Em 2019 a Editora Boitempo lançou um livro da maior importância, cujo autor é acompanhado pelos mais nobres predicados, sobre o qual preciso fazer alguns comentários para algumas questões não passarem em branco, já que a obra chega em um momento em que o debate sobre violência e racismo nunca esteve tão espraiado pela sociedade brasileira.

Este semestre, em dois seminários acadêmicos, em duas universidades diferentes, em dois estados diferentes, um sobre relações raciais e outro sobre violência e segurança pública, eu participei de mesas com a mesma temática: violência e racismo. Muito me esforcei para me equiparar às pessoas que dividiam a palavra comigo, eram apresentações frutos de trabalhos e recentemente desenvolvidos. O que foi apresentado nas duas ocasiões não seria possível de acontecer quatro, cinco anos atrás.

Apesar de ser um tema muito conhecido do ativismo negro de há pelos duas gerações de militantes, a ideia de violência racial ou da violência de estado contra negros nunca teve tanta reverberação nos espaços acadêmicos ao ponto de podermos juntar pessoas diferentes, de diferentes instituições do Brasil para discorrer sobre trabalhos que estão sendo desenvolvidos ao mesmo tempo sobre polícia, prisão, racismo institucional, sistema judiciário, genocídio da população negra.

Isso significa que as coisas estão andando, com dificuldade, poucos recursos, boicotes, narizes tortos, mas há coisas que têm sido transformadas. Justiça seja feita, uma das principais publicações sobre pesquisa da área é o livro “Elemento Suspeito”, da Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, que fala sobre uma pesquisa sobre a atividade policial do Rio de Janeiro. É um marco pela tema, pela inovação, pela profundidade; além da discussão dos resultados da pesquisa, a obra traz ainda dois artigos, um de Marcelo Paixão, proeminente economista brasileiro, falando sobre o modelo de relações raciais do Brasil, um outro de Paul Amar, professor da Universidade da Califórnia, sobre termos da luta contra o racismo, como racismo institucional, filtragem racial e cegueira racial. O prefácio é de Luiz Eduardo Soares.

Luiz Eduardo Soares, o do início deste texto, que acaba de lançar mais um livro, “Desmilitarizar – Segurança Pública e Direitos Humanos”. Soares é bastante didático na tese sobre como e porque as polícias deveriam ser desmilitarizadas no Brasil. Um dos grandes motivadores do livro parece ter sido a morte da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, fazendo com que o autor repita a expressão racismo estrutural inúmeras vezes por todo o livro. Ele faz digressões históricas, dá atenção ao tema das drogas, do encarceramento em massa, propõe uma agenda de estudos. Pelas linhas cuidadosamente escritas, emerge a robustez de sua argumentação, sustentadas pela clara experiência que acumulou por passar por cargos dos poderes executivos do Rio de Janeiro, de Duque de Caxias e do próprio governo federal no primeiro governo Lula, o qual não é poupado de críticas.

Além de uma potente argumentação a favor da desmilitarização, a narrativa do autor é potente também na competência que tem em esconder mostrando, esta técnica muito comum em nossa época. Ele fala tanto em racismo estrutural que para uma leitura que se proponha a ser apenas curiosa sobre o tema do livro parece que o problema tenha sido contemplado pelo autor, quando na verdade, o autor cuidou de ignorar o assunto. Racismo estrutural, esta expressão sexy, como diriam os americanos, serve para esconder o que o livro supôs mostrar.

É um tipo de cegueira racial, mas desta vez engajada, dado que há um esforço para evitar se aprofundar no assunto. Vejamos, por exemplo, uma das sessões do livro que é dedicada à proposição de uma agenda de estudos sobre direitos humanos composta de oito itens, onde o termo pisado e repisado do “racismo estrutural” simplesmente é esquecido, deixando completamente fora do tom o livro e deixando a pergunta no ar: qual é a importância real que o autor dá para a questão racial para pensar a segurança pública e a desmilitarização? Se a polícia é racista – ou o racismo estrutural não alcança a instituição policial? Se as polícias matam mais negros, ela não precisa de uma mudança que alcance esta dimensão da sua expressão violenta? Convém a pergunta não só pelo fato das menções, en passant, a termos como genocídio negro, mas pela referência insistente no nome da vereadora Marielle Franco.

Fosse o livro escrito dez anos atrás, não sentiríamos falta da referência a tantos estudos importantes que se tem produzido por autores negros e negras. Contudo, em se tratando de um texto tão atual, como deixar de dora referências como Silvio de Almeida, que escreveu o livro O que é Racismo Estrutural? – que passa por questões culturais, políticas e econômicas e brilhantemente fornece elementos para pensarmos a segurança pública, entre outras coisas. A ausência de um texto como este na bibliografia de Soares é mostra com quem ele quer chamar para dançar no seu baile.

Fosse o livro escrito nos anos 1990, antes do prefácio ao livro de Ramos e Musumeci, este questionamento poderia ser posto como provocação fora do lugar. Contudo, nos dias que correm, já se pode falar em “virada antirracista dos estudos sobre violência”, como diria Jacqueline Sinhoretto. As mesas das quais eu pude participar sobre racismo e segurança pública são a mostra disto.

O momento histórico em que o processo de democratização é novamente suspenso no Brasil nos impõe aos progressistas o empenho de fazer melhor numa próxima vez em que estivermos à frente de governos municipais, estaduais e federais. Não basta dizer que temos soluções velhas para novos tempos, este é o enredo para a repetição de erros. As eleições municipais se aproximam e aqueles que tomarem em suas mãos o livro de Soares para elaborar políticas de segurança pública estarão preparados para enfrentar os problemas estruturais, como o racismo nas instituições policiais?

