. Era a forma política verdadeira e desavergonhada do capitalismo.
O mesmo aconteceu no Brasil, onde as forças que hoje se dizem defensoras da democracia, apoiaram Bolsonaro para impedir a vitória do “inimigo principal”. Em nosso país, o fascismo não pode ser dissociado do antipetismo. Se quiserem combater de verdade o primeiro, terão que se desvencilhar do segundo.
Nos EUA, houve muita omissão e negligência, no que tange à ascensão de Trump ao poder. O Partido Republicano, desesperado para voltar ao poder, abriu espaço para um aventureiro, uma celebridade midiática, um escroque da especulação imobiliária, um perigoso ególatra claramente incapaz de governar com um mínimo de responsabilidade. Também houve omissão na própria eleição de 2016, que foi ganha graças à grosseira manipulação da opinião pública via disparos de fake news personalizadas nas redes sociais, expediente repetido no Brasil, em 2018.
Trump alegou, após eleito em 2016, como Bolsonaro, que teve muitos mais votos do que os computados, mas que fora “roubado” em muitos estados. Já ensaiava a permanência no poder a quaisquer custos. Plantou lá o ovo da serpente e o chocou durante anos.
Só após anos e anos de mentiras grosseiras, de fake news, de um assombroso discurso de ódio, de manifestações racistas e homofóbicas, de ataques à democracia e ao sistema eleitoral e da invasão do Capitólio, o Twitter resolveu calar o novo Goebbels. Reação tardia e insuficiente.
Não bastasse, as forças de segurança, que foram acionadas aos milhares para deter as manifestações pacificas do Black Lives Matter, sumiram no dia do putsch de Trump.
Na realidade, os EUA poderiam ter evitado todo esse vexame em dezembro de 2019, quando o Partido Democrata apresentou pedido de impeachment de Trump por abuso de poder. O pedido foi aprovado na Câmara, mas foi rejeitado no Senado, em fevereiro de 2020.
Diga-se de passagem, Rodrigo Maia, eleito pela mídia conservadora como o novo farol da democracia brasileira, até agora não deu seguimento algum às dezenas de pedidos de impeachment do admirador do torturador Ustra. Talvez esteja esperando pela invasão do nosso Capitólio. Mais provavelmente, não quer atrapalhar a implantação da agenda antissocial e antidemocrática de Guedes e da “Pinguela Para o Passado”. Afinal, o golpe de 2016 foi feito com tal finalidade.
Isso levanta sérias dúvidas sobre a capacidade e a vontade das forças conservadoras de realmente enfrentarem o fascismo que se fortalece na crise.
Nos EUA, a Seção 4 da 25ª Emenda deveria ter sido usada de imediato para destituir Trump. Não foi. Mesmo com a invasão armada e com cinco mortos. De forma chocante, 147 membros do Congresso, com os cadáveres ainda esfriando, votaram favoravelmente à revisão dos resultados eleitorais, jogando lenha na fogueira insensata do questionamento sem base da lisura do pleito.
O mais provável é que a reação ao putsch de Trump se restrinja à prisão dos bagrinhos ridículos que tiraram selfies para atestar seus próprios crimes. O anunciado impeachment, se ocorrer, deverá parar no Senado, como em 2020.
Biden deverá apostar na conciliação com o inconciliável. No campo econômico, não vai implantar o New Green Deal ambicioso de Bernie Sanders. Não quer parecer “socialista”.
No Brasil, o matrimônio entre o “centro” político e Bolsonaro, embora conflituoso, deverá ser mantido. Afinal, ninguém quer atrapalhar a agenda da Pinguela para o Passado. Se bobear, unirão forças de novo, em 2022, para derrotar o inimigo principal.
O problema é que, até lá, poderá ser tarde demais para reagir.
Por aqui, nossos fascistas já cogitaram seriamente invadir o STF, insuflados que foram pelo próprio presidente da República.
A depender das circunstâncias, que tendem a piorar, eles poderão ser incitados a invadir o nosso Capitólio.
E não vai precisar de muita gente ornada com chifres. Como já foi vaticinado, basta um jipe, um cabo e um soldado.
Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor técnico da Liderança do PT no Senado