Com o acontecimento da maior Greve Geral da história e a nova reunião das forças populares de esquerda, o que fazer com a interpretação de que existe um dominante liberalismo popular entre “a periferia” de São Paulo, como concluiu pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo? Como ela pode ajudar o Partido dos Trabalhadores na sua política? Ou ainda, qual é relação entre pesquisa e ação política no Partido dos Trabalhadores neste novo tempo da luta de classes? Ciência para quê? Pesquisa para quem?

O recurso ao trabalho científico para fins políticos tem sido frequentemente utilizado por agentes de todas as colorações ideológicas, diferentes níveis de institucionalidade, em várias pautas de luta, reivindicações e conflitos. Esta prática constrói uma atuação em que convivem dois ímpetos éticos: o da ciência, que prima pela compreensão, pela inteligibilidade, pela explicação metódica de um problema; e o da política, que prima pela transformação da realidade. Desta forma, a pesquisa científica não é só uma questão técnica e nem a política é só uma questão ideológica, sendo a pergunta a nos orientar: qual é de fato o compromisso político de uma instância do PT em uma pesquisa?

Na busca de uma possível resposta a essa pergunta e como cumprimento de uma de suas atribuições, “constituir um espaço permanente de fomento à investigação, à reflexão, à formulação e ao debate de ideias, indispensáveis para um partido de esquerda democrático e socialista”, a Fundação Perseu Abramo, fundada pelo Partido dos Trabalhadores no ano de 1996, criou o Núcleo de Opinião Pública. Esse núcleo realizou ao longo de sua existência importantes pesquisas como: Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado; Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil – intolerância e respeito às diferenças sexuais; Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas da 3ª. Idade; Indígenas no Brasil – demandas dos povos e percepções da opinião pública; Discriminação racial e preconceito de cor no Brasil.

Essas pesquisas tornaram-se referências para os movimentos sociais, no espaço acadêmico, aos legisladores e aos governantes, na definição de estratégias para intervenções políticas, no aprofundamento de reflexões sobre seus temas e para a orientação dos gestores públicos na produção de políticas sociais. Grande exemplo são as políticas de promoção da igualdade racial.

A recente pesquisa divulgada e produzida pela Fundação Perseu Abramo iniciou um debate que mobilizou mais uma vez as duas esferas de ação (ciência e política). O tema da pesquisa era a percepção da política pela periferia da cidade de São Paulo, chamando às falas tanto aqueles que querem melhor conhecer “a periferia” e aqueles que querem transformar a periferia. Entretanto, pelo conteúdo a que se teve acesso e por sua repercussão, avaliamos que não se deu a contento a inter-relação entre ciência e política, conforme esperaríamos de investigação sobre um tema tão candente, nem mesmo tendo o suficiente para fornecer subsídios para a ação política do partido.

Trata-se de uma pesquisa de grande esforço, cujo trabalho dos/as pesquisadores/as deve ser reconhecido e valorizado. Foram entrevistadas mais de 60 pessoas, combinando técnicas qualitativas de entrevistas em profundidade e grupos focais. O trabalho das/dos pesquisadores/as só não pôde ser mais valorizado por terem escolhido não expor o protocolo da pesquisa que levou a tais dados, por não serem conhecidos o roteiro temático e as perguntas elaboradas; não se sabe se as entrevistas foram feitas nos bairros, em casas, na própria Fundação; como foi a abordagem e a escolha dos entrevistados; quais perguntas foram respondidas mais assertivamente pelas/os entrevistadas/os, quais foram pouco respondidas etc. Enfim, qual foi o trabalho de pesquisa stricto sensu.

Torna-se assim arriscado concluir muitas coisas devido ao desconhecimento do protocolo completo de pesquisa, o que não permite avaliar como os dados foram construídos, deixando as/os leitores/as entre a confusão e a desconfiança. Por exemplo, trata-se de uma pesquisa que procura simplesmente expor dados sem tratamento ou pretende subsidiar a ação política do partido? Outra elucidação a ser feita é se foi uma pesquisa de opinião ou de percepção. Como está, “de opinião sobre a percepção da política da periferia”, é cabal a produção da polêmica, sendo opinião uma coisa, percepção outra, e a política uma terceira. Mas de modo geral faltou aliar a atividade de pesquisa ao compromisso histórico do PT.

