Condenação de Lula: como um negro no tribunal dos brancos
(Sobre a condenação do Lula em Curitiba – Considerações sobre um julgamento iníquo)
Vivemos num país que, em pouco mais de um ano, viu seu rosto desfigurado por uma camarilha que tomou o governo por meio de um golpe de Estado, contra uma governante legitimamente eleita pelo voto popular, com o claro propósito de interromper um processo de afirmação da soberania nacional e desenvolvimento sustentável com inclusão social e distribuição de renda.
O Brasil se despede aceleradamente do Estado Democrático de Direito. E se encaminha para o que podemos definir sem dificuldade como um Estado Policial. Se a Emenda Constitucional que, em 2016, congelou os investimentos públicos por vinte anos é o instrumento jurídico para excluir os pobres da disputa pelo orçamento público, a força policial é a mão armada do Estado para garantir a exclusão e impedir a livre manifestação dos setores populares alijados da disputa.
O processo gestado a partir da Ação Penal 470 produziu um desequilíbrio entre os poderes constituídos, com a hipertrofia do Judiciário que – a exemplo do que ocorre em outros países do mundo nesta fase do desenvolvimento, expõe claramente a incompatibilidade entre capitalismo e democracia – associou-se com a mídia familiar que monopoliza os meios de comunicação do país, chamou para si a definição da agenda política da nação e arvorou-se em poder tutelar sobre os demais poderes e sobre a sociedade.
O Ministério Público, que por definição constitucional, deve se ocupar da defesa da sociedade, converteu-se numa casta de funcionários empoderados – para utilizar uma palavra da moda – a manejar um instrumento com enorme força institucional garantida pela Carta de 88, e posto a serviço dos interesses dos segmentos sociais mais retrógrados, alinhados aos interesses do grande capital internacional, como veremos adiante.
Da acusação à Sentença
Instrumento indispensável para compreendermos o golpe de estado em curso, o Ministério Público pelas mãos que coordenam a Operação Lava-jato, sob a batuta do procurador Deltan Dallagnol promoveram um ato que agrediu o próprio Ministério Público como Instituição e contra a sociedade brasileira, na tarde de 14 de setembro de 2016, ao montar um circo para denunciar o ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. No “Power Point” do menino de granja do Juiz Moro, sobrou convicção e faltaram provas, o que aliás tem sido a marca mais característica do processo político contra Lula. Por mais que tenham devassado durante estes dois anos a vida do acusado, não emergem do mergulho com um único elemento de prova.
Aquele “Power Point” é a matriz da sentença agora proferida pelo juiz Moro, em texto corrido. Uma peça irrigada pela ideologia do ódio de classe contra os trabalhadores e os excluídos que Lula representa, subproduto do fascismo inoculado pelo discurso das classes dominantes no cérebro e no sangue de tipos como Danagnol, rebento das classes médias abastadas, aterrorizadas com a ascensão social dos pobres.
A denúncia dos Procuradores contra Lula é clara: “Com efeito, em datas ainda não estabelecidas, mas compreendidas entre 11/10/2006 e 23/01/2012, LULA, de modo consciente e voluntário, em razão de sua função e como responsável pela nomeação e manutenção de RENATO DE SOUZA DUQUE, e PAULO ROBERTO COSTA nas Diretorias de Serviços e Abastecimento da PETROBRÁS, solicitou, aceitou promessa e recebeu, direta e indiretamente, para si e para outrem, inclusive por intermédio de tais funcionários públicos, vantagens indevidas, as quais foram de outro lado e de modo convergente oferecidas e prometidas por LÉO PINHEIRO e AGENOR MEDEIROS, executivos do Grupo OAS, para que estes obtivessem benefícios para o CONSÓRCIO CONPAR, contratado pela PETROBRÁS para a execução das obras de “ISBL da Carteira de Gasolina e UGHE HDT de instáveis da Carteira de Coque” da Refinaria Getúlio Vargas – REPAR e para o CONSÓRCIO RNEST/CONEST, contratado pela PETROBRÁS para a implantação das UHDT’s e UGH’s da Refinaria Abreu e Lima – RNESTE, e para a implantação das UDA’s da Refinaria Abreu e Lima – RNEST. As vantagens foram prometidas e oferecidas por LEO PINHEIRO e AGENOR MEDEIROS, a LULA, RENATO DUQUE, PAULO ROBERTO COSTA e PEDRO BARUSCO, para determina-los a, infringindo deveres legais, praticar e omitir atos de ofício no interesse dos referidos contratos. Esse é o núcleo da denúncia: os recursos que resultaram no tríplex do Guarujá derivam de três contratos mantidos por consórcios integrados pela OAS com a Petrobrás: um para obras na Refinaria Getúlio Vargas: e dois para a Refinaria Abreu e Lima.