O último período democrático traiu nossas melhores intenções e as mais bem informadas intuições, trouxe inclusão política e social, reduziu a pobreza, quase acabou com a miséria,. Mas tivemos surpresas. Quando todos acreditavam que com democracia não teríamos repressão e que com a redução da pobreza teríamos menos violência, vimos o encarceramento em massa e a explosão dos números de homicídios em praticamente todo o território nacional.

Violência e repressão, assassinatos e prisões, negros e pobres, raça e classe. Para pensar um novo modelo de segurança pública é possível fazê-lo sem pensar os sujeitos e sem as questões estruturais, como o racismo? Parece que sim, segundo a agenda de estudos que o livro apresenta. Nada sobre processos de racialização na polícia, na política ou no judiciário. Nenhum ponto para a reflexão sobre a articulação das questões de estado com as questões de redistribuição.

Existem ao menos três fluxos de contribuições que não podem ser esquecidos quando se propõe uma agenda de pesquisa sobre este tema no Brasil. Neste país, a produção de pesquisas é muito concentrada em universidades, e sobretudo, nas universidades públicas. À exceção de instituições como Embrapa e Instituto Oswaldo Cruz, quem produz conhecimento são as universidades públicas. Portanto, há que se considerar que os interlocutores em uma proposta de produção científica estarão vinculados direta ou indiretamente a estas instituições. Atualmente ocorre algo muito vigoroso nestas instituições: elas estão se tornando mais negras.

Há muito mais alunos e, cada vez mais, professores negros e negras nestas instituições, ainda mais quando se fala dos cursos de Ciências Sociais. É aí que se inicia e vem se solidificando o esforço de, a partir do que foi produzido sobre violência, segurança pública e relações raciais, erigir um campo de reflexão que leve o racismo a sério, de modo estrutural – já que não existe outro racismo. Jovens professores com formação sólida estão trabalhando nisso, como na Ufscar, na UFF, na UnB, na UFBA, na UFSC, na UFRJ, na UFS, na USP. Isso para ficar entre o que eu posso atestar pessoalmente. Não obstante, o segundo fator: produções como da editora Brado Negro e da Coleção Feminismos Plurais, sem vinculação direta com universidades públicas, trazem incontornáveis contribuições para o debate sobre segurança pública e racismo. O último é a circulação internacional dos intelectuais dos direitos humanos em franco diálogo com o ativismo norte-americano que faz a denúncia do encarceramento em massa e sustentam os debates sobre violência policial. São, em sua maioria, intelectuais negros, cuja dimensão racial estruturam seu pensamento.

Ainda, vale também dar um passo adiante e considerar o que é produzido de conhecimento que não possui o formato estritamente acadêmico, mas que é Saber. Ou seja, vale e muito visitar o conhecimento produzido por quem aprendeu a sobreviver à violência cotidiana que faz com que, como disse a professora Flávia Medeiros, “violência policial” seja vista como uma redundância.

O bloqueio cognitivo da afasia racial impede que se aprenda com os outros e com sua própria trajetória. Por exemplo, há um capítulo chamado “Lições de Marielle”, em que o autor diz que o assassinato da vereadora desmascarou o caráter político do poder das milícias. Talvez pudesse ser mais pedagógico se, levando o racismo a sério, o autor se perguntasse por que ele ainda está vivo e Marielle, não. Com muita coragem e vértebras, Luiz Eduardo Soares teve de sair do Brasil e levar a família consigo porque havia enfrentado interesses perigosos e sua vida passou a correr riscos, interesses de natureza não muito distante dos que vitimizaram Marielle. Sua vida correu risco de ser eliminada assim como a de sua família, tais riscos foram em função do exercício não de suas peças de teatro, roteiros de filmes ou artigos científicos, mas sim devido a sua atividade política. Foi a política que pôs sua vida em risco. Marielle, assim como Luiz Eduardo, foram perseguidos por fazerem uma política.

Em tempos de hegemonia liberal na economia e conservador nos costumes, a morte de Marielle e o Massacre de Paraisópolis nos ensinam que o inimigo interno gestado na Guerra Fria encontra o inimigo interno gestado no pós-Guerra Fria. Um, é o inimigo vermelho, comunista, defensor das causas sociais; o segundo, negro, traficante, usuário de drogas ou mesmo um transgressor de etiquetas sociais. Trata-se justamente da integralidade da busca por emancipação coletiva e política, contemplando a dualidade economia/cultura. Para romper com estas amarras, que encerram a vida – encerram no seu duplo sentido, acabam com vidas e limitam o viver – é preciso um processo de descolonização que começa com a descolonização das mentes, através do fazer intelectual.

O fazer intelectual, entre outras coisas, é a produção de lembranças entre esquecimentos e o que escolhemos lembrar indica como queremos que a nossa realidade seja conformada ou transformada. Neste findar de 2019, outro novembro passou em meio a declarações estapafúrdias, pedindo o esquecimento de Palmares e o fim do movimento negro. Quando nos calamos, nos esquecemos, ignoramos, são as vozes da ignorância que soam. É preciso fazer lembrar, produzir lembranças e combater o esquecimento – é parte do fazer viver e não deixar morrer. O racismo não pode passar em branco.

Paulo César Ramos é doutorando em Sociologia pela USP, Visting Scholar na Universidade da Pennsylvânia e coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo.

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