Dória: “Mas essa gente aí, hein? Como é que faz?”
“Que tristeza, que nóis sentia. Cada “tauba” que caía, doía no coração”.
Caro prefeito que se diz gestor, “se o senhor não tá lembrado, dá licença de contá”. A música de Adoniran Barbosa que todos conhecem, até o senhor neste falso ar blasé de novo rico, conta uma história muito triste. A história de quem vê sua casa, maloca, sendo demolida. Uma casa “veia”, um palacete assobradado indo para o chão para que se construa um “ardifício arto”. O senhor, senhor prefeito, reeditou a música de Adoniran Barbosa, a tristeza, mas o pior: mesmo se arvorando de gestor, se esqueceu que tinha gente dentro das casas em que mandou derrubar, na chamada “Cracolândia”. Pessoas, senhor prefeito, não lixo humano, como o senhor um dia se referiu.
Ah, se Adoniran estivesse vivo, o senhor iria virar personagem de mais uma música deste cronista da cidade de São Paulo. Mas seria o vilão, prefeito. Seria retratado do jeito pitoresco do sambista. Seria ironizado com um trapalhão que coloca vida de pessoas em risco. Trapalhão, não, alguém que planeja tudo, menos pensar em vidas pobres.
“Mas um dia, “nóis” nem pode se “alembrar”
Veio os “home” com as “ferramenta”
Que o dono mandou derrubar
“Peguemo” todas as nossas “coisa”
E “fumo” pro meio da rua
“Apreciá” a demolição”.
Pois é, prefeito que se diz gestor, na música de Adoniran, os pobres puderam pegar todas as coisas e ir para o meio da rua apreciar a demolição. Mas o senhor não deu nem esta oportunidade para os moradores da Cracolândia. Os que puderam, saíram correndo sem nada nas mãos, e outros, mais infelizes, nem isso. Estavam dentro de casa, surpreendidos pelo ronco do trator e pela parede a cair por cima deles.
Tudo isso, infelizmente, me lembra outra música de Adoniran. Aquela, menos tocada, mas tocante também, chamada “Despejo na Favela”.
Talvez o senhor, em sua ignorância sobre povo e seu sofrimento, não conheça, vai aqui parte da letra:
“Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E, contra seu desejo
Entregou pra seu narciso
Um aviso, uma ordem de despejo
– Assinada, seu doutor
Assim dizia a ‘pedição’
“Dentro de dez dias
Quero a favela vazia
E os barracos todos no chão
– É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É uma ordem superior”.
Na letra tem oficial de Justiça, tem prazo para sair, mas, pelo que lemos, a ordem superior de derrubar as casas da Cracolândia foi unilateral, do senhor, sem dar tempo para as pessoas pegarem suas coisas e, muitos deles, nem de sair de casa.
Como diz, no site Justificando, o arquiteto João Sette Whitaker, mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP 2003) e Livre-Docente pela FAU-USP: “O prefeito publicou um decreto, dia 19 de maio, declarando a área “de utilidade pública”, permitindo que imóveis sejam “desapropriados judicialmente ou adquiridos mediante acordo” para “implantação de equipamento público”. Embora isso não lhe dê direito de ir destruindo prédios por ai, parece que o prefeito valeu-se dele para iniciar um novo processo, não mais de higiene social, mas de intervenção urbanística mesmo: a demolição do quarteirão inteiro. Vale observar que, para retirar as pessoas a força o prefeito teria que ter a imissão na posse expedida por algum juiz, dentro de um processo desapropriatório, o que é impossível ter ocorrido em menos de uma semana.”
Diz ainda João Sette Whitaker: “Para contornar a lei, usa-se um velho expediente do autoritarismo: encontrar alguma irregularidade no imóvel que justifique uma ação de interdição (mesmo se é sabido que na cidade há shopping centers inteiros em situação irregular, sem sofrer nada do tipo)”.
Mas voltemos ao eterno Adoniran, que na mesma letra de “Despejo na Favela”, diz:
Não tem nada não, seu doutor
Não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não, seu doutor
Vou sair daqui
Pra não ouvir o ronco do trator
– Pra mim não tem ‘probrema’
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito eu me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás
…Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?”
Repito: nos tempos de Adoniran, pelo menos, as pessoas tinham o amanhã para deixar o barraco e não ouvir o ronco do trator. Mas o senhor, prefeito, sorrateiramente, mandou seus tratores antes das seis da manhã do domingo, dia 21 de maio, para colocar todo mundo na rua (nem todos, como sabemos) e derrubar tudo.
Como é que faz, “doutor” prefeito? Fernando Haddad, o seu antecessor vinha, realmente fazendo gestão de pessoas, dentre esta o projeto “Braços Abertos”. Quando o senhor venceu as eleições, perguntei a um amigo que trabalhou no “Braços Abertos”se ele achava que haveria continuidade do projeto e ele me disse: “Não. Dória vai acabar com o projeto, pois vai criminalizar os dependentes do crack, sem respeitar um tratamento digno e vai entregar o local para a especulação imobiliária”.
Dito e feito. Acabou com o projeto, na base do autoritarismo, mas não acabará com o uso do crack. No entanto, uma coisa vai conseguir: “higienizar” o local, espalhando os usuários pela cidade e até mesmo, como quer, os internando como lixo humano, e ali abrir espaço para a especulação imobiliária deitar e rolar.
Já que aqui falamos de Adoniran, vamos falar também de Caetano, que imortalizou um espaço não muito longe do local em que o senhor mandou derrubar. Em “Sampa”, Caetano fala do cruzamento da Ipiranga com a São João, e “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Fica claro que o senhor, prefeito, usa dessa grana não só para erguer e destruir coisas belas, mas também para soterrar pessoas e sonhos.
Para encerrar, senhor prefeito, um recado lembrando música de outro que soube tão bem cantar São Paulo e que estaria também revoltado hoje com suas atrocidades, Paulo Vanzolini. Nós choramos, reconhecemos a queda, mas não vamos desanimar. Vamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.
Fim de linha para o senhor, prefeito, e que Adoniran sussurre em seus ouvidos sempre: “Mas essa gente aí, hein? Como é que faz?”
Foto da Capa: Eduardo Ogata/SECOM