Com relação ao seu propósito inicial, a pesquisa buscava compreender uma mudança no comportamento do/a eleitor/a. Contudo ela não estabelece um parâmetro inicial para entender o que mudou para quê. A pesquisa usa duas metodologias, mas não separa os propósitos que se tinha com o uso de cada uma delas, nem mesmo explica porque não diferenciou os resultados a que se chegou nos diferentes métodos (entrevista e grupo focal). Suas respostas e conclusões sobre outras perguntas nos foram apresentadas como se fossem resultados de pesquisas quantitativas, sendo que cada um destes tipos de pesquisas produzem informações de natureza distintas.

O PT e a periferia, a fala e luta
O PT emergiu como força política reivindicando direitos e lugar de fala (como diria Patricia H. Collins), para os/as trabalhadores/as, com uma concertação de massas, portanto, de grupos subalternizados. Era necessário que estes falassem por si, representassem a si mesmos, fizessem política, pois além de votar, queriam ser votados. Era preciso ir além de organizações setoriais como associações de bairro e organizações locais ou entidades sindicais: era preciso um partido. Ao mesmo tempo, intelectuais do sul global, como Lélia Gonzalez, Paulo Freire e Gayatry Spivak faziam a luta pelo lugar de fala na academia, propondo novas formas de pensar a política; uma síntese de seus projetos pode ser a questão de Spivak: “pode o subalterno falar?”.

Ao longo das décadas o Partido dos Trabalhadores empenhou-se em fazer valer esta luta por reconhecimento e pela transformação deste mote político uma realidade na vida das pessoas, sendo canal para “voz e vez” aos/às não reconhecidos/as, criando espaços no partido, espaços em governos, acolhida em eleições, pedindo que o povo falasse para que o PT auxiliasse a escuta, transmissão e potencialização.

É preciso que este acúmulo também se reflita ainda mais na agenda de pesquisa da Fundação Perseu Abramo, na fundamentação, elaboração e na interpretação de suas investigações. Deve-se valer do que foi produzido não só sobre a periferia, mas também pela periferia, para iluminar as pesquisas da FPA. Desta forma, cumprem-se dois compromissos, para nós indissociáveis: um político e um científico.

“Periferia é periferia em qualquer lugar” – rap de GOG
Como se sabe, o fenômeno que a pesquisa tentou explorar não ocorreu apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil. É preciso buscar outras conexões, para compreender que tais territórios servem de articulação não só calcada numa dimensão físico-espacial, mas simbólica. Preocupar-se com a ação dos subalternizados, a articulação de atores, demandas e discursos, formando uma verdadeira diáspora, são acréscimos à perspectiva analítica de uma pesquisa sobre periferias que poderiam auxiliar interpretações mais potentes, além de evitar desenganos.

Por exemplo, a interpretação sela uma ideia de mérito em falas que revelam a autorrealização profissional e pessoal como valores importantes, quando na verdade só mostram que as pessoas buscam algo inerente à sua condição de pessoas humanas: o reconhecimento social. Algo previsto e perseguido em ideologias de esquerda, tais como: liberdade, desenvolvimento do potencial humano e emancipação. Todos esses ideais, inadvertidamente são cravados como uma característica e herança neoliberal de pessoas da periferia.

Estranha também a completa ausência dos problemas correlacionados à violência, à polícia, ao crime, ao tráfico de drogas. Estudos sobre as periferias e os movimentos sociais ligados a elas repetidamente trazem-nos tais questões como centrais para a vida social em São Paulo, seja com o crime organizado mediando os conflitos ou arregimentando membros nestes territórios, ou ainda com instituições do Estado perpetrando a violência letal, praticando sua “justiça” seletiva, oferecendo serviços precários.

“A periferia nos une pela dor, pela cor e pelo amor”, diz o Manifesto da Antropofagia Periférica.

Zona sul é igual à Zona Leste? Ceilândia é igual à Terra Firme? O Interior de Minas Gerais é o mesmo que o interior de Santa Catarina? Periferia é igual ao interior? Nem mesmo um manifesto da cultura periférica chamando à união ousou singularizar a periferia. A periferia no singular e as caracterizações genéricas, são outros dois elementos que emergem da exposição da pesquisa: “a periferia é isso, mas também é aquilo”. São duas características que não dizem nada do ponto de vista explicativo e criam um “lugar comum” para a política. A depender da interpretação que se dá pode ser um bálsamo para nossos adversários que irão até elogiar a pesquisa. Foi o que ocorreu. A escolha por essa abordagem homogeneizante entregou o “popular” nos braços da direita, do “liberalismo”, evidenciando uma interpretação alheia ao compromisso político motivador da pesquisa. Com compromisso científico isso poderia ser resolvido num rápido procedimento de pesquisa de cruzamento de dados, mostrando quais são as tendências entre negros versus brancos, uma faixa de renda versus outra faixa de renda, homens versus mulheres; um bairro versus outros bairros; mais velhos versus mais novos; entre diferentes níveis de escolaridade etc. Se assim não é feito, a periferia vira de fato um genérico “popular”. E, sabemos, não se trata disso.

