A Marcha do Sal?
Há um ano, com a deposição da presidenta eleita pelo voto popular, Dilma Rousseff, o Brasil foi lançado a uma velocidade vertiginosa nessa espiral descendente de retrocessos nos direitos conquistados pelos trabalhadores ao longo de décadas. Dia após dia, vêm a público informações de que Dilma foi inocentada das acusações assacadas contra ela pela mídia, pelos procuradores, pelo Tribunal de Contas, por gente como Eduardo Cunha, que ainda segue preso, por gente como Aécio Neves, que consegue permanecer solto. Definitivamente o Brasil é um país além da imaginação.
Uma a uma, as acusações contra Dilma vão caindo. Sobram de pé as evidências de que a presidenta legitimamente eleita foi afastada por razões de outra natureza, já que não cometeu crime de responsabilidade: foi afastada por um tribunal de canalhas, pagos a peso de ouro pelos açougueiros da JBS, depois da farsa de um julgamento grotesco que expôs o Brasil vergonhosamente diante do mundo. Foi afastada porque não se dobrou à chantagem dos grupos de interesses reacionários alojados no Congresso, a serviço dos estratos mais ricos da sociedade brasileira, da Fiesp, do agronegócio, dos barões da mídia, do capital financeiro nacional e internacional e das petroleiras estrangeiras que neste momento se apropriam agradecidas das jazidas do pré-sal.
Aquele esboço de país independente, que começou a ser desenhado nos mandatos de Lula e no primeiro mandato de Dilma, que acalentava aspirações nacionais de afirmar-se diante do mundo, por meio de uma diplomacia ativa e altiva, virou fumaça sob a ofensiva dos setores mais reacionários que hoje se dedicam a convertê-lo, em tempo recorde, num arquipélago de neocolônias.
O governo golpista está esquartejando o país. Os setores populares que se opõem à entrega dos recursos naturais – garantia de um projeto de desenvolvimento nacional – às empresas estrangeiras, que se opõem à submissão científica e tecnológica, ao assalto ao patrimônio público construído por gerações e gerações de brasileiros, ao saque dos direitos dos trabalhadores consagrados na Constituição de 1988, encontram-se diante da necessidade de reinventar suas formas de luta.
Combatem, hoje, sob o bombardeio de uma crise que já afastou 13,7 milhões de assalariados dos seus postos de trabalho. Em nenhum país do mundo, assolado pelo desemprego e pela desmoralização de uma derrota política das dimensões que estamos vivendo, os trabalhadores se lançam para as ruas em mobilizações de massas para recuperar o território perdido, de imediato. O temor do desemprego e a inevitável desorganização dos instrumentos de luta limitam ou anulam a capacidade de pronta resposta.
Para os que se apressam em concluir que o povo brasileiro é um povo conformista, que não reage à altura contra a desfaçatez da quadrilha que assaltou o poder de Estado, não custa lembrar que os setores populares levaram 21 anos para derrotar a ditadura dos generais, com muitas lutas, a princípio dispersas, com muitos equívocos, voluntarismos, heroísmo e também com baixa capacidade de compreender a correlação de forças em disputa.
Nada nos autoriza a crer que derrotaremos com facilidade uma composição política daqueles mesmos setores sociais que voltaram ao poder pelo atalho, digo, sem passar pelo voto popular ao produzirem o golpe de 2016. Nem suas articulações em âmbito internacional. Esses setores manejam agora métodos muito mais sofisticados. Ancorados num Parlamento esvaziado de todo compromisso com o interesse público, pelo divórcio entre os representantes e os representados, estabelecem uma Ditadura da Toga que, a rigor, expressa o esgotamento da relação entre os mecanismos de acumulação do capitalismo financeiro e a democracia liberal tal como a conhecíamos até a crise de 2008.
Respaldado por esse Parlamento e pela Casta do Judiciário, o governo ilegítimo de Michel Temer destrói as bases estruturais do Estado brasileiro – Petrobrás, Eletrobrás, BNDES –, ousa abrir a venda de terras do país a estrangeiros, oferece a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca) ao apetite das mineradoras na Amazônia, corta em 40% o orçamento destinado às Forças Armadas, responsáveis pela defesa da soberania e destrói com elas as condições indispensáveis para a manutenção do próprio país como nação.
Apagar a ideia de nação e substituí-la pela noção de mercado como já propunha FHC durante seu governo converterá o Brasil, em razão de suas dimensões, num campo minado de enclaves neocoloniais sob o poder de grandes corporações capazes de governar o governo central – eventualmente escolhido pelo povo – e de convertê-lo em instância homologatória de suas decisões empresariais.
Essa etapa do desenvolvimento do capitalismo – pós-crise financeira de 2008 – redesenha áreas de influência entre os grandes players e determina novos papéis na divisão internacional do trabalho. O Império necessita avidamente de energia barata e segura, ou seja, sem interrupção nos fluxos, fora do alcance dos seus antagonistas. O avanço dos setores conservadores com o golpe no Brasil, a vitória de Macri na Argentina, a pressão sobre Maduro na Venezuela, expressam com clareza o movimento geopolítico em curso.
A possibilidade de recuperar a perspectiva de um projeto nacional autônomo recai com todo o seu peso sobre os ombros dos setores populares e suas organizações. Aparentemente não há mais espaço para se reconstituir o arco de alianças montado por Lula para por de pé o projeto que balizou o desenvolvimento do país entre 2002 e 2014. Não há como ignorar as imensas dificuldades que as forças populares derrotadas pelo golpe de 2016 terão de enfrentar na formulação de um programa anticolonial e na costura das forças sociais capazes de convertê-lo numa realidade política efetiva.
Não será necessário um grande esforço para identificar o divórcio entre as aspirações das maiorias situadas na base da pirâmide beneficiadas pelas políticas de inclusão social e a institucionalidade estabelecida sobre o pântano do casuísmo, no pós-golpe. O caráter de demolição dos direitos conquistados e a ofensiva contra as bases de sustentação de um projeto nacional de desenvolvimento, qualquer que seja ele, expressos pelas políticas de Michel Temer, mais cedo ou mais tarde, exigirão uma resposta social que colocará em xeque essa nova institucionalidade, digamos, derivada do abastardamento da Constituição de 1988.
Do grau de radicalidade da resposta que vier dos setores populares dependerá o perfil do país ao longo do século XXI, se o Brasil se afirmará como uma nação ou será territorialmente desintegrado, como ocorreu com a Índia no final da dominação Britânica, na metade do século XX.
No momento em que concluo essas reflexões, Lula percorre o Nordeste em caravana. Pretende alcançar outras regiões. Mergulha no mar humano que acorre sob o impulso de sua voz. Intui, como de costume, e nos ensina desde Vila Euclides que a saída não passa necessariamente pela institucionalidade estabelecida. Pode passar por outros caminhos. Não se sabe o que ocorrerá depois das caravanas. Mas algo nos diz que depois delas o Brasil não será o mesmo, como a Índia não foi a mesma, depois da Marcha do Sal… Mais uma vez, nossa esperança pôs o pé na estrada.
Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.