Já na sentença o juiz Moro não demonstra vínculos entre os contratos e o apartamento. O que aos olhos de quem tem alguma noção dos procedimentos da justiça era obrigatório, considerando que a acusação era de corrupção passiva. O juiz, imperturbável, oferece à sociedade uma cândida declaração a respeito: “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram usados para pagamento da vantagem indevida ao ex-presidente”. Podemos concluir junto com a defesa de Lula que o juiz acatou uma denúncia e admitiu, ao dar a sentença, ignorá-la. Lula foi então condenado por outra coisa? Cabe perguntar.
A sentença exarada pelo juiz Moro, nesse processo, condenando a maior liderança popular do país obedece a outra lógica. Não à da prevalência das regras do Estado Direito. Uma condenação sem provas é o corolário natural desse processo que não se sustenta sobre os próprios pés à luz do olhar crítico de qualquer estudante de Direito. Manifesta-se assim o caráter de exceção do tratamento do Judiciário brasileiro que atua fora do devido processo legal para interditar Lula e vedar sua atuação no cenário Político do país.
O Julgamento de Rivonia
Aqui, talvez seja oportuno lembrar outro julgamento ocorrido na África do Sul em 1963/64. O julgamento de Rivonia, quando Mandela foi condenado com seus companheiros à prisão perpétua. Nós, brasileiros que nos situamos naquele segmento da sociedade que tinha até agora garantido o trabalho remunerado, as refeições diárias, pode pagar para os filhos frequentarem a escola ou o pelo atendimento médico no momento da doença, gostamos de acreditar que o Brasil é um país civilizado. Não. Não é. Temos muito mais semelhanças com a África do Sul do período histórico do Apartheid (1948 a 1994) do que gostaríamos de admitir.
O massacre de Shaperville, em 21 de março de 1960, quando foram assassinados pela polícia 69 cidadãs e cidadãos negros e feridos outros 180 numa manifestação pacífica contra a lei do passe, (que obrigava as cidadãs e cidadãos negros a apresentar um documento de identificação quando entrava em áreas das cidades reservadas aos “europeus”), levou as lideranças do Conselho Nacional Africano, partido de Nelson Mandela, à conclusão de que as manifestações pacíficas não seriam suficientes para vencer o regime racista e abolir as leis de segregação racial. Outras formas de luta teriam que ser incorporadas à tática da resistência: campanhas internacionais de denúncia contra a barbárie que significava o Apartheid e, quando necessárias, ações armadas, atos de sabotagem. Foi constituído em 1961 o Umkhonto we Sizwe, braço armado do CNA. Mandela e seus companheiros caíram presos e foram levados a julgamento numa situação de conflito aberto num país em que a minoria branca se impunha sobre os quatro quintos da população negra por meio de uma legislação produzida por um parlamento no qual essa maioria negra não tinha representação.
Tendo assumido sua própria defesa, Mandela interpelou o juiz, iniciando por pedir que ele se declarasse impedido para conduzir aquele julgamento. “Sou um negro num tribunal de brancos”, disse Mandela, então. Ao fim do julgamento foi condenado à prisão perpétua em Robben Island. Ali resistiria durante 27 anos. A História marcha. Quando os líderes do regime do Apartheid diante da ruína do império português, em Angola, Cabo Verde, Guiné e Moçambique e da derrota de suas forças armadas diante das tropas cubanas na Namíbia, se convenceram que já não era possível sustentar um regime isolado no plano internacional e em ponto de convulsão social internamente, buscaram Mandela para concertar um acordo ele respondeu: “Os prisioneiros não assinam pactos.”
Estava dado o sinal para o primeiro passo no sentido de sua libertação e para o movimento político de amplas massas da população negra que o levaria dentro de alguns meses da cela do cárcere à condição de primeiro negro eleito Presidente da República da África do Sul, para conduzir uma transição do regime de segregação racial para a construção de uma república democrática.