O conhecimento do caminho percorrido para chegar ao ruidoso resultado final de “liberalismo popular” poderia evidenciar diversas questões suscitadas pela apresentação da pesquisa. Por exemplo, a investigação trata ausência/negação de Estado como “liberalismo”, aquilo que parece ser justamente o contrário – na tradição comunista e anarquista a autonomia frente às instituições estatais é característica também. Os dados que foram expostos entregam-nos a importância que a família e igreja  possuem na vida cotidiana e cultural dos indivíduos. Sem supor que passam a existir arranjos familiares fora dos padrões convencionais (pai, mãe, filhos), a pesquisa informa que para os entrevistados “família é tudo”. E a igreja parece vir compor uma vida comunitária, mediando a relação dos indivíduos com a sociedade maior, vinculando família, indivíduo, política e mundo simbólico. Não é nada liberal.

Só com o duplo compromisso com política e ciência poder-se-ia entender como se deu a recusa de termos normativos como “direita”, “esquerda”, “luta de classes”, por exemplo, em favor da adesão a outros termos igualmente normativos, como o tal “liberalismo popular”; assim como o a utilização do termo “empreendedorismo”. Alguns interditos interpretativos parecem não estar nas entrevistas como dados in vivo, mas serem produtos de interpretações orientadas. Assim como os chamados “limites do estado laico”, que inicialmente parece remeter a uma restrição à ação do estado, mas quando lemos o que está escrito os dados versam sobre o peso da orientação das religiões na vida cotidiana das pessoas, em dar sentido de comunidade, de coletividade e mesmo de controle social. Muito já sabido, é verdade, mas se bem expostos, os dados podem ser bem interpretados.

O mote fundante do PT precisa estar presente também nas investigações científicas que promove, caso contrário, ignora-se toda a diversidade das “periferias” imersas num suposto e genérico “popular”. A “periferia”, ou “as periferias”, tem uma história e um histórico, compostos por negros, pobres, imigrantes etc. É fundamental que a exposição deixe patente qual a noção, o conceito, o debate que fundamentou sua interpretação e sua abordagem, caso contrário as/os sujeitos entrevistadas/os serão alienados de suas subjetidades, objetificados sob a compreensão de um ser externo.

É preciso unir os compromissos da política e da ciência
Não estamos mais nos anos 1980, talvez não sejamos o mesmo partido, mas nossa missão política ainda é a mesma.  Cumpre-nos o desafio de atualizá-la à luz de um tempo que pesa nossa ação transformadora. Em outras palavras, a questão é como lidaremos com  nosso legado, um país com acesso ampliado a direitos sociais, com ascensão social, com um novo ativismo, com pautas mais novas e outras mais velhas com força renovada.

Na tarefa de renovação constante do compromisso histórico do PT com a luta dos subalternizados será decisiva a nossa a capacidade de dialogar com os novos ativismos, o que necessariamente passa pela articulação com as periferias, pensadas a partir dos seus sujeitos. Assim, em tempos atuais da luta de classes, redescobrir também a força das lutas por justiça ensejadas por um horizonte socialista. É aí que o esforço metódico e sistemático da relação entre a ciência e a política pode nos fortalecer.

A despeito de todo o debate que a Pesquisa da FPA despertou, é preciso que o mote do falar e do ouvir o povo prevaleça numa agenda de pesquisa futura. É preciso de imediato trazer à fala e à escuta, ao diálogo e à elaboração os sujeitos subalternizados que o PT nasceu para expressar e organizar. É preciso, portanto, garantir os lugares de fala nos trabalhos da Fundação Perseu Abramo.

Paulo Ramos é Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT-SP, Cientista Social (UFSCar), especialista em Análise Política (UnB), mestrado em Sociologia (UFSCar) e doutorando em Sociologia (USP), estudioso das relações raciais, movimentos sociais e violência. Este texto é resultado de diálogos com muitos interlocutores do Partido, da academia e de movimentos sociais.

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