Na linha de tiro: cinco anos de injustiça
Por Marcos Rolim, para o Sul 21*
Em qualquer país com democracia consolidada, a polícia vai às ruas não para atirar em manifestantes, mas para garantir seu direito de protesto. Em qualquer civilização democrática, aliás, há magistrados capazes de reconhecer o direito das vítimas da violência estatal e de obrigar as polícias a cumprir sua missão de proteger as pessoas.
Quando tudo vai mal; quando os direitos mais elementares são violados; quando uma pessoa é vitimada e sofre mutilação que a acompanhará pelo resto da vida; quando, enfim, a vida de alguém é absurda e arbitrariamente diminuída, humilhada, estragada, tudo o que se pede é que se faça justiça.
Quando as vítimas pedem justiça, não se deve reduzir essa demanda à ideia de punição. Sim, a punição pode ser importante e, muitas vezes, será mesmo fundamental. Quando falamos em punição, entretanto, nos referimos a uma técnica e a procedimentos que procuram responsabilizar o autor do dano. Entretanto, mesmo quando isso for possível nada resta a fazer quanto às vítimas? Por acaso basta que elas sejam informadas que o responsável pela violação irá sofrer uma pena? Há algo, enfim, que a Justiça deva assegurar às vítimas de modo a reduzir a dor e a humilhação que lhes foram impostas?
A Justiça, se queremos falar seriamente a respeito, pressupõe que as vítimas merecem, primeiramente, o reconhecimento de que foram vitimadas. Ato contínuo, é muito importante a solidariedade e a ajuda que se possa prestar, em diferentes instâncias, notadamente quanto à saúde e à assistência psicológica para que a experiência traumática seja elaborada.
Sérgio Andrade da Silva, 37 anos, fotógrafo profissional, estava trabalhando no dia 13 de junho de 2013, cobrindo manifestação contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em São Paulo. O protesto foi violentamente reprimido pela Polícia Militar, que alvejou os manifestantes com balas de borracha. Uma dessas balas atingiu o olho esquerdo de Sérgio, cegando-o. Ainda em 2013, Sérgio acionou a Justiça requerendo ao governo do Estado indenização por danos morais e pensão de R$ 2,3 mil mensais, já que a mutilação sofrida não mais permitiria que ele exercesse sua profissão da mesma forma. Três anos depois, o juiz Olavo Zampol Júnior, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, negou a pretensão de Sérgio. Mais do que isso, negou à vítima a condição de vítima, atribuindo ao fotógrafo total responsabilidade pelo ocorrido: In verbis: “No caso, ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer”. O magistrado concluiu sua sentença condenando o demandante a pagar os honorários de sucumbência, fixando-os em dois mil reais (sentença disponível em: https://goo.gl/nf7wiH).
Há, por certo, muitas decisões judiciais que nos surpreendem pela ausência de fundamentação rigorosa, pela aguda insensibilidade ou pela afronta aos valores morais mais comezinhos. A decisão em comento, todavia, parece sintetizar essas três características. Não ocorreu a sua excelência refletir sobre a legalidade dos disparos efetuados pelos PMs contra manifestação pacífica, tampouco inquirir sobre os protocolos em vigor na corporação quanto às condições, circunstâncias e precauções no uso desse tipo de armamento. Para o juiz, o fotógrafo, simplesmente, estava onde não deveria estar, ou seja: em meio à multidão de cidadãos e cidadãs que exerciam o direito de solicitar nova política de mobilidade urbana, algo que deve conformar um mundo alienígena para a autoridade togada.
O fotógrafo foi atingido quando se protegia em uma banca de jornais, fato testemunhado por dezenas de pessoas, o que torna um tanto nebulosa a expressão “linha de tiro”. Armas que disparam balas de borracha são erroneamente chamadas “não letais”. Na verdade, elas são menos letais, mas podem matar. Os ingleses usaram esse tipo de munição, nos anos 70, na Irlanda do Norte. Em 5 anos, dispararam 55 mil vezes, com uma pessoa morta a cada 16 mil disparos; uma com lesão incapacitante a cada 1.900 disparos e uma com ferimento sério a cada 800 disparos.
Na repressão à Primeira Intifada, entre 1987 e 1993, militares israelenses usaram balas de borracha com um núcleo de metal, o que produziu dez vezes mais mortes que as balas inglesas. Assim, se um dos manifestantes tivesse o cérebro perfurado por uma bala de borracha (o que pode ocorrer exatamente por trajetória via globo ocular), culpe-se o morto; se o atingido fosse um transeunte na avenida, impute-se a ele a responsabilidade e se fosse uma criança nos braços de sua mãe, atribua-se o desfecho trágico à irresponsabilidade materna. Para o magistrado, o problema é que as pessoas estavam lá, o que causou toda a celeuma. Nos dias subsequentes, em parte por conta da absurda repressão, milhões de pessoas voltaram às ruas em protestos de natureza histórica em todo o Brasil. O juiz Olavo deve ter acompanhado pela TV.
Em qualquer país com democracia consolidada, a polícia vai às ruas não para atirar em manifestantes, mas para garantir seu direito de protesto. Em qualquer civilização democrática, aliás, há magistrados capazes de reconhecer o direito das vítimas da violência estatal e de obrigar as polícias a cumprir sua missão de proteger as pessoas. Bem, mas erros judiciais podem ser corrigidos. A decisão, todos imaginaram, seria reformada em 2º grau. Ocorreu que a negativa foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, agora sob o interessante argumento da inexistência de provas sobre a responsabilidade da PM. Os desembargadores da 9ª Câmara de Direito Público do TJSP, Rebouças de Carvalho, Décio Notarangeli e Oswaldo Palu, entenderam que não se pode afirmar que foi uma bala disparada pela PM que mutilou Sérgio.
Fiquei matutando. Pois não é? As possibilidades são infinitas mesmo. Sérgio poderia ter sido atingido por fragmento de um asteroide; um desafeto poderia ter se aproveitado da situação, mirado no olho de Sérgio e o acertado com uma bolinha de cinamomo e, assim por diante. Casualmente, naquele exato momento, havia dezenas de policiais disparando suas armas a poucos metros de seus alvos. No mesmo evento, outros dois jornalistas também foram atingidos por balas de borracha, entre eles Giuliana Vallone, da Folha de S. Paulo, ferida no olho, o que sugere orientação para disparos acima da linha da cintura. O cenário, com efeito, é extremamente controverso e seria mesmo impossível encontrar um “nexo de causalidade” como concluíram os doutores. Ahãn. Fez cinco anos essa semana que Sérgio teve seu olho vazado; com a benção do Judiciário, até aqui. Vergonha é a palavra mais contida para descrever isso.
(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris, 2016).
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