Lula foi condenado pela justiça brasileira, sem provas, neste 12 de julho de 2017 porque violou o código da invisibilidade dos pobres. Mais grave. Ao rompe-lo por meio de políticas públicas e incluir os pobres no orçamento, assegurou a eles o direito de invadir espaços antes privativos dos bem nascidos. Substitua os quatro quintos de negros que compunham a maioria da sociedade da África do Sul no período do Apartheid pelos pobres que compõem a esmagadora maioria da sociedade brasileira nesse início do século XXI e teremos um retrato muito semelhante. Não por acaso, a condenação de Lula veio no dia seguinte à revogação das Leis Trabalhistas que amparavam os assalariados brasileiros desde a primeira metade do século XX. Na defesa da desigualdade social que assegura seus privilégios, os ricos do Brasil não abandonam a herança colonial ibérica que ideologicamente os alimenta: ao condenarem Lula condenaram o corpo e o símbolo. O indivíduo e o projeto de justiça social que ele encarna.
O fino verniz da legalidade burguesa não resistiu ao sal da crise do Estado para poucos produzida pela inserção dos pobres do país no orçamento público. Para fazer do Brasil um país de todos. A aventura durou apenas 12 anos. Quando o Partido dos Trabalhadores venceu quatro eleições sucessivas e dirigiu o país com políticas públicas de inclusão social. Provocou um desarranjo no funcionamento do Estado que tutela uma das sociedades mais desiguais do mundo. A reação veio do topo da pirâmide social: um golpe de estado parlamentar-judiciário-midiático para conduzir um violento processo de restauração.
Um golpe para servir a quem?
“O golpe em curso no Brasil se insere no processo internacional da contrarrevolução neoliberal que está construindo Estados Constitucionais não democráticos no mundo inteiro. Os golpistas estão divididos e enfrentam dificuldades para lidar com a crise de legitimidade decorrente do golpe, mas estão unificados programaticamente. E esse programa põe em questão princípios fundamentais do pensamento democrático do pós-guerra, gerando um cenário de instabilidade, ódio e intolerância”. (…) Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo, da tolerância estão em questão e é por isso que falo que estamos vivendo uma crise civilizacional”.
Essa reflexão foi publicada nos últimos dias numa entrevista pelo professor da UFMG e militante das causas populares Juarez Guimarães, ao Sul 21. Essa unidade programática constitui a razão profunda que explica o fato de que o país seja governado por um cadáver. O governo visivelmente se decompõe. Gangrenou. A cada semana perde um pedaço, alvejado por denúncias de corrupção. Sua sobrevivência se transformou numa permanente fuga para a frente.
Trata-se de um governo acossado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Aqueles mesmos policiais e procuradores que deram uma decisiva contribuição para por abaixo o governo de Dilma Rousseff, eleito pelo voto popular, sob a acusação de ter cometido “pedaladas fiscais”, sem que restasse provado o crime de responsabilidade. Dilma foi afastada, portanto, por um golpe de estado. A partir daí se instalou no Palácio do Planalto, em seu lugar, uma camarilha oferecida à sociedade pela mídia conservadora como o remédio eficaz para regenerar o país da mancha do petismo…
O governo golpista cambaleante segue porém, desafiando a lógica e a decência, encontrando energia suficiente para levar adiante a agenda antinacional e antipopular, ainda que tenha de lançar ao mar o cadáver político de Temer, substituí-lo por um Rodrigo Maia embalsamado até 2018 e atender aos objetivos originais do golpe: restaurar a agenda neoliberal implementada parcialmente pelos governos Collor e Fernando Henrique e interrompida nos governos Lula e Dilma para dar lugar a um Projeto de Desenvolvimento Democrático e Popular e de afirmação da soberania nacional, que não sobreviveu às contradições da base social que, ao longo de doze anos o sustentou.
Juarez Guimarães nos traz um alerta para evitar que caiamos numa leitura simplista do processo histórico que vivemos no Brasil. Quem avalia que estamos diante de um intervalo apenas no processo de normalidade democrática, pode entender, por exemplo, que a sentença do juiz Moro deve ser reformada em segunda instância porque não tem base jurídica, nem provas. No entanto, é preciso compreender que estamos vivendo num estado de excepcionalidade onde a exceção é a regra. “Moro é corrompido politicamente e está exercendo seu mandato de juiz de forma partidária.”
“Qualquer pensamento político que se estreitar no plano da legalidade jurídica estará cometendo um gravíssimo erro. Com o STF, tal como está funcionando, com a Constituição tantas vezes violada como foi, qual a dificuldade em praticar mais uma violação?”
Prepara-se o funeral de Michel Temer para poupar o nariz dos mais sensíveis e perfumam Rodrigo Maia para impingi-lo à nação antes que as maiorias populares tenham conseguido acumular força nas ruas com a mobilização da sociedade por Diretas Já! e assim, recuperar a soberania popular, único caminho para impedir o aprofundamento da catástrofe que o golpe significa para o Brasil.
Formosa, 20 de julho de 